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03 novembro 2006

Ter ou não ter "timing"


Há realizadores que possuem timing surpreendente e, entre eles, William Friedklin (Operação França, Viver e morrer em Los Angeles...), John Schlesinger (Maratona da morte, Morando com o perigo...), John Frankenheimer (o dos bons tempos, como em Sob o domínio do mal, Sete dias de maio, O segundo rosto/Seconds...), etc. A maioria, no entanto, não o possui, e o possível timing que se apresenta é um trabalho exaustivo da montagem cujo fito é ritmar o filme. Mas é um timing forçado que, paradoxalmente, deixa de ser timing. O realizador, que tem timing, faz com que seus filmes dêem a impressão de que um fio elétrico de alta tensão está inserido na estrutura narrativa. Mesmo em momentos de calmaria, há sempre uma expectativa de que algo possa acontecer. Para não falar em Hitchcock, cujo timing é fortíssimo. Intriga internacional (North by Northwest, 1959), que estava a ver em DVD, é um dos filmes mais perfeitos do século XX em matéria de construção formal, de timing. Neste particular, o cinema brasileiro precisa aprender a ter timing, pois poucos os diretores capazes de dotar os seus filmes de ritmo preciso. Friedklin, por exemplo, e para ficar só nele, faz filmes de alta tensão, que envolvem o espectador, deixando-o preso na poltrona. Geralmente, sói acontecer que uma pessoa, sem saber precisar a razão, acha um filme chato (e estou falando aqui de um filme médio, um thriller, por exemplo, que não se concebe sem timing). Aliás, quem sabe perceber o timing como ninguém é o cineasta paulista Carlos Reichenbach, o Carlão, o Comodoro, Don Corleone, que, já confessou em seu reduto, adora Friedklin.

Mas, falando sobre a pessoa que acha determinado filme chato sem saber a razão, o fato é que o considera aporrinhante porque o filme não possui o timing suficiente para atraí-la. Estupefato fiquei quando da exibição de Maratona da morte (este é de Schlesinger, não confundir), filme visto de esguelha por uma crítica novidadeira, mas cujo timing, perfeito, agarra o espectador. Friedklin, entre outros, evidentemente, é o responsável pelo timing do primeiro O exorcista (1974). A cena mais assustadora, por exemplo, pelo timing do cineasta, é quando, por incrível que possa parecer, Linda Blair se submete a exames, com as chapas da radiografia batendo forte, as injeções no pescoço. O realizador faz da sessão de exames uma cena de puro terror pelo uso da montagem bem articulada e do som, principalmente este.


A imagem que ilustra o post é a de um quadro de Matisse, que fez da pintura uma linguagem.

01 novembro 2006

"Eu me lembro" sob o olhar de Walter Salles


Filme genuinamente baiano, que, em 2005, recebeu os principais prêmios do Festival de Brasília (inclusive o de melhor filme), "Eu me lembro" está sendo lançado nas principais capitais brasileiras e recebendo da imprensa bons elogios. Seu autor, Edgard Navarro, tem, aqui, a oportunidade do primeiro longa, após o exercício da expressão cinematográfica em 30 anos de curtas e médias (entre os quais "O Superoutro" é o mais conhecido e aclamado). Transcrevo neste blog o comentário de Walter Salles, que foi publicado originariamente em 'O Globo', no seu segundo caderno, dia 28 de outubro. A foto que ilustra o 'post' é um momento da filmagem de "Eu me lembro" na Baixa dos Sapateiros (ao que parece na ladeira que fica ao lado do extinto e saudoso cinema Jandaia, que eu me lembro muito bem, pois passei a minha juventude nele). Para acessar o belo site de "Eu me lembro": http://www.eumelembro.com.br Mas vamos ao que Salles diz do filme de Navarro:
"Acaba de estrear um filme que chegou para irrigar o cinema brasileiro: "Eu me lembro", primeiro longa de um jovem cineasta de 57 anos, Edgard Navarro. Jovem pela originalidade de propósito, um filme-memória. Jovem pelo desejo expresso em cada fotograma. Jovem pela audácia em propor um filme que revisita os últimos 50 anos da vida brasileira através do olhar e das experiências de um protagonista que vai perdendo a inocência junto com o país. Jovem por um cinema feito de coração aberto.

"Eu sou o começo, sou o fim, sou o A e o Z". Assim cantavam os Mutantes. Assim vamos acompanhando a trajetória de Guiga, menino de classe média baiana. Estamos nos anos 50, década em que Marta Rocha perde o título de Miss Universo por duas polegadas e a Seleção brasileira ganha pela primeira vez o campeonato mundial por 5 a 2. Guiga vai descobrindo o mundo na medida em que o Brasil vai se reinventando através de uma nova arquitetura (Niemeyer e Lucio Costa), a Bossa Nova (João Gilberto e Jobim), o Cinema Novo. Todas as possibilidades parecem possíveis para a imaginação de uma criança - e de um país em construção.

Com o início dos anos 60, eclodem todos os "ismos", em perfeita sincronia com o coração adolescente de Guiga. As sensações e os sentidos são exacerbados. Mas logo, o tesão entra em conflito com a repressão paterna. O adolescente cai na real. Os tanques tomam as ruas. O golpe militar abafa a pátria em reinvenção, ao mesmo tempo em que o pai de Guiga impõe uma nova ordem na casa. Não por acaso, é nesse momento que morre a mãe de Guiga - a Mátria.

Começam os anos 70, o "milagre econômico", a Transamazônica, a luta armada e a repressão. Surge uma estranha dicotomia: descobrir o sexo numa época em que o prazer foi abolido por decreto. Novos Baianos, Stones, “I can't get no satisfaction”. Década de colisões, de rupturas formais e frontais, se oriente meu rapaz. Guiga, como tantos outros, fica no fogo cruzado. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. É nesse momento que surge a possibilidade de experimentar as chamadas "substâncias químicas". Ando meio desligado, nem sinto meus pés no chão: maconha, cogumelos psicodélicos, expansão da mente. Escapismo...ou não.

Em 1976, Guiga compra uma câmera Super 8. Imagens em movimento começam a ser registradas num país politicamente imobilizado. Abre-se uma nova
possibilidade - e uma razão de ser. O cinema como bóia de salvamento. Como registro de uma memória individual, mas também coletiva. O cinema como instrumento de conhecimento do mundo.

O achado de "Eu me lembro" está no fato de que Edgard Navarro divide essa descoberta conosco. A chave está, portanto, na generosidade do filme. Na capacidade de olhar para o mundo da casa e os estranhos personagens que a habitam com afeto, mas também com uma honestidade que é às vezes crua e dolorosa. A casa como reflexo de algo maior: o país em crise.

Quando voltou a existir em 1994 depois de cinco anos de silêncio forçado, o cinema brasileiro preocupou-se num primeiro momento em refletir uma identidade nacional fraturada pelo desgoverno Collor. O cinema feito durante a chamada "retomada" perguntou de onde viemos (Carlota Joaquina, Baile Perfumado, Madame Satã), quem somos (Cidade de Deus, Carandiru), para onde vamos. As periferias, que não vinham sendo retratadas até então, passam a ser o centro de boa parte das narrativas.

Com um filme que tem a coragem de trazer o foco para o particular como um reflexo do todo, Edgard Navarro abre novas possibilidades para um cinema brasileiro que precisa novamente se renovar. E o faz com um humor desconstrutivo, que irradia inteligência. "Eu me lembro" não se quer limpinho, bem acabado, polido. Ao contrário, é um filme cheio de arestas, com momentos de pura poesia e outros que são de difícil digestão. Pode não ser um filme para todos, mas é um daqueles filmes que vieram para ficar.

Antes de terminar: se a Argentina faz hoje o melhor cinema da América do Sul e um dos melhores do mundo, é porque os mestres continuam filmando com constância e cineastas jovens chegam todos os anos para oxigenar a narrativa cinematográfica. Aos 35 anos, o excelente Pablo Trapero acaba de realizar o seu quarto longa-metragem. Daniel Burman, o seu quinto filme aos 33 anos. Se isso acontece, é graças a um Instituto de Cinema, o INCAA, que abre a possibilidade de cineastas exercerem sua profissão que de forma contínua.

Edgard Navarro acaba de fazer seu primeiro filme aos 57 anos. Que o próximo se torne logo realidade..."