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28 março 2013

Da narrativa cinematográfica


A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e acircular.

Narrativa linear. Percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema - que se constituem uma exceção à regra.

Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrido por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação - thrillers, westerns, etc - porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.

Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: "as mesmas coisas repetem-se". Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente(Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.

Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.

Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais, Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.


Narrativa fragmentáriaEstrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d'Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 66) de Jean-Luc Godard - um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas - obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.


Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d'oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91).As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois (12). Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. Em Apocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.

24 março 2013

Antes que o diabo saiba que você está morto


Philip Seymour Hoffman e Albert Finney
Sidney Lumet nunca foi um autor na expressão da palavra, mas um artesão admirável que faz filmes melhores do que muitos considerados autorais. É, na verdade, um grande cineasta, um homem de cinema com todas as letras, dotado de um pulso surpreendente na direção de suas obras. Antes que o diabo saiba que você está morto surpreende pela força dramática, pelo manejo exemplar dos elementos da linguagem cinematográfica, e sempre a se afastar de maneirismos inúteis, de virtuoses para se mostrar (a exemplo de Feliz Natal, de Selton Mello, que poderia ser um bom filme não fossem os maneirismos virtuosísticos que tentam, claramente, mostrar que o autor sabe fazer cinema).
Lumet entende de economia dramática, possui um sentido de espetáculo acima da média, sabe cortar no momento certo, é excepcional na condução dos atores em cena, há, nele, uma concepção rígida do conceito de duração da tomada, uma intuição precisa de quando a câmara deve se movimentar em função exclusivamente dramática e da necessidade do fomento da fabulação. Um filme de Lumet, além do mais, oferece o prazer do cinema, coisa rara na crise balística da cinematografia atual.
O que faz um artista (sim, Lumet é um artista) de idade provecta estar mais antenado do que os seus contemporâneos? Em Antes que o diabo saiba que você está morto, Lumet, sobre realizar um filme que, como sempre, é uma análise da sociedade americana, do american way of life, de acentos trágicos impressionantes, oferece uma lição exemplar de como o tempo cinematográfico pode estar à disposição do enriquecimento dramático, a lembrar O grande golpe/The killing, de Stanley Kubrick, mas com logística própria e maturidade suficiente para que não se possa pensar em plágio.
O tempo em Antes que o diabo saiba que você está morto é pulverizado e desconstruído em função de dar ao filme força de expressão e fazê-lo, com isso, produzir mais sentido.
Lumet, pioneiro das filmagens in loco em Hollywood, tem, como de hábito, a ação de seu filme em Nova York. Philip Seymour Hoffman (o grande ator oscarizado por Capote, um dos grandes do cinema atual) vê sua carreira de executivo de uma empresa imobiliária a desmoronar, principalmente quando vem a saber da visita de auditores cuja vistoria pode comprometê-lo, e, além do mais, está viciadíssimo em drogas pesadas.
Decide, então, convencer o irmão (Ethan Hawke no melhor desempenho de sua carreira), que também tem graves problemas financeiros e vive num completodolce far niente (divorciado, sua filha está sob a guarda da ex-mulher e tem dívida atrasada da pensão alimentícia), a assaltar a joalheira de seus pais.
A princípio, um assalto fácil, pois eles conhecem bem todo o funcionamento do lugar. Mas na hora da ação, quando esperavam encontrar uma idosa funcionária, esta, por impedimento, é substituída pela mãe deles, que acaba morrendo pelas mãos de um terceiro cúmplice, que entra na loja enquanto Hawke espera no carro. O pai, Albert Finney, desesperado com a morte da esposa, tenta se vingar, sem saber que se encontra à caça dos próprios filhos.
Os acidentes de percurso são vários e conduzem a trama a um clima de tragédia, que Lumet constrói com a sua habitual competência narrativa. Há momentos dramáticos dilacerantes, a exemplo do diálogo entre pai e filho, Finney e Hoffman, e o clímax final regido com um crescendo trágico que coloca o filme bem acima da média do gênero.
Aliás, a julgar Lumet (e o livro que escreveu sobre o fazer cinema é obrigatório:Fazendo Filmes/Making Movies), vem a constatação de que a indústria pode muito bem produzir filmes de envergadura sem que venham obrigatoriamente de autores. Muitos artesãos, por competentes, dinâmicos, verdadeiros, estão acima de muitos autores de ocasião e, por que não dizer, cultores da aporrinhação.
É o tempo cinematográfico que rege a construção dramática de Before the devil knows you're dead. Uma mesma situação é vista sob os diversos pontos de vistas dos personagens, como no referido O grande golpe, de Kubrick, permitindo a Lumet, com isso, uma maior riqueza na observação dos momentos dramáticos e dando a perceber certas nuanças comportamentais dos personagens, principalmente o de Philip Seymour Hoffman.
À guisa de exemplo, há um plano no qual Marisa Tomei, no dia do enterro da mãe assassinada, vai à janela observar Hoffman e Finney a conversar no jardim. Em outro plano, já sob outro ponto de vista, ela é vista de fora, a contemplar, de dentro, a conversação.
Sidney Lumet (1924) vem da geração da televisão dos anos 50, que muito contribuiu para o revigoramento da linguagem cinematográfica do cinema americano. Depois de realizar vários seriados e adaptações teatrais para o veículo televisivo, estreou, e em grande estilo, no cinema, com 12 homens e uma sentença (12 angry men, 1957), com Henry Fonda e grande elenco, um filme de tribunal que se passa rigorosamente, por quase duas horas, dentro de uma sala do júri.
A crítica, porém, ainda que se lhe reconheça os méritos, diz que Sidney Lumet tem uma filmografia com altos e baixos, irregular. Sim, mas apenas por ter proporcionado aos cinéfilos de todo o mundo obras do quilate deste Antes que o diabo saiba que você está mortoO veredito (The verdict, 1982), com grande interpretação de Paul Newman e James Mason, A colina dos homens perdidos(The Hill, 1966), talvez o melhor desempenho de Sean Connery neste filme árido, difícil e de denúncia, Chamada para um morto (The Deadly Affair, 1966), thriller absorvente com James Mason, Simone Signoret, Harriet Anderson (sim, a bergmaniana Harriet de Mônica e o desejo), Maximilian Schell, Serpico (1973), com Al Pacino, e, ainda com este, Um dia de cão (Dog day afternoon, 1975), A manhã seguinte (The morning after, 1986), com Jeff Bridges e Jane Fonda, sobre o sofrimento dos alcoólatras, Um estranho entre nós (A stranger among us, 1992), com Melanie Griffith, Limite de segurança (Fail-safe, 1964, com Henry Fonda, alerta impressionante sobre a ameaça nuclear, um Dr. Fantástico levado a sério), entre tantos outros, a sua irregularidade é muito bem vinda.
Que todos os cineastas fossem assim tão irregulares como este fantástico Sidney Lumet!