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06 julho 2009

Imagens da desolação


Ninguém pode me contestar, mas o fato é que não existem mais cinemas como antigamente. Quem frequentou, por exemplo os Metros do Rio de Janeiro (quantos metros tem o Rio?) e, principalmente, o de Copacabana, sabe disso, a exemplo do publicitário João Carlos Alves Olivieri, conhecido na roda da malandragem como Jonga, bloguista (http://novaspensatas.blogspot.com/), que, hoje, passando pela Cinelândia, deparou-se com as ruínas do cine Vitória, sala de exibição que está na sua memória afetiva de cinéfilo. A imagem reflete a desolação: grafites tomam conta do quadro branco onde se colocavam os nomes dos filmes em cartaz e os horários das sessões; dentro, a escuridão não deixa ver, mas o que se pode encontrar é um verdadeiro pardieiro.

A Cinelândia, inclusive, tem este nome porque no local havia muitos cinemas. Recordo-me do Pathé, deste Vitória em ruínas, do Odeon (que se salvou milagrosamente, foi reformado e hoje serve de pré-estréias para alguns filmes e é lugar de destaque quando dos festivais cariocas). No Passeio Público, o Palácio, que, como o nome indica, era um verdadeiro palácio. Comprado o ingresso, andava-se, quase a flutuar no macio tapete vermelho escuro peculiar à cadeia Luiz Severiano Ribeiro, por quase, força de expressão, um quilometro, até se chegar ao porteiro e, dado o bilhete, adentrar-se na magnífica sala de projeção. No itinerário, um itinerário de pura emoção e magia, ia-se a olhar os cartazes na paredes (de a seguir, breve, etc). Quase vizinho, o Metro Passeio, que, embora não se comparasse ao Palácio, era um cinema imenso, capaz de transportar o cinéfilo para a fantasia do espetáculo cinematográfico.

Chocado com a desolação do seu querido cinema Vitória, Jonga, que, por acaso estava a portar uma máquina fotográfica, tirou algumas fotos. E foi para casa desolado, acreditando que o cinema, como era, não existe mais.

Encontrei esta notíca na internet: "O prédio de número 45 da Rua Senador Dantas, no Centro do Rio, onde funcionou o Rio Cine Vitória, foi invadido na noite de domingo (30) por cerca de 150 famílias ligadas ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Segundo a integrante do movimento, Maria de Lourdes Lopes, a construção estaria abandonada há mais de 10 anos. Os sem-teto aproveitam o Dia Mundial do Habitat, celebrado nesta segunda-feira (1º), para chamar atenção das autoridades para o grande número de pessoas sem domicílio no país. Maria de Lourdes informou que seriam oito milhões de desabrigados no Brasil, enquanto cinco milhões de imóveis estariam abandonados. Os ocupantes do prédio no Centro esperam que o proprietário apareça para negociações. Eles reivindicam permanência no local para habitação, atividades culturais e geração de renda. “Esperamos que quem apareça aqui não seja a polícia”, declarou Maria de Lourdes. (Foto: Alaor Filho/Agência Estado)" A segunda foto é de autoria de Jonga.

05 julho 2009

Como Jane Fonda era bela!

A foto mostra a bela Jane Fonda num momento em 1963. Lady Jayne Seymour Fonda, eis o seu nome de batismo, é filha de Henry Fonda com uma socielite francesa. Acompanhei a sua carrreira passo a passo e, agora, desaparecida das telas, constato, estupefato, que ela já tem 72 anos (nasceu em 1937). O tempo é implacável" Como fazer deter o seu voo?

Um domingo com Joseph Losey


A lembrança que me veio hoje foi a de Joseph Losey. Pesquisei e vi que, há mais ou menos dois anos, tinha escrito o que vai abaixo e publicado neste blog.

Losey (1909/1984), cineasta sempre presente em minha trajetória de cinéfilo, não tem, nos dias atuais, o destaque que merece. Parece esquecido. O criado (The sevant, 1963), obra de mestre, lembro-me que, quando o vi, recebi um impacto surpreende. O roteiro, de Harold Pinter, a direção, rigorosa, de Losey, os atores, estupendos, a começar por Dirk Bogarde, James Fox, Sarah Miles. Mas esta preciosidade já saiu em DVD. Que o domingo não fique, portanto, neste blog, em vão.

Losey, apesar de sua fleugma, que o faz parecer um britânico nato, nasceu nos Estados Unidos, em Wisconsin, La Crousse, em 1909. Se estivesse vivo -morreu em 1984 - teria a provecta idade de 99 anos (o seu centenário, ano que vem, precisa ser comemorabo e bebemorado). Membro de uma família de ascendência holandesa, quando ingressa nos estudos superiores opta por duas carreiras bastante distintas: medicina e teatro. Logo, porém, a segunda fica no centro de suas preocupações, atuando, como intérprete, em peças alheias e, em 1930, findo seus estudos, dá-se a conhecer como um excelente crítico teatral. Da teoria, todavia, Losey passa, logo, à praxis, funcionando como diretor, metteur-en-scène, em The Living Newspaper (1936), influenciado, nesta ocasião, pelas teorias de Piscator e Bertold Brecht. Do teatro para ocinema, um pulo: em 1937 supervisiona mais de 40 documentários educativos para a Fundação Rockefeller e, realiza curtas autorais, e, trabalhando, para seu sustento, ao mesmo tempo, numa rádio, Losey desponta para a crítica como diretor teatral com a adaptação de Galileu, Galileu, de Bertold Brecht, considerada, até então, a melhor versão no proscênio da peça de Brecht. Após o triunfo de Galileu é que vem o cinema propriamente dito, o cinema ficcional, de longa metragem, com caráter profissional. Dore Schary o convida, em 1948, para dirigir The boy with green hair (O menino dos cabelos verdes), uma fábula humanista acerca do racismo latente em uma coletividade. O Fugitivo de Santa Maria (The Lawless, 49), seu filme seguinte, insiste sobre o mesmo tema, mas com uma chave realista, pois o primeiro está cheio de metáforas e símbolos na fabulação. O menino dos cabelos verdes e O fugitivo de Santa Maria revelam o cineasta Joseph Losey como um realizador original e singularmente apto para restituir a pulsação lírica de alguns estados de ânimo. Assim, The boy with grenn hair contém o que não nos é dado com freqüência observar - uma mensagem de solidariedade humana, de tolerância, de paz, e The lawless, rodado numa pequena cidade do norte da Califórnia, expõe, através de uma narrativa um tanto descontrolada, a dramática situação desta localidade, quando um dos rapazes do bairro mexicano, tomado de pânico após esmurrar um policial, rouba um carro, foge desesperadamente e é acusado de vários crimes (entre os quais o de tentar violentar uma jovem estudante) no decorrer de sua perseguição. A população mais "respeitável" da cidade, indignada com os acontecimentos, percorre as ruas agredindo a pauladas outros mexicanos e empastela o único jornal da região, cujo editor resolvera defender a causa do fugitivo.

Em 1950, O cúmplice das sombras (The prowler), que significa um passo importante na sua carreira ao transcender um tema melodramático - um policial que seduz a uma mulher depois de assassinar o marido - para realizar um profundo estudo psicológico da condição humana de um personagem, a evidenciar Losey, neste filme, como um seguro realizador no controle da técnica naturalista e uma exatidão extraordinária na apresentação psicológica dos personagens. A seguir, no mesmo ano, M, o maldito, nova versão do célebre filme de Fritz Lang, que lhe permite descobrir outra de suas facetas: a faculdade de uma fusão expressiva entre o cenário e o seu protagonista. A maior parte da história e muitos dos arranjos de câmara são conservados e, quase cena por cena, o filme americano segue o alemão. As modificações principais se referem à época e ao local, com a transferência da ação de 1929 para 1950, e de Dusseldorf para uma cidade não identificada dos Estados Unidos. Em ambos, porém, o cenário é o mesmo: uma cidade agredida e aterrorizada por um psicopata cuja especialidade é matar meninas, após captar-lhes a confiança, sem uma pista a seguir, sem um delator, e que invade diariamente o bas-fond. Depois de M, Losey faz The big night, onde Robert Aldrich aparece como figurante: um dos espectadores da luta de boxe.

Em O homem que o mundo esqueceu (Stranger on prowl), filme que se segue a The big night na filmografia de Joseph Losey, a ação está situada em um porto não identificado, que apenas se sabe, pela insistente focalização de suas ruínas, ter sido duramente atingido pela guerra, num passado próximo. Um estranho percorre as ruas faminto e sem esperanças e, mais tarde, se vê perseguido e encurralado como se fora um animal por ter morto acidentalmente a dona do armazém que ameaçava entregá-lo à polícia ao surpreendê-lo com umpedaço de queijo na mão. Dois anos depois, 1954, O monstro de Londres (The sleeping tiger), com Dirk Bogarde (que mais tarde seria um ator constante do cineasta), com Losey a amargar o exílio forçado (é vítima do estupidez maccartista e taxado de 'comunista', deslocando-se para a Europa), assinando a fita como Victor Hanbury. Um homem em desespero (The intimate stranger, 56), assinado, também com pseudônimo, parece refletir a angústia do exílio. E a partir de A sombra da forca (Time without pity, 57), cuja fotografia é de Freddie Francis (o mesmo de Cabo do medo), o realizador já se sente mais livre para assinar seu próprio nome. Thriller policial britânico, apesar de realizado por um norte-americano, tem a britanicidade necessária para que se não lhe perceba a origem direcional: atmosfera sufocante, rictus narrativo, imagens rápidas, cheias de emoção visual e personagens enfocados oniricamente. Após o que, Losey realiza Por amor também se mata (The gypsy and the gentleman), de 1957, com Melina Mercouri e Patrick MacGoohan. Em 1959, um filme muito acima de sua média, e que muitos críticos consideram um de seus momentos altos: Entrevista com a morte (Blind date), com Hardy Kruger, Stanley Baker. Jovem pintor holandês em Londres leva à sua amante um ramalhete de violetas, mas não a encontra em casa e, de repente, chega a polícia. Há impressão de kafkanismo na narrativa com a tensão se fazendo à custa de um equívoco produzido pela usurpação de identidade da vítima. A direção de Losey se mostra menos preocupada com a trama policial do que com o exame psicológico de dois de seus três personagens centrais. Um filme que marca a presença de um autêntico cineasta.The damned, de 1962, nunca foi exibido nos cinemas brasileiros, restringindo-se a uma histórica exibição na TV Tupi do Rio de Janeiro em março de 1973, com o título de O mundo os condenou. Losey, entretanto, já se encontra, dois anos antes, com alta cotação entre os críticos, principalmente porque The criminal revela um realizador inusitado, estilista admirável. Mas é com Eva que a admiração total a Losey se estabelece de maneira definitiva, e seu nome se inclui, definitivamente, na galeria dos grandes cineastas. Com Jeanne Moreau, Stanley Baker, Virna Lisi, Eva é o ponto mais grave de uma acidentada carreira, pois a fita mais ambiciosa, concebida sem preconceitos e realizada num regime de absoluta liberdade de criação. Talvez seja Eva ainda a resultante dos estímulos recebidos por Losey de um grupo compacto da crítica francesa, que o elegeu um dos seus ídolos, para o seu espanto e estupefação, com o elogio descontrolado de suas obras menores. Um ano antes de O criado, que é de 1963, Eva tem uma narrativa pictoricamente sufocante por causa da poderosa beleza da iluminação de Gianni di Venanzo, um artista da luz.

Obra de mestre, obra-prima, O criado (The servant), com Dirk Bogarde e JamesFox, traduz bem a relação hegeliana do senhor e escravo. É o melhor filme de Losey, um trabalho exemplar, que se encontra, de repente e para surpresa de todos, em DVD. Vi o filme nos bons tempos do Cinema 1 em Copacabana. O criado é representativo desse enfoque de personagens cuja transparência de status social só tem igual na opacidade psicológica. Tony (James Fox), um jovem e sedutor aristocrata britânico, contrata um camareiro, Barrett (Bogarde). Como observou o ensaísta francês Claude Beylie, "A fábula é límpida: herdeiros de um mundo condenado, o escravo torna-se amo e vice-versa. Losey deleita-se com o espetáculo desse processo inexorável de degradação. Aí encontramos aquela 'exigência em perpétuua tensão' de que falava Michel Mourlet a propósito de À sombra da forca."

A seguir, um inédito em território brasileiro: King and country. Depois uma brincadeira satírica em tom descontraído: Modesty Blaise, com Monica Vitti, Terence Stamp, 1966, uma sátira ao bondianismo, desta vez colocando, como a heroína, uma mulher, e movido por chave irônica em linguagem de história em quadrinhos. E posteriormente uma quase obra-prima: Estranho acidente (Accident, 67), análise de comportamentos e de idiossincrasias, pintura ácida (como de hábito) de um meio corrompido (desta vez o acadêmico), com, novamente, Bogarde e o Stanley Baker de tantos filmes. O casal Burton reviveria Tennessee Williams em Boom (O homem que veio de longe), que se passa nos interiores do elizabetano palazzo onde tudo é ostentação. Vieram a seguir: Cerimônia secreta (Secret cerimony, 1968). No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 1970), O mensageiro (The go-between, 71, Palma de Ouro em Cannes), O assassinato de Trotsky, 1973), Casa de bonecas (A doll's house), com Jane Fonda, baseado em Henrik Ibsen, Galileo (74), A inglesa romântica (The romantic englishwoman, 74), Cidadão Klein (76), Don Giovanni.

Em Cerimônia secreta, uma mulher (Mia Farrow, recém chegada de Rosemary's baby) adota uma prostituta (Elizabeth Taylor) como sua mãe. Segundo Losey, Secret cerimony é um filme sobre a terrível necessidade que os seres humanos têm uns dos outros e a incapacidade que todos temos de nos satisfazer." Moral da história: dois ratos caem num balde de leite. Um morre afogado. O outro debate-se a noite inteira e acorda na coalhada

A foto é de Cerimônia secreta, com Mia Farrow, logo depois de Rosemary's baby, ao lado de Elizabeth Taylor, que para muitos foi a última estrela do cinema.

03 julho 2009

De crimes contra o cinema



Sempre estou a escrever sobre os atentados que sofrem os filmes originariamente feitos no formato Cinemascope e nunca ninguém (e falo de pessoas que gostam de cinema) deu bola para isso. Bato no Telecine Cult (perdão Marcelo Janot você nada tem a ver com isso), que apresenta estes filmes em tela cheia (full screen), com exceções. Nos últimos meses, verdade seja dita, o Cult tem tido mais respeito pelos filmes em CinemaScope.

Mas encontro, no excelente blog de Inácio Araújo, um artigo assinado por Juliano Tosi que explica didaticamente o prejuízo que os filmes originariamente em CinemaScope sofrem quando exibidos na televisão. Não se pode deixar de ler e recomendo que se faça uma reflexão sobre o assunto. O endereço do blog é: http://inacio-a.blog.uol.com.br/
Uma pessoa que se diz cinéfila não pode entender de cinema se não presta atenção para a questão dos formatos danificados e estupidamente deformados. Há, entre os cinéfilos, noto, e a palavra é esta, uma certa ignorância em relação aos formatos. Modéstia à parte, vejo, de imediato, se um filme, mesmo que o não conheça, está deformado ou sendo exibido em seu formato correto. Se é em CinemaScope, vê -se cortes nos rostos dos personagens ou uma composição do quadro deformada. E o pior é que certas distribuidoras, que se querem conceituadas, como a Europa - não me refiro a outras mais comerciais e sem nenhuma preocupação a não ser dar o espetáculo de qualquer maneira, estão a colocar na praça filmes em CinemaScope em tela cheia, como é o caso de Menina de ouro, de Clint Eastwood. Um crime que foi praticado pela Europa. Quem não viu Menina de ouro nos cinemas perdeu a oportunidade de revê-lo na sua integridade (talvez em cópia importada, porque a Europa massacrou-o).

Quando sei que um determinado filme é em tela larga, e quero vê-lo em DVD, tenho que pedir à atendente da locadora para passá-lo na televisão a fim de verificar a sua integridade. A Coleção Folha também foi criminosa ao lançar Gigi, de Vincente Minnelli, belo musical, canto de cisne do gênero na sua fase áurea, em full screen. Já havia, há alguns anos, sido lançado em DVD em tela cheia - comprei o DVD e, quando vi o absurdo, quebrei-o em mil pedacinhos com um martelo.

É leitura imprescindível, para elucidação e esclarecimento, o que Juliano Tosi escreveu no blog do crítico Inácio Araújo da Folha de S.Paulo. Roubei as duas fotos que ilustram este post, que mostram como o full screen deforma o enquadramento original de um filme. No caso, as imagens são de Vestida para matar, de Brian De Palma, exibido recentemente no Cult, vestida em tela cheia (arghhhhh!!!) para matar o excelente thriller do autor de Os intocáveis.

01 julho 2009

Telha sobre telha


O texto que vai abaixo é de autoria de um connaisseur da arte do filme, o meu amigo Ronaldo Barreto Leite Filho. Bom divertimento!


"Assistir a um filme contemporâneo é muito mais do que apreciar uma obra cinematográfica específica. Como acontece em praticamente toda arte, uma obra carrega muito do que foi feito antes, dentro da mesma forma de expressão. Pelo menos assim diria Mikhail Bakhtin, o pensador russo do Dialogismo, segundo o qual uma obra – se referindo principalmente à literatura – sempre dialoga com outras; as diversas obras interagem, havendo sempre mais de uma voz (polifonia) num texto, a despeito das intenções do autor ou mesmo de operações mais explícitas de dialogismo, como a paródia ou a paráfrase. O fato é que no cinema isso também acontece com frequência, não obstante o fenômeno seja muito mais claro em certas obras, mais sofisticadas, do que outras.

Este preâmbulo serviu pra falar justamente de como o espectador pode se surpreender – e se divertir – vendo certos filmes depois de ter visto certos outros filmes. Outro dia este escrevinhador reviu Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), obra maiúscula do – já muito mais do que um jovem promissor – cineasta contemporâneo Paul Thomas Anderson. Autor de Magnólia (1999) e Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002), o norte-americano realizou um filme vigoroso, destacável que seria em qualquer época da história do cinema. O caso é que revendo este filme, que já considerava grande, percebi que o era não só pelo talento e criatividade do autor, já mostrada em filmes anteriores, mas também por andar de mãos dadas com os grandes do passado. Qual não foi a boa surpresa que tive ao sentir nele eflúvios de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles? Sim, aquele mesmo tal filme que aparece invariavelmente nas listas pelo mundo como o maior filme de todos os tempos. A começar pela moral do filme, cuja história mostra o lado humano e o lado negro de homens capitalistas e ambiciosos. O Plainview de Daniel Day-Lewis (em atuação inexcedível) se aproxima bastante do Kane de Welles (diretor-protagonista): ambos, após um passado sofrido, se tornam máquinas que vão atrás de um objetivo sem que nada lhes faça parar, nem o bom senso nem os entes queridos. Parecem sempre estar tentando provar algo e alternam entre atos de bondade e ternura com atos de pura mesquinharia e ganância, mostrando-se no fim das contas serem verdadeiros solitários: de self-made men a lonely men. Personagens confusos e controversos, que no caso de Kane, a narrativa em puzzle, por meio de flashbacks, só explicita este caráter nebuloso. Após o fim de ambos os filmes achamos os protagonistas ao mesmo tempo tão familiares e tão distantes. Isso, sem contar aspectos não semelhantes, porém análogos, como fotografias e trilhas sonoras expressivas, grandes atuações e ritmos (timing) perfeitos, sem um segundo a sobrar ou faltar.

E qual seria a cara de Cidadão Kane se não houvesse acontecido antes o Expressionismo Alemão, com seus cenários distorcidos e sua fotografia em fortes contrastes de claro e escuro? Estilo de fotografia este que, embora pouco usado hoje em dia, foi característica forte do cinema americano dos anos 40, principalmente nos filmes noir, aqueles filmes de trama policial, femme fatale, clima de decadência e cinismo, e mistério a ser solucionado ao final.

Então, rever Sangue Negro e reencontrar Kane me levou a associações aparentemente desencadeadas, mas não fora desse espírito. Quem, mesmo sem conhecer bem o filme, nunca escutou a trilha sonora de Tubarão (Jaws, 1975) do Midas Steven Spielberg? O autor desta trilha, Mr. John Super-Indiana-ET-Nas_estrelas Williams, que tinha o inigualável Bernard Herrmann como referência, inspirou-se no conceito da igualmente famosa trilha sonora de Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, para dar aquele clima de tensão e violência iminente no filme – em que o tubarão propriamente dito demora bastante a aparecer e, no fim das contas, mata poucas pessoas. Falando no mestre gordo inglês, no mesmo Tubarão, Spielberg teve como referência outra grande obra hitchcockiana, Os Pássaros (The Birds, 1963). Hitchcock praticamente inaugurou o filme-catástrofe com Os Pássaros, mas sem cair no ridículo da maioria que foi feita posteriormente: filme em que a natureza se volta inexplicavelmente contra o homem, que pouco pode fazer além de tentar sobreviver. Assim também é Tubarão, em que um exemplar da espécie se torna misteriosamente sádico e sanguinário. Nenhum dos dois filmes se preocupa em dar explicações pseudo-científicas para o fenômeno – Hitchcock faz é piada com isso na cena do café, com a velha ornitóloga – e ambos são aulas de suspense, de como saber elevar a tensão ao ápice, alternando com momentos de relaxamento e até humor.

Alfred Hitchcock, por sinal, foi um dos cineastas mais influentes da história do cinema. Assim como Orson Welles – e cada um ao seu modo – soube assimilar o que de mais importante já havia sido feito até sua época, construiu um estilo próprio e rico, marcando para sempre o cinema, e influenciando cineastas mesmo os que não pensam conscientemente no autor de Janela Indiscreta. Aliás, a consciência do autor de ter como referência algo do passado talvez seja o que menos importa, pois quem se expressa é a obra, ela que dialoga com outra, e as influências estão no ar, na época, no conhecimento de mundo, no estudo, na vivência e na bagagem cultural do artista, é algo muito mais difuso e espontâneo do que o caso mais óbvio de uma referência como a que faz Brian De Palma em Os Intocáveis (Untouchables, 1987), na cena da estação de trem, que parafraseia a antológica seqüência das escadarias de Odessa, de O Encouraçado Potenkim (Bronenosets Potyokim, 1927), do pioneiro da montagem Sergei Eisentein. Este, outro cineasta de influência crucial para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, que marcou profundamente, por exemplo, a obra de Alfred Hitchcock. Realmente muito pequeno este mundo... E já que citei De Palma, este é o cineasta ainda na ativa de maior e mais assumida influência de Hitchcock, notadamente em filmes como Dublê de Corpo (Body Double, 1984), Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980) e Um tiro na noite (Blow Out, 1981) – o primeiro, uma espécie de mistura entre Um Corpo que cai (Vertigo, 1958) e Janela Indiscreta (Rear Window, 1955), e o segundo, uma referência clara a Psicose.

E o que teria sido do cinema senão uma mera forma de fotografar o movimento ou no máximo uma diversão circense não fosse por D.W. Griffith, que mostrou de uma vez por todas que o cinema se prestava à narratividade? Ele que encaixou no filme o hoje óbvios início-desenvolvimento-clímax e a narrativa paralela? Forma de narrar clássica, linear, essencialmente americana, que figuras como John Ford e William Wyler levaram à quintessência, algum tempo depois, há que se lembrar.

Assim foi. A partir da descoberta da narrativa o cinema foi aprendendo gradativamente coisas novas, aprendeu muito mais do que narrar. Imbricar é o verbo. Assim é construída a estética do cinema, como um telhado."


Clique na imagem para vê-la maior e mais bela.