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16 junho 2007

Petiscos ao Molho Madeira



Gostaria de convidar os leitores para que façam uma visita (mesmo que essa visita seja de médico) a um blog que instaurei e que tem o nome esdrúxulo de Petiscos ao Molho Madeira, com o objetivo precípuo de publicar artigos alheios que porventura ache interessantes, coisas lidas pela internet. O propósito é meio aleatório, como, aliás, tudo quase no espaço virtual. Navega-se com certa sofreguidão, mas, não se pode negar, encontra-se muita coisa interessante que merece ser lida e, mesmo, arquivada, principalmente em alguns jornais sulinos. Não se pode comprar todas as publicações todos os dias e, assim, a internet possibilita a leitura de muitos textos nada desprezíveis. O endereço é: http://petiscosaomolhomadeira.blogspot.com/ Coloquei um pseudônimo, Cassemiro qualquer coisa. Esqueci, quando estou a bater estas mal traçadas anunciatórias. O link, de qualquer forma, vai ficar permanente à esquerda deste blog com os outros endereços que recomendo, a exemplo do prolíxo Pensatas, de Jonga Olivieri, entre tantos outros.

14 junho 2007

"Teorema", de Pasolini



Pasolini teve morte trágica em novembro de 1975, despedaçado pelas rodas de um carro, restando, seu corpo, irreconhecível. Desapareceu na periferia de Roma, numa zona freqüentada por homossexuais e, pelo que se sabe, um deles atacou o cineasta, que, já morto, foi totalmente esmagado pelo automóvel do assassino. Homossexual assumido, Píer Paolo Pasolini já anuncia, como numa premonição, a sua morte em sua derradeira obra, Saló ou Os 120 dias de Sodoma, baseado em relatos do Marquês de Sade adaptados para a Itália fascista dos anos quarenta. O filme é uma verdadeira descida ao inferno e, nele, patentes, o desespero, a desesperança, o ceticismo do autor de Teorema.

Um rico industrial, casado, com dois filhos, recebe, de repente, a visita de um anjo, que, elemento deflagrador, provoca, com a sua presença, uma crise familiar. O anjo, que não se sabe de onde veio, tem relações sexuais com todos os familiares. Estes ficam totalmente atônitos e começam a ter comportamentos esquisitos. A mãe (interpretada pela deusa Silvana Mangano) sai pelas ruas de Roma à cata de homens para satisfazer suas fantasias, com um gosto insólito pelos tipos mais rudes e grossos. O filho vira artista abstrato numa pulsação quase maníaca. A sua irmã, chocada, fica catatônica enquanto o pai, desesperado, corre pelo deserto após doar a sua fábrica aos operários. Apenas a criada (Laura Betti) é que é salva pelo autor, pois sai da casa onde trabalha e se dirige ao vilarejo natal, quando levita e fica parada no firmamento. Objeto de culto e veneração.

O anjo, interpretado por Terence Stamp, é um personagem bem típico dos filmes cujas fábulas apontam pelo aparecimento de um elemento deflagrador que provoca uma crise de identidades ou um pandemônio quando se instala. Geralmente um forasteiro, como o Shane de Os brutos também amam, western grandioso de George Stevens, que, chegando a uma cidade, muda seus rumos e o de seus habitantes. Assim também William Holden, o forasteiro que, em Férias de amor (Picnic), provoca os ânimos de uma sociedade aparentemente ordeira, mas altamente preconceituosa. Stamp, revelado por William Wyler em O colecionador (1964), logo virou, pelo seu carisma, pelo seu olhar angelical, pela sua maneira de ser, um ator cobiçado pelos mestres do cinema, a exemplo de Federico Fellini que o destacou para o quadro principal de seu curta incluso no longa Histórias extraordinárias, filme pouco visto do cineasta de La dolce vita, com um sabor insólito e surrealista - Toby Dammit, o seu episódio, sendo os outros de Roger Vadim e Louis Malle.

O elenco de Teorema é excelente. Além de Stamp e La Mangano, Laura Betti, que faz a servente, atriz combatente, militante e amiga de Pasolini, que, até hoje, preserva a sua memória e trabalha no sentido de que sua morte seja revelada como um assassinato político. O industrial é Massimo Girotti. Rever Teorema é uma exigência nesses tempos pós-modernosos nos quais os filmes como que pararam de investir no desnudamento das idiossincrasias do homem, porque preocupados apenas com as suas ações exteriores. Teorema, de Píer Paolo Pasolini, é um filme aparentemente estranho para aqueles não acostumados à poética do autor. Mas, indiscutivelmente, uma obra de arte.

Marxista, ateu, Pasolini, pouco antes de Teorema, filmou a melhor vida de Cristo no cinema, que foi O evangelho segundo São Matheus, que dedicou ao Papa João XXIII. Além de cineasta, poeta, romancista, articulista, homem de combate, Pasolini revela, em suas obras, o seu sentido humanístico que aflora através de parábolas como Gaviões e passarinhos, entre outros. É a maneira de captar os gestos, é um sentido singular de apreender o homem comum, é a maneira de colocar a câmera diante do humano, a surpreender o insólito do ser, particularidades que fazem de Pasolini uma singularidade, um cineasta que tem uma marca, um estilo, um pensamento, uma visão do mundo e da vida. Um sentido que se aguça com descrença, porém, nos últimos anos de vida, quando a descrença, o ceticismo, e a revolta parecem tomar-lhe conta como expõe muito bem seu canto de cisne chamado Saló.

13 junho 2007

De seqüências antológicas do cinema brasileiro


Claro que existem muitas outras seqüências antológicas e importantes, mas, de memória, assim na hora, colocaria aqui quatro. A foto - que mostra Luiza Maranhão e Milton Gaúcho - ilustrativa é de A grande feira, de Roberto Pires, realizado em 1961, filme genuinamente baiano, um ano antes de Tocaia no asfalto, que destaco logo a seguir:
TOCAIA NO ASFALTO (1962), de Roberto Pires.
Há, pelos menos, duas seqüências extraordinárias neste thriller baiano realizado em início da década de 60. A primeira é a seqüência da tentativa de assassinato do político pelo pistoleiro, interpretado por Agildo Ribeiro, no interior da Igreja de São Francisco durante uma missa. Pires, por ser um artesão de inegável competência e sentido muito rigoroso do timing, através da montagem e dos movimentos de câmera, conjugados com específicos planos de detalhes, estabelece uma atmosfera asfixiante de tensão. O objetivo, que seria a morte do político, não se concretiza, dando prosseguimento a uma outra tentativa e, neste, a uma outra seqüência primorosa, que é a cuja ação transcorre no cemitério do Campo Santo em Salvador, onde o pistoleiro concretiza o assassinato, mas, para chegar a isso, é a linguagem cinematográfica que se promove como elemento que deflagra a execução. Duas seqüências que se poderiam classificar de antológicas na história do cinema brasileiro. Não se pode esquecer que a mise-en-scène se estabelece e se enriquece com a contribuição decisiva da partitura musical de Remo Usai em ambas as seqüências mencionadas.

TERRA EM TRANSE (1967), de Glauber Rocha.
Na seqüência filmada no pátio do Jardim Botânico, toda em câmera da mão, quando o político interpretado por José Lewgoy está em crise e cercado pelos seus companheiros e aliados, como Jardel Filho, o poeta que se engaja na militância, Glauce Rocha, entre tantos outros que aparecem como figurantes, Glauber Rocha faz com que os atores entrem e saiam de campo, do quadro fílmico, do enquadramento, e a impressão que se tem, dado o seu sentido extraordinário de mise-en-scène, é que os personagens estão quase a dançar, executando movimentos orquestrados. Demonstra-se aqui, nesta seqüência, o que é, realmente, a mise-en-scène, colocado em cena, e Glauber se estabelece como um verdadeiro maestro, um regista, um metteur-en-scène, que coloca em cena. A imagem se conjuga admiravelmente ao som. Outra seqüência desse mesmo filme, entre tantas admiráveis, é a que se intitula ‘Biografia de um aventureiro’, quando as imagens do político interpretado por Paulo Autran entram em conflito com a narração em off da trilha, que contradiz o que se está a ver.

SÃO PAULO S/A (1965), de Luis Sérgio Person
Não destacaria uma seqüência específica, mas os momentos nos quais, em travelling (ora para a frente, ora para trás, ora lateralmente), o personagem é enquadrado na selva de pedra paulistana a caminhar, a caminhar. O final, neste particular do caminhar, é surpreendente, pois as imagens de Walmor Chagas, perdido na multidão e sem um destino certo, são espantosamente sugestivas de seu conflito interior, principalmente porque nestas imagens há a introdução de um coro sonoro capaz de dar uma musicalidade funcional ao desespero existencial do personagem. Person, neste que é um dos cinco grandes momentos do cinema brasileiro, soube estar contemporâneo dos grandes renovadores da linguagem cinematográfica na década de 60. Seu filme tem forte influência de Michelangelo Antonioni, mas também de Resnais, principalmente no que se relaciona com a organização do tempo cinematográfico.

O CANGACEIRO (1953), de Lima Barreto
A seqüência da invasão da cidadezinha pelo bando de cangaceiros.
Lima Barreto estabelece aqui o modelo da montagem narrativa nos moldes desenvolvido por David Wark Griffith, o americano que é considerado o pai da narrativa cinematográfica pelos filmes O nascimento de uma nação (1914) e Intolerância (1916). Há uma dinâmica na seqüência cujo objetivo não se traduz na produção de sentidos, mas, e tão somente, um propósito de narrar, e, com isso, promover o envolvimento do espectador na ação. O momento em questão é um dos momentos fortes e reveladores da carpintaria narrativa de Lima Barreto.

De Alan Parker e seu sentido do tempo




Há filmes expressivos que, quando lançados, passam em brancas nuvens pelo circuito e, levando pouco tempo em cartaz, vão embora para nunca mais. Dois, os fatores determinantes do fracasso: a indiferença da distribuidora em proporcionar marketing eficiente e, principalmente em casos de obras acima da média, a ignorância da crítica quanto ao valor de certos realizadores. É o caso de Alan Parker, que os hermeneutas da sétima arte ainda não conseguiram ver-lhe a dinâmica, o sentido precioso que tem do tempo cinematográfico, o olhar detalhista capaz de contemplar os gestos mais insignificantes da condição humana e lhes dar uma dimensão analítica. Considerando que a crítica, que hoje se pratica, está mais afeita à resenha no esquema ‘guia de consumo’, ou ao comentário impressionista sem base referencial e conhecimento de causa, poderia até parecer normais tais ocorrências. O que se escreve atualmente sobre cinema se encontra mais ligado aos filmes de realizadores que estão ‘in’, que estão na moda, como é o caso de Pedro Almodóvar, ainda que este cineasta seja um grande talento, com universo ficcional e estilo próprio. Também são referendadas as obras que passeiam pelo circuito alternativo, como se o fato de uma determinada fita ser exibida, por exemplo, no Circuito Bahiano, tornasse-a, de per si, e por efeito varinha de condão, uma obra de arte. Assim os ledos e ivos enganos são imensos, abissais. Não se pode comparar, por exemplo, um Innarritu com um Parker, mas o primeiro é saudado com entusiasmo e o segundo completamente posto a escanteio.

Estou me referindo a Alan Parker porque revi um belo filme de sua autoria: Bem-vindo ao paraíso (Come see the paradise, 1990). Em alguns momentos dessa obra, por causa de seu sentido narrativo expressivo e detalhista, cheguei a pensar nos filmes de David Lean (A ponte do rio Kwai, Passagem para a Índia, Lawrence da Arábia). Come see the paradise, porém, foi boicotado pelo distribuidor, embora queimado tivesse lançamento mundial. A causa está na revelação dos campos de confinamento instituídos pelo governo de Franklin Delano Roosevelt aos japoneses residentes nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. O fato, histórico, sempre procurou ser abafado, principalmente quando aconteceu nos tempos de Roosevelt, presidente muito respeitado. E, além do mais, os USA consideraram uma petulância que sua emergência temática tenha sido provocada por um inglês como Alan Parker.

Bem-vindo ao paraíso, assim à primeira vista, segundo os desconstrucionistas de plantão, talvez possa parecer mais um filme hollywoodiano, com narrativa clássica. O hábito, entretanto, não faz o monge. Uma obra cinematográfica pode ser grande e bela se usa o classicismo, dependendo, apenas, isso, do talento do realizador na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica. A julgar pela onda desconstrutivista e a mania da fragmentação como conditio sine qua non da artisticidade de um filme, toda a obra de um John Ford, de um Otto Preminger, de um Howard Hawks, de um Raoul Walsh, entre muitos outros, estariam varridas para a lixeira do esquecimento.

Parker tem um impressionante timing, uma maneira cativante de olhar seus personagens, dar-lhes vida e poder de convencimento, senso rítmico que impressiona aliado a sua consciência do ‘conceito de duração’ das tomadas. E, além do mais, coisa rara, o humor está introjetado no ritmo, como podemos ver em O fantástico mundo do Dr. Kellog (The road to Wellville, 1994), com Hopkins, filme também que nem sequer foi lançado no circuito. Talvez porque um cineasta muito fino para o público médio – e, nesse caso, Ariano Suassuna (estou vendo A pedra do reino) tem razão quando disse que a desgraça do artista é quando tenta se moldar ao gosto mediano.

O melhor trabalho de Parker? Mississippi em Chamas (Mississippi burning, 1988) é obra de grande impacto. Mas não podemos esquecer de Coração satânico (Angel heart, 1987), O expresso da meia-noite (Midnight express), A chama que não se apaga (Shoot the moon, 1982), belo filme sobre a crise matrimonial, com Albert Finney e Diane Keaton – por falar nesta, ex-musa de Woody Allen, está ridícula em Alguém tem que ceder, inutilidade plena e absoluta, queima e desperdício de filme virgem perpetrado por uma tal de Nancy Meyers. Mas não gosto de Evita, com Madonna, que é de Parker. Mas não se pode gostar de tudo na vida, não é mesmo?

12 junho 2007

"O bandido", de Sganzerla, em evento freudiano



A Escola Brasileira de Psicanálise, secção Bahia, através da sua Biblioteca do Campo Freudiano, está a convidar aqueles que moram em Salvador para ver O bandido da luz vemelha (1968), de Rogério Sganzerla, um dos mais representativos filmes do cinema brasileiro de todos os tempos, considerado por este bloguista um dos cinco melhores da cinematografia nacional. A exibição faz parte de um ciclo que se encontra sendo desenvolvido pela Biblioteca chamado Cinema e Perversão. A entrada é franca. Sexta que vem, dia 15 de junho, às 17 horas e 30 minutos. O endereço é o seguinte: Avenida Euclides da Cunha, 55 (esquina Rio São Pedro), primeiro andar, no agradável bairro da Graça. Para maiores informações procurar Marcela Antero no telefone: 3235.9020 e 3235.0080. A loucura maior é que eu, André Setaro, com minhas ferramentas, é que vou tentar fazer uma análise desse discurso.
Para ver o cartaz ao lado basta dar um clique nele, que se abre numa outra janela para se poder visualizar o que está escrito, considerando que o upload da imagem deixou-a apertada, sem que se possa ler o que está dito.

10 junho 2007

A crítica como exercício da inteligência







Texto escrito quando do lançamento do livro de Moniz Vianna, a descontar, portanto, o tempo empregado.

A aparição em livro da reunião das críticas de Antonio Moniz Vianna se torna, desde já, o acontecimento editorial, em relação às obras que tratam do cinema, mais importante do ano, pois se trata de uma coletânea que contém a quintessência do maior crítico cinematográfico de todos os tempos, que pontificou, diariamente, no Correio da Manhã, de 1946 e 1973. Abandonou a crítica neste ano, quando da morte de John Ford, seu cineasta favorito, escrevendo logo um texto e se despedindo dos leitores. Antonio Moniz Vianna, no entanto, acaba de completar 80 anos, com a lucidez e a consciência inabaláveis. Mas há três décadas preferiu o exílio voluntário de seu apartamento em Copacabana. Na época de sua saída, decepcionado com a crise criativa do cinema contemporâneo, não viu mais razão de continuar na labuta diária da crítica. Para ele, o apogeu do cinema se deu entre 1912 e 1962, acontecendo, a partir daí, o seu perigeu. Pertenceu à geração dos grandes críticos, homens cultos, preparados, dedicados, com profundo amor pelo cinema, a exemplo de Walter da Silveira, aqui na Bahia, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva, entre muitos outros. Moniz, no entanto, ao contrário de Walter, que se poderia chamar de ensaísta – e um grande ensaísta de cinema, diga-se de passagem, era um verdadeiro crítico. O título do livro editado pela Companhia das Letras não poderia ser mais exato e significativo: Um filme por dia, porque Moniz Vianna, antes de tudo, era um crítico do batente diuturno, que copiava as fichas técnicas dos filmes – completíssimas – no escuro da sala de projeção com uma caneta na mão.

(Antonio Moniz Vianna nasce em Salvador em 1924, mas desde os 11 anos se transfere para o Rio de Janeiro, e, mais tarde, antes do jornalismo, ingressa na Faculdade Nacional de Medicina. A partir de 1946 começa a assinar críticas de cinema no Correio da Manhã, vindo, nos anos 60, a ocupar, neste prestigioso matutino carioca, o cargo importante de redator-chefe. Entre 1956 e 1965, é diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, quando organiza importantes e inéditas mostras (para a época) dos cinemas americano, francês, italiano, e russo, que, até hoje, para aqueles que tiveram a sorte de vê-las, ainda se encontram guardadas na memória. Moniz, por exemplo, trouxe, pela primeira vez, em 1958, uma cópia de Cidadão Kane ao Brasil, apesar dessa obra-prima de Orson Welles ser de 1941. Vieram também cópias de obras essenciais como as de Griffith (O nascimento de uma nação, Intolerância), os primeiros filmes de Méliès e Lumière, as obras fundamentais do neo-realismo italiano e do realismo poético francês, além dos filmes da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin, Dovjenko, Dziga Vertov, etc). Em 1965, organizou o maior festival de cinema que o Brasil já conheceu: o Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, cujo júri, para se ter uma idéia, entre outros, era composto por monstros sagrados como Fritz Lang, Joseph Von Stenberg, Vincente Minnelli. Nunca, em momento algum de nossa história, houve, no país, festival de tal envergadura).

Das seis mil e tantas colunas que, segundo o crítico Paulo Perdigão, foram escritas pelo mestre, apenas setenta e poucas, após processo de seleção rigoroso efetuado por Ruy Castro e pelo neto do autor, Eduardo Moniz Vianna, constam de Um filme por dia, obra imprescindível e obrigatória que nenhuma pessoa que se queira cinéfila pode deixar de adquirir. Crítico de choque, de estilo admirável – somente comparável aos grandes escritores, Moniz Vianna, apesar dos insistentes apelos dos amigos e de editoras, sempre se recusou a publicar seus escritos. Uma de suas filhas, Isadora, chegou, há alguns anos atrás, a lhe pedir, mas o pai não lhe atendeu. Quem conseguiu o grande feito foi seu neto, Eduardo, que, afinal, entrando no arquivo secreto do crítico, e ajudado pelo especialista Ruy Castro, selecionou o material. Pena que a publicação abarque apenas um por cento do que Moniz escreveu por toda a vida. Mas o que se encontra em Um filme por dia é caviar, delicatessen em matéria de crítica cinematográfica.

(Em plena adolescência, em 1964, aos 14 anos, conheci Antonio Moniz Vianna através das páginas do Correio da Manhã. Os jornais do eixo Rio-São Paulo, naquela época, somente eram vendidos na Praça Municipal na Banca do Careca e, aos domingos, religiosamente, comprava o Correio da Manhã para ler Moniz Vianna, principalmente as suas completas filmografias que eram publicadas no Quarto Caderno – o maior suplemento cultural do Brasil, batendo, mesmo, o do Estado de São Paulo e o afamado SDJB (Spuplemento Dominical do Jornal do Brasil). Ficava estupefato (esta, a palavra) como um filme podia ser dissecado com tanta erudição por um crítico. Admirava, em Moniz Vianna, o seu imenso conhecimento do assunto e, principalmente, a maneira dele escrever, o seu estilo, admirável. Moniz, como disse um amigo, e discípulo, Paulo Perdigão, era um crítico de choque).

Moniz Vianna, respeitadíssimo em sua época, era, por outro lado, marginalizado pelos cinemanovistas. Glauber Rocha tinha por ele grande admiração, mas se aborreceu com a sua crítica demolidora a Terra em transe, que Moniz espinafrou – aliás sem razão, pois se trata do melhor filme brasileiro de todos os tempos. O grande crítico, porém, tinha lá suas idiossincrasias, predileções, manias. Adorava John Ford a ponto de deixar a coluna diária no Correio da Manhã assim que soube de seu falecimento. “O cinema acabou”, disse, na época, o polêmico articulista que além de crítico era, também, redator-chefe do jornal por longos anos.

(A crítica de cinema, hoje, como praticada por Moniz Vianna, Rubem Biáfora Paulo Emílio Salles Gomes, Cyro Siqueira, Walter da Silveira, José Lino Grunewald, Paulo Perdigão, entre muitos outros, não mais se exercita nos tempos que correm. O que se vê, atualmente, são resenhas e comentários, a maioria delas vinculada à propaganda dos últimos lançamentos da indústria cultural cinematográfica made in Hollywood. Os estudos mais aprofundados sobre a arte do filme se encontram nos calhamaços das dissertações e teses de mestrados e doutorados e, mais recentemente, no espaço virtual. Os jornais, decadentes, não se interessam a dar espaço para reflexões sobre o cinema, preferindo textos que funcionem como guias de consumo. Mas, neste particular, a internet tem oferecido a oportunidade para o aparecimento de sites comprometidos com a reflexão teórica. De qualquer maneira e de qualquer forma, o fato é que, com a decadência da cultura humanística, os acadêmicos-críticos, ou os críticos acadêmicos, não possuem mais um estilo atraente na exposição da matéria, condicionados que ficam pelos grilhões da linguagem da academia, uma verdadeira camisa-de-força que impede o livre exercício do pensamento livre de amarras. Vale transcrever, aqui, o que escreveu o jornalista Getúlio Bittencourt sobre Antonio Moniz Vianna: “Em quantidade, apenas o americano Bosley Crowther, do The New York Times, se apresenta com tamanho similar (ambos somam 28 anos de ofício cada). Em termos de qualidade, será preciso buscar nomes na França para encontrar, dispersos, predicados comuns em Moniz Vianna: André Bazin pela profundidade de análise, Georges Sadoul pelo conhecimento enciclopédico. Já na elegância do texto, só se pode comparar Moniz Vianna com grandes escritores que se dedicaram ocasionalmente à crítica de cinema, como o argentino Jorge Luis Borges na revista Sur, o inglês Graham Greene no The Spectator de Londres, o americano James Agee na revista Time, o colombiano Gabriel García Márquez no El Espectador de Cartagena”).
Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a crítica de cinema foi substituída pelos comentários e resenhas, assim como a literária, de rodapé, também já não mais existe. O jornalismo dito cultural, hoje, está muito atrelado ao mercado, perdendo, com isso, a independência. Na Bahia, por exemplo, não existe crítica de arte. Os artistas querem ser badalados, elogiados, tietados, e quando alguém, por acaso, os critica há, sempre, uma indisposição, uma vontade de nomear aquele que diz que o rei está nu como um maledicente. Moniz Vianna foi um bravo guerreiro e um crítico como ele já não mais existe na sociedade contemporânea ou, como se quer agora, na contemporaneidade. Os escritos de sua autoria reunidos em Um filme por dia revelam não apenas um imenso estilista e um erudito nas coisas do cinema, mas refletem, também, o espírito de uma época. Que o vento, já saturado, levou-a para sempre. Resta, agora, a recusa à banalidade ululante da cultura ou a aceitação passiva, mascarada de uma alegria debilóide, a justificar que os tempos pós-modernos abrigam um contingente maciço da dementia precox.