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07 fevereiro 2009

Ainda São Moniz Vianna

Não resisto a transcrever dois artigos sobre São Moniz Vianna que saíram hoje, sábado, 7 de fevereiro, no Estado de S.Paulo. Um é de Sérgio Augusto e o outro de Ely Azeredo. E pensar que tem gente metida a crítico que nunca ouviu falar de Moniz Vianna!!
ELY AZEREDO
Criou o hábito da leitura diária de análises críticas
Nos anos 50 e 60, o Brasil pode ostentar, no jornalismo diário, críticos de cinema que não perdiam para seus pares de países mais desenvolvidos. Não tínhamos um time de ensaístas porque não contávamos com revistas especializadas tipo Sight and Sound ou Cahiers du Cinéma. O grande fator desse boom foi a estreia de Moniz Vianna no Correio da Manhã, em 1946. Seu texto apaixonado e a tenacidade de suas críticas cotidianas, altamente informativas, na primeira coluna fílmica da imprensa brasileira com espaço tão sagrado como o dos editoriais, criou o hábito da leitura de análises críticas.
Moniz se antecipou, sem teorização, à "política dos autores", defendida pelos Cahiers du Cinéma, trocando em miúdos para o leitor as características narrativas e estilísticas dos diretores. Antes de Moniz, o leigo só reconhecia os estilos dos atores ou de alguns diretores destacados na publicidade: um Hitchcock ou um Frank Capra. Também foi intelectualmente brilhante na "torcida": sabia encontrar digitais de seus cineastas favoritos até nas encomendas mais anódinas dos estúdios.
Graças a Moniz e seus colaboradores fiéis, os fãs (e também críticos e cineastas) descobriram a história e a estética de cinematografias como a italiana, a francesa e a americana nas maravilhosas retrospectivas que a Cinemateca do MAM trouxe ao Brasil.
Nunca alcançou a graça de reconhecer a identidade e a importância cultural da produção brasileira: abriu exceção apenas para meia dúzia de diretores capazes de sustentar um diálogo inteligente com ele. Por outro lado, quando ocupou cargos em órgãos de cinema, batalhou seriamente pelo fomento à produção.
Ely Azeredo é crítico de cinema, criador da expressão Cinema Novo e autor de Infinito Cinema, entre outros livros
SÉRGIO AUGUSTO
O homem que melhor nos ensinou a ver um filme
Com a morte de Antonio Moniz Vianna, em janeiro, o País perdeu o seu mais influente, elegante e incisivo crítico

Um minuto de silêncio precedeu o jogo do Flamengo contra o Volta Redonda, domingo passado, pelo Campeonato Carioca. Quantos dos presentes no Maracanã conheciam, ainda que vagamente ou só de nome, Antonio Moniz Vianna?, perguntei-me ao saber da homenagem, seguro de que jamais teria uma resposta satisfatória. Moniz Vianna, morto na madrugada do último sábado de janeiro, aos 84 anos, não era uma celebridade, apenas um dos mais ilustres torcedores do Flamengo, sua maior paixão depois do cinema. Célebre ele fora em décadas passadas e famoso há de ficar como o primeiro crítico de cinema brindado com um minuto de silêncio no Maracanã.
Se vivêssemos no melhor dos mundos, todas as salas de exibição brasileiras também lhe teriam prestado alguma forma de homenagem em suas matinês do último domingo, pois o cinema lhe deve mais, muito mais, tributos que o futebol do Flamengo.
Moniz foi, simplesmente, o mais influente crítico de cinema do país. Não há controvérsias sobre o que acabo de afirmar. Ele não só escrevia todos os dias, sobre quase todos os filmes em cartaz, como seus comentários, quase sempre tomando duas ou mais colunas de alto abaixo do jornal, saíam no então mais lido diário de circulação nacional, o Correio da Manhã. Isso numa época (de 1946 ao final dos anos 60) em que, no mundo inteiro, a crítica de cinema diária era curta, ligeira e pedestre
.
Seus competidores, portanto, não foram Bosley Crowther (por longo tempo o principal crítico do New York Times) ou Louis Chauvet (idem do France-Soir), mas aqueles, mais ensaísticos, com mais tempo para escrever e espaço para se espalhar em publicações semanais, mensais e especializadas, como André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze (que dividiam a seção de cinema do L?Observateur, futuro Nouvel Observateur), James Agee (Time), Otis Ferguson (The New Republic), Robert Warshow (Partisan Review), Manny Farber (The Nation). Daí porque boa parte dos cineastas (Nicholas Ray, Robert Aldrich, Budd Boetticher, os que trabalharam na unidade de Val Lewton, na RKO) cuja descoberta costuma ser atribuída aos franceses, notadamente aos da revista Cahiers du Cinéma, foram na verdade "revelados" por Moniz.
Como escrevia com extrema elegância, incisividade e inigualável erudição, pois, afinal de contas, via de tudo, ao contrário dos franceses, que ficaram, por alguns anos, alheios ao que Hollywood produziu durante a 2ª Guerra, e dos americanos, com limitada intimidade com a produção comercial europeia, conquistou admiradores da Amazônia ao Rio Grande do Sul. Influenciou duas ou três gerações de críticos, alguns dos quais discípulos diretos, como Valério Andrade (que, aos 20 anos, se mandou de Natal, no Rio Grande do Norte, para conhecer o mestre pessoalmente, tornando-se, ainda em 1959, seu primeiro assistente na coluna do Correio da Manhã), Walter Lima Jr., Paulo Perdigão, e, mais tarde, Ruy Castro. Foi também o "wagonmaster" de toda uma linhagem de críticos surgida no início dos anos 1950, no Rio (Ely Azeredo, Décio Vieira Ottoni), em Belo Horizonte (Cyro Siqueira, Mauricio Gomes Leite), e onde mais o Correio da Manhã pudesse ser lido.
Ainda do tempo em que a palavra fita era sinônimo de filme, Moniz preferia chamar de cenário (do francês "scénario") o que há tempos chamamos de roteiro e também só em francês (e no masculino) se referia à montagem ("o montage"). Passou anos traduzindo "novel" por novela, em vez de romance, até que, à falta de reclamações ou cobranças para as quais guardara uma explicação etimológica arrasadora, capitulou ao termo corrente. Tinha especial apreço pelo adjetivo "admirável", peculiaridade que só fui notar relendo a única coletânea de suas críticas, reunidas, em 2004, por Ruy Castro: Um Filme Por Dia (Cia. das Letras).
Venerava John Ford. Não procede, contudo, que em sua lista dos "dez melhores filmes de todos os tempos" figurassem 11 ou 12 criações de Ford. E não foi ele quem, instado a indicar os três maiores gênios do cinema, respondeu: "John Ford, John Ford e John Ford." Se o fizesse, estaria plagiando Orson Welles. Seu filme predileto sempre foi Aurora, de Murnau.
Mas ao genial irlandês do Maine reservou o melhor altar de sua catedral. Acima de todos, O Delator (The Informer), seguido, mais ou menos nesta ordem, por No Tempo das Diligências (Stagecoach), Depois do Vendaval (The Quiet Man); O Sol Brilha na Imensidade (The Sun Shines Bright) - isto mesmo, na imensidade, e não na imensidão; Como Era Verde o Meu Vale; A Longa Viagem de Volta; O Homem que Matou o Facínora; Rastros de Ódio (The Searchers). Sua última crítica, no Correio da Manhã, publicada em 9 de setembro de 1973, foi, justamente, sobre John Ford, , que morrera 10 dias antes.
Fui também seu assistente, junto com Valério Andrade, no começo dos anos 1960, suprema conquista profissional acalentada desde os 14 anos, quando, por acaso, bati os olhos na primeira crítica assinada por ele, e, mesmerizado pela leitura, decidi ali mesmo o meu destino. Moniz foi meu maior mestre, meu mentor. Era uma figura mítica, assaz fordiana: rigoroso e gentil, ranheta e bem-humorado, um pouco como o pater famílias encarnado por Donald Crisp em Como Era Verde o Meu Vale. Divergíamos em muitas coisas (inclusive no futebol); quase entramos em rota de colisão por causa da crítica ("demasiado sionista") que fizera de Exodus, de Otto Preminger; e para alguns dos cineastas brasileiros que ele mais apreciava (Lima Barreto, Jorge Illeli, Rubem Biáfora, Walter Hugo Khouri) eu vivia torcendo o nariz.
Apesar da fama de "inimigo número um do cinema brasileiro", ajudou-o como poucos, e sem favoritismos, quando à frente da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica, no governo Carlos Lacerda, e do Instituto Nacional de Cinema. Não foi o único a atacar, com implacável rigor, a chanchada, achincalhada por todos os críticos em atividade nos anos 1940 e 1950. Até por Alex Vianny, proverbial defensor do cinema brasileiro. Não havia clima nem distanciamento suficiente, naquele tempo, para se avaliar, sem parti-pris, o fenômeno da chanchada. Mas não há dúvida que, de todos os seus detratores, Moniz foi o mais virulento.
Os Fla-Flus, de inegável cunho ideológico, que ainda se promovem entre Moniz e Alex ou entre Moniz e Paulo Emílio Salles Gomes me parecem ociosos, se não estapafúrdios. Paulo Emílio foi um (grande) ensaísta, de produção mais compassada, não um crítico ativo cotidianamente, exposto a escolhas e julgamentos tangidos pela urgência. Moniz e Alex, ao menos, jogavam na mesma liga: eram ambos críticos de militância diária, mas Alex tinha contra si dois fatores: seus textos não possuíam o brilho e o charme dos de Moniz, nem desfrutavam da mesma periodicidade, profusão e difusão. Passo ao largo de suas idiossincrasias ideológicas, vale dizer, de seu tropismo stalinista, porque, em matéria de idiossincrasias, Moniz tampouco era fácil.
Preferia René Clair a Jean Renoir, valorizava De Sica, Visconti e Fellini em detrimento de Rossellini, não trocava Pietro Germi por De Santis ou qualquer outro regista supervalorizado pelo PCI. Implicou, desde o início, com a Nouvelle Vague e o Cinéma-Verité (que considerava uma reciclagem tardia do Cinema-Olho de Dziga Vertov); detestava os atores formados (ou deformados, segundo ele) pelo Actor?s Studio; as produções de Jerry Wald para a Fox; o teatro-filmado de Delbert e Daniel Mann (ambos apelidados de "Little Mann", para evitar confusão com o "grande Mann", Anthony Mann, cujos westerns estrelados por James Stewart adorava); as neuroses de Tennessee Williams ("aquele mal psicanalisado dramaturgo"); as afetações e os modismos da crítica parisiense (desde o final dos anos 1940, quando alguém da La Révue du Cinéma, ancestral do Cahiers, proclamou: "Abaixo Ford! Viva Wyler!").
Moniz foi a primeira pessoa que Glauber Rocha, seu fã ardoroso, procurou, ao chegar ao Rio pela primeira vez. Ficaram amigos, depois brigaram e fizeram as pazes, como bons e passionais baianos (Moniz nasceu em Salvador e veio para o Rio com 11 anos). Estavam brigados quando Moniz elogiou Deus e o Diabo na Terra do Sol e de bem quando Moniz pichou Terra em Transe (a seu ver, "caótico e ininteligível"), o que não impediu que o fero mas generoso crítico, então no INC, se esforçasse para liberar Terra em Transe, proibido pela ditadura militar.

06 fevereiro 2009

"Hagiografia" revisada

Romero Azevedo, professor de cinema de Campina Grande, escreveu um comentário sobre a polêmica que se abateu neste blog sobre São Moniz Vianna. Está publicado no lugar dele (no pop up dos comentários), mas resolvi colocar, aqui, como post, a fim de respondê-lo por partes. A imagem é de um belíssimo Ford: Audazes e malditos (Sergeant Rutledge, 1960) e, na foto, um de seus principais atores: Woody Strode.

"Grande Setaro, no livro Introdução à teoria do cinema, o crítico americano( que você conhece pessoalmente) Robert Stam elenca mais de uma dúzia de teorias que foram sendo formuladas ao longo da história da chamada Sétima Arte( epiteto cunhado pelo crítico italiano Ricciotco Canudo na década de 1910 que, aproveitando a brecha da retirada da Oratória da lista das sete artes clássicas, infiltrou a nascente forma de expressão assentada na tecnologia do momento, a foto-mecânica. Mas o papo aqui é outro, isso quer dizer que existem MUITAS FORMAS DE SE VER, E ANALISAR, O CINEMA E OS FILMES. Moniz Vianna, pelo que li dele de ontem para hoje, só conseguia enxergar( muito bem, diga-se de passagem)um ângulo, o do cinema narrativo clássico produzido em Hollywood. Então, se você considera uma lacuna o não conhecimento da fortuna crítica do homem que você, na qualidade de um dos Papas do cinema, canonizou, também deve considerar como tal o desconhecimento da obra crítica de Rocha, Sganzerla, Bernardet, Stam, Ferreira, Avellar, Stepple, Setaro, Merten, Zanin, Machado, Nazário, Salles Gomes etc etc etc.

Caríssimo Romero. Em primeiro lugar, não cabe meu nome entre os citados, pois me considero apenas um mero cinéfilo que se meteu a escrever sobre cinema e até mesmo a querer ensiná-lo na universidade, como se isto fosse possível. É verdade que Moniz Vianna era um crítico adepto da narrativa clássica nos moldes da progressão dramática de David Wark Griffith, e, conforme ele mesmo disse em entrevista, gostava de filmes que contassem bem uma história. Não via necessidade em que se fizessem filmes que desestruturassem a narrativa e sempre, e desde o princípio, abominou Godard (o que acho grave erro, bem entendido). Acredito que não gostaria dos filmes posteriores de Sganzerla, a exemplo de Sem essa aranha, Mijou fora do baralho, Copacabana, mon amour, entre outros. Gostaria, se vivo fosse, do recente Cleópatra, de Júlio Bressane? Acredito que não. Pessoalmente, gosto de alguma coisa do cinema underground, mas não de tudo. O que sempre apreciei em Sâo Moniz Vianna era o seu estilo brilhante, a ironia no subtexto, a fluência, que davam, a seus escritos, um grande prazer da leitura (o que é difícil hoje com a falência da cultura literária).

Quando Ruy Castro, que conseguiu a façanha de escrever um livro sobre a bossa nova sem entrevistar João Gilberto ( algo como fazer uma enciclopédia do futebol brasileiro e deixar Pelé de fora), disse que Moniz Vianna era " o maior crítico de cinema do mundo", esqueceu de acrescentar " de filmes clássicos narrativos produzidos em Hollywood"

Concordo com você. Mas talvez você não saiba que Moniz, ou, para ser mais exato, São Moniz Vianna, ajudou muito na divulgação das grandes obras do cinema através do cineclubismo (naquela época fundamental e hoje completamente dispensável) e dos festivais que patrocinou na Cinemateca do MAM de filmes russos, italianos, americanos, etc. Há um capítulo sobre ele em um dos volumes das críticas de Paulo Emílio Salles Gomes publicadas no Suplemento Literário do Estado de S.Paulo, organizados por Zulmira Ribeiro Tavares. Além do mais, São Moniz Vianna organizou, como já disse aqui no blog, os dois maiores festivais de cinema que o Brasil conheceu na década de 60.

A xenofobia do velho escriba do Correio da Manhã era tão acentuada que o impediu de ver a presença de John Ford( seu ídolo maior) nos planos gerais e nas panorâmicas épicas de Deus e o diabo na terra do sol e no mais que fordiano tiroteio na porta da igreja de Milagres em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Além disso, tem muito de Uncle Ethan em Antonio das Mortes( a solidão, que você destacou em manchete, é uma das características que une, não por acaso, os dois personagens.)
Respeito, já disse, o mito Vianna, mas não aceito essa miopia deformante( perdoe a redundancia) que, a pretexto de louvar o morto durante o velório, pretende tornar invísível os demais convidados.

Desculpe, mas Moniz destacou os acentos fordianos de Deus e o diabo na terra do sol. Um de seus discípulos, Paulo Perdigão, tem o melhor ensaio feito sobre o filme de Glauber Rocha publicado em um livro da Biblioteca Básica de Cinema (BBC), coleção organizada pela Civilização Brasileira, sob a direção de Alex Viany, com o mesmo nome da obra glauberiana. Na década de 60, a xenofobia era intensa e reinava a questão ideológica. Muitos militantes de esquerda (entre os quais era simpatizante, mas sem o sectarismo que vou apontar, nunca deixando de apreciar o bom e velho cinema made in Hollywood) consideravam o cinema americano imperialista e procuravam massacrá-lo, a fechar os olhos para os bons filmes numa atitude radical. Para eles, São Moniz Vianna não passava de um homem de direita e um grandisíssimo reacionário.

Os olhos de Moniz Vianna se fecharam para sempre, os nossos( como os mil olhos do Dr. Mabuse) continuam abertos e os filmes estão aí para serem vistos e analisados.
Em tempo: ví agora, com um certo atraso involuntário, o "Eu me lembro" de Edgar Navarro, e já o inclui na minha lista de melhores filmes brasileiros de todos os tempos

Vejam grande entrevista do santo homem feita há poucos anos por Evaldo Mocarzel em:

http://www.criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?artigo=1097

Acrescento a este post um artigo de Fabiano Canosa, o grande programador do cinema Paissandú. Ele tem um blog, o Cine Glória.

Fico sabendo que morreu semana passada Antonio Moniz Vianna. Moniz foi um dos maiores críticos de cinema que o Brasil já teve. Articulado, profundo conhecedor do cinema de Hollywood, ele formou centenas de cinéfilos com seus comentários e suas opiniões sobre os caminhos do cinema internacional, motivando uns, provocando outros, mas expondo suas teorias com a convicção de um born again missionário.

Nunca o cinema clássico foi tão bem servido como nas suas copiosas contribuições para o "Correio da Manhã", onde o leitor podia encontrar as mais apaixonadas defesas das obras-primas de John Ford, Hitchcock, Kubrick, Griffith e Stroheim. Sua participação na vida cultural do Rio nos anos cinqüenta foi inestimável: muitas vezes ele recomendava filmes fora dos grandes circuitos, escondidos pelas distribuidoras, como que envergonhadas de seus próprios lançamentos.Na época, os dois maiores críticos eram Moniz e Alex Viany (um Fla x Flu, Marlene x Emilinha).

Era um confronto sério, mortal, que não dava lugar a prisioneiros. Porque Moniz pertencia a uma direita que não existe mais: inteligente, perspicaz, de um humor ácido, bem parecido com Nelson Rodrigues, trocando a "vida como ela é" pela "vida como o cinema é". Havia ate uma certa ingenuidade em seus afetos e desafetos, mas ele era apaixonado e convincente, e isso nos possibilitava dar outra leitura ao filme que ele recomendava.Sua aversão ao Cinema Novo foi seu maior pecado: ele não viu naquele cinema forte, empolgado e politizado, o início de uma tradição, que nos seus ramos retorcidos e seu fluxo vertical, uma mata sul-atlântica se formava. (Paradoxalmente, ele gostou de "Deus e o Diabo").

É sempre conveniente falar bem dos mortos, mas tal honra-seja-feita não é a minha praia. Moniz foi nefasto quando trocou seu amor pelo cinema pela burocracia das agências de cinema que queriam controlar a explosão do Cinema Novo. Sifu.No entanto, ele conseguiu realizar o primeiro Festival Internacional de Cinema do Rio (em 65) e seu irrestrito apoio a retrospectivas dos cinemas americano, francês e italiano no Museu de Arte Moderna do Rio em 1958/60 são marcos na cultura cinematográfica da cidade.A Moniz o que é de Moniz: um louco-por-cinema cuja dedicação à critica cinematográfica foi um Zenith na curva descendente a que estamos acostumados hoje em dia.

Um PS pra galera: eu era da turma do Alex.

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05 fevereiro 2009

Com Moniz desaparecem a graça, a espirituosidade e a ironia

Pelo que estou a ler por aí, pouca gente conheceu ou ouviu falar de Antonio Moniz Vianna, exceção se faça às pessoas mais velhas, o que significa uma lacuna na formação cinematográfica. Até meu amigo Romero, que julgo entender da arte do filme, diz, em comentário, que não leu São Moniz Vianna. O fato é que, ironias à parte, apesar de ter minha formação cinematográfica muito influenciada pelo crítico desaparecido, nunca comunguei de todas as suas opiniões, principalmente às referentes ao Cinema Novo, do qual fui um entusiasta na medida do possível, a apreciar as obras de Glauber, Leon, Saraceni, Guerra, entre outros. Há os grandes filmes cinemanovistas e existem, como em tudo na vida, as obras pachorrentas, que se aproveitam da onda para aporrinhar os espectadores. Moniz Vianna gostava de provocar e produzir frases de efeito. E, com isso, aborrecia muita gente. A revista Filme/Cultura, acho que em seu número 35, dedica-o à crítica de cinema e faz uma homenagem ao mestre que se foi. Há depoimentos de Carlos Diegues, Paulo Perdigão, Arnaldo Jabor, entre outros, que confessam a influência decisiva de São Moniz Vianna.

A adesão total ao cinema americano de Vianna era inegável, mas também admirava muito o cinema italiano (prinpalmente Federico Fellini) e era fã confesso de René Clair. Naquela época, a crítica mais enragé se dividia, em torno do cinema francês, entre René Clair e Jean Renoir. Vianna ficava com Clair em oposição ao realizador de La règle de jeu. Na segunda metade dos anos 60, e bato este post de memória e no afogadilho da pressa, havia dois conselhos de cinema: um, no Correio da Manhã, e outro no Jornal do Brasil. Cada conselho reunia em média dez críticos que, uma vez por semana, além do quadro das cotações estreladas, estabelecia comentários em torno de um filme importante da semana (ao contrário dos dias de hoje, havia sempre um filme importante sendo exibido na semana). Dos críticos do Correio, que possa me lembrar agora, todos eram liderados por Moniz, ainda que, mais tarde, tenha havido certa dissidência, como sói acontecer em tudo que se refere à natureza humana. Ironildes Rodrigues, Paulo Perdigão, Van Jaffa, Valério Andrade (este, fã de carteirinha de São Moniz Vianna, jornalista, deixou a cidade onde nasceu, Natal, para ir ao Rio conhecer o santo homem), Ronald. F. Monteiro (acho que tenho um recorte com os nomes de todos os críticos, mas a preguiça domina o escrevinhador), etc. Não me lembro agora se o conselho do Correio da Manhã era simultâneo ao do Jornal do Brasil. Creio que o deste surgiu com o fim do outro. No JB, o jornal mais importante da época - seu Caderno B era literalmente devorado,. o conselho era composto por Alberto Shatovsky (que depois se tornaria empresário e instalaria no mercado exibidor os saudosos Cinema 1 [na Prado Junior] e o Cinema 2 [na rua Raul Pompéia], ambos em Copacabana), Ely Azeredo (o responsável pela denominação Cinema Novo, estilista admirável, mas olhado de esguelha e de soslaio pelos mais avançados), Sérgio Augusto, José Carlos Avellar, Valério Andrade, Miriam (como é mesmo o outro nome dela?), Alex Viany, Maurício Gomes Leite (realizador de uma das obras-pirmas do cinema brasileiro: A vida provisória), etc.

A questão ideológica era muito forte naquela época. O cinema tinha um status político que perdeu totalmente. Era o tempo da famosa Geração Paissandú. Jean-Luc Godard dava as cartas para a constelação estelar do conselho do JB no qual Maurício Gomes Leite talvez tenha sido o godardiano mais eloquente. Moniz não participava dele, mas seus discípulos, ou suas crias, como se dizia, penduravam no conselho muitas bolas pretas, a exemplo do fiel seguidor Valério Andrade. Glauber, via Paulo Perdigão, mostrou, em sessão especial, Deus e o diabo na terra do sol para Moniz Vianna, que o viu e se entusiasmou. Também elogiou O dragão da maldade contra o santo guerreiro.

Bem, o problema de hoje reside no politicamente correto e na falta de senso de humor. O que mais faz falta no magister Vianna está justamente na sua imensa capacidade de provocar e de colocar, em seus escritos, a pena da ironia. Com um estilo somente comparável ao dos grandes escritores.

A imensa solidão do Tio Ethan

Moniz Vianna sabia que John Ford estava com câncer de pulmão. Conta a lenda que, na redação do Correio da Manhã, teria dito que no dia da morte de seu diretor favorito também largaria a crítica de cinema. Morto Ford, e aqui não é mais lenda, lembro-me de ter comprado o Correio, que publicava no seu caderno cultural uma página inteira sobre Ford escrito por Moniz Vianna. Devo ter guardado, mas difícil achar na bagunça em que estão arrumados meus recortes de jornais. Interessante que antigamente recortava algumas críticas que achava importantes. Hoje não recordo nada. Por que será? Conta-se que, abandonada a escrita cinematográfica, o grande crítico se aposentou, ainda que, vez por outra, fosse ao cinema. O hábito, no entanto, foi se acabando. No final da vida, via muito dvds em seu apartamento de Copacabana e, para satisfazer seu neto, concordava em ver determinados filmes escolhidos pelo descendente. Ontem, na Folha de S. Paulo, Carlos Heitor Cony escreveu sobre o amigo, companheiro de redação. E hoje, no mesmo jornal, Ruy Castro, que o chama de o maior crítico de cinema do mundo. Ainda continuo a homenagear Moniz Vianna, que, por sinal, era baiano, mas desde cedo se transferiu para o Rio de Janeiro. Formou-se em Medicina, mas se atraiu logo pelo jornalismo e, neste, pela crítica de cinema. Moniz Vianna teve muita influência na minha formação cinematográfica, porque seu leitor voraz. Não seria exagero dizer que o pouco que sei escrever devo a Moniz Vianna e a Machado de Assis, além de Walter da Silveira. Três estilistas admiráveis. Pena que a nova geração não tenha tido a oportunidade da leitura dos textos de Moniz Vianna. Mas há uma possibilidade com o lançamento, já há quatro anos, de Um filme por dia (Companhia das Letras), coletânia de suas melhores críticas organizada por Ruy Castro. É uma obra imprescindível. Lia tanto Moniz Vianna que chegava a dizer, ainda adolescente, quando me perguntavam o que queria ser quando crescer. A resposta vinha rápida: "Quero ser um Moniz Vianna!!"
Na imagem, John Wayne, no plano final do belíssimo Rastros de ódio (The seachers), talvez a obra máxima de John Ford. Depois de ter resgatado Natalie Wood, nada mais lhe resta fazer na vida. Imagem rara da solidão humana e da beleza e da poesia fordianas.

04 fevereiro 2009

Os melhores filmes de Moniz Vianna

As listas que se seguem foram retiradas da extinta revista Filme/Cultura 7 (outubro/novembro de 1967), que promoveu, entre os principais críticos brasileiros, duas enquetes a respeito dos melhores filmes de todos os tempos e os melhores brasileiros. Há 42 anos, portanto. Moniz Vianna, que se aposentaria da crítica 6 anos depois, em 1973, não creio que tivesse muitas modificações a fazer, a considerar que após a sua ex-abrupta saída do Correio da Manhã deixou de acompanhar os lançamentos e, com o passar do tempo, quase que abandonou a ida aos cinemas não fosse para levar o neto, Eduardo Moniz Vianna, o responsável pela autorização para a publicação de seus escritos em Um filme por dia, coletânea organizada por Ruy Castro, que levou alguns anos em tentativas infrutíferas para o grande crítico dar seus escritos à publicação. Moniz Vianna tinha admiração por John Ford, a ponto de, quando este morreu, em 1973, tomasse a decisão de se retirar do batente crítico. Não é de admirar, pois na sua lista dos 20 melhores da história do cinema, 5 são de autoria do realizador de Rastros de ódio (embora este não conste). Na relação dos filmes nacionais, vale destacar a inclusão de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, que Moniz soube-lhe reconhecer os méritos inegáveis. A crítica que feriu Glauber foi a de Terra em transe. Mas vamos ver as listas.

OS 20 MELHORES DE TODOS OS TEMPOS
1) Aurora (Sunrise, 1927), de Friedrich Wilhelm Murnau
2) O delator (The informer, 1935), de John Ford
3) Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles
4) No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford
5) Punhos de campeão (The set up, 1949), de Robert Wise
6) Intolerância (Intolerance, 1916), de David Wark Griffith
7) Depois do vendaval (The quiet man, 1952), de John Ford
8) M, O vampiro de Dusseldorf (1930), de Fritz Lang
9) Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), de Orson Welles
10) O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer
11) A doce vida (La dolce vita, 1960), de Federico Fellini
12) A última gargalhada (Der letzte mann, 1925), de Murnau
13) Le million (1930), de René Clair
14) Consciências mortas (The Ox-Bow incident, 1943), de William A. Wellman
15) O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962), de John Ford
16) 8 e 1/2 (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini
17) O tesouro de Sierra Madre (The treasure of Sierra Madre, 1948), de John Huston
18) Matar ou morrer (High noon, 1953), de Fred Zinnemann
19) O sol brilha na imensidade (The sun shines bright, 1953), de John Ford
20) Morangos silvestres (Smulstronstallet, 1957), de Ingmar Bergman

OS 10 MELHORES FILMES BRASILEIROS
1) O cangaceiro (1953), de Lima Barreto
2) Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khoury
3) Amei um bicheiro (1953), de Jorge Ileli
4) Todas as mulheres do mundo (1966), de Domingos Oliveira
5) Ravina (1957), de Rubem Biáfora
6) O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte
7) Mulheres&Milhões (1961), de Jorge Ileli
8) Ganga Bruta (1932), de Humberto Mauro
9) O corpo ardente (1966), de Walter Hugo Khoury
10Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha

01 fevereiro 2009

Morre o grande Moniz Vianna




Hoje de manhã, ao abrir o computador, recebo a mensagem de Marcelo V, autor do excelente blog Cinema cuspido e escarrado, que me comunica a morte do grande crítico carioca Antonio Moniz Viana. A bruxa está solta, pois há poucos dias tivemos o falecimento do Professor José Tavares de Barros e de Rudá de Andrade. Mas que me perdoem os leitores: estes, ainda que homens cultos, competentes e inteligentes, estão muito longe da verve, da ironia, da escrita singular, da erudição cinematográfica de Moniz Vianna. Eis a comunicação de Marcelo V. Moniz morreu aos 84 anos, mas há muitas décadas já tinha abandonado a crítica (o que ocorreu em 1973).


"Caro prof. Setaro, lamento informar que faleceu na manhã de hoje o crítico Antonio Moniz Vianna. Falei há pouco com sua filha Isadora, para a matéria que assino no Estadão de amanhã, e ela, muito emocionada, confirmou a informação, chamando o pai de "o inventor da crítica de cinema no Brasil". Abraços."
Foi criada no Orkut uma comunidade em memória do ilustre crítico carioca: http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=81903581

Cinema Baiano (15): Alexandre Robatto Filho por Tadeu Bahia



Tadeu Bahia, sobrinho de Alexandre Robatto, Filho, o pioneiro do cinema baiano, que está sendo homenageado pela família pelo transcurso de seu centenário, escreveu um belo artigo sobre o tio que faço questão de publicar neste domingo dedicado à cinematografia desta terra. A leitura do texto traz informações importantes e afetuosas sobre a figura singular de Dr. Robatto. Abrindo as devidas e imprescindíveis aspas:

"Quem já leu as páginas deliciosas de apimentadas do romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, do escritor Jorge Amado, já deve ter tido a oportunidade de conhecer uma das inúmeras e infinitas facetas do Alexandre Robatto Filho.

Nascido em 04 de novembro de 1908 na Praia do Cantagalo, Freguesia dos Mares, em Salvador, estado da Bahia, era filho de Alexandre Robatto que exercia a profissão de protético na então pacata cidade de Salvador, (de descendência italiana pelo lado paterno) e da Da. Camilla Rocha Robatto que era natural de Saubara, pequena localidade praieira localizada no Recôncavo Baiano, até há pouco tempo pertencente ao município de Santo Amaro da Purificação.

A Da. Camilla Robatto era natural de Saubara, sendo uma das filhas do segundo casamento da Sra. Perpedigna Amélia da Cunha Rocha com o Prof. Ernesto Rocha. A Sra. Perpedigna Amélia da Cunha Costa - que seria a avó materna do futuro cineasta baiano Alexandre Robatto Filho – havia contraído as primeiras núpcias com o Ignácio de Jesus Costa e com este tivera quatro filhos, a saber: Alcebíades da Cunha Costa, Eud

óxia da Cunha Costa, Perpedigna da Cunha Costa e Ana da Cunha Costa (Naninha).

Todavia, o seu primeiro marido, Ignácio da Cunha Costa, teve uma morte prematura (insuficiência cardíaca) o que levou a Perpedigna Amélia da Cunha Costa a contrair suas segundas núpcias com o Prof. Ernesto Rocha, filho do Padre Camilo Rocha que era então vigário da Freguesia de Saubara.

Desse seu segundo casamento com o Prof. Ernesto Rocha, ela teve mais duas filhas: a primeira foi a Camila Robatto (note-se a “homenagem” ao avô-Padre!) que seria a mãe do futuro cineasta Alexandre Robatto Filho e da sua irmã Cibele Robatto. A segunda filha seria a Ernestina Rocha (Sinhá ou Sassá como era tratada carinhosamente nos círculos familiares) que não casou, mas no papel de tia – avó ajudou com paciência e ternura a criar mais de duas gerações.

Mas voltemos ao Alexandre Robatto Filho! Desde criança já mostrava que tinha uma inteligência rara e brilhante, formando-se ainda muito jovem em Odontologia, logo iniciando a sua profissão. Porém, ao lado da atividade de cirurgião-dentista, dedicava-se às artes de uma maneira plena e desbragada. Era um verdadeiro artista no sentido mais lato da palavra e exercia com grandiosidade e eloqüências esses atributos divinos que o Criador lhe concedeu.

Inicia as suas atividades no cinema no ano de 1938, contudo, antes dele encontraríamos ainda as figuras do Diomedes Gramacho e do José Dias da Costa que perderam para Alexandre Robatto Filho a primazia de serem os pioneiros do Cinema Baiano, porque, temendo acidentes nos seus primitivos estúdios, devido às películas daquela época ser constituídas de material altamente inflamável e que poderiam provocar incêndios de gravíssimas proporções, então esses dois senhores perderam grande quantidade de material cinematográfico. Além disso, com medo de que acontecessem tragédias maiores, eles incineraram o resto das películas que tinham em seu poder, destruindo dessa forma o já escasso material que poderia servir de base, de referências para o estudo da história do cinema na Bahia.

Dessa maneira, o pioneirismo do cinema na Bahia fica sendo patenteado exclusivamente a Alexandre Robatto Filho que iniciando naquela época, em 1938, ao longo de 25 preciosas curtas – metragens de arte, folclore, músicas e folguedos regionais, bem como documentários sobre a Bahia do seu tempo, conseguindo reunir valioso acervo constante de 22 títulos que foram contratipados e copiados pelo Departamento da Imagem e do Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia, tendo o apoio da Embrafilme e da Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Alexandre Robatto Filho teve uma influência bastante acentuada pela escola dos documentaristas ingleses, onde se sobressaíram o Flaherty e o Grierson, nas décadas de 1930 e 1940. Em 1949 o Robatto Filho saiu das bitolas substandard e parte para o filme de 35 mm, quando forma uma equipe onde encontramos os nomes do Semírames Seixas, Alfredo Souto de Almeida, do maestro Paulo Jatobá, Joaquim Euclides, do Manoel Pinto Ribeiro, do arquiteto e fotógrafo Sílvio Robatto e do artista plástico e amigo Carybé.

Dentre os inúmeros títulos deixados à História do Cinema na Bahia por Alexandre Robatto Filho, poderíamos citar somente alguns deles, tais como: Vadiação, Entre o Mar e o Tendal, Quando o Chico Foi Preso, Festa do Hawaí, Invenções, Carnaval, Exposição Pecuária – 1949, Caxixi, Favelas, V Exposição de Animais, S/A Wildberger, A Marcha das Boiadas, Pecuária Baiana – 1953, Igreja, Desfile dos Quatro Séculos, Xaréu, Ginkana em Salvador, Regresso de Marta Rocha, Águas da Bahia, Organizações Suerdieck, Um Milhão de KWA etc.
Considerado “um homem de sete instrumentos” pelo próprio escritor e amigo Jorge Amado, vamos encontrar o Alexandre Robatto Filho poeta ao lado dos iniciantes daquela ocasião, tais como: Sosígenes Costa, Carvalho Filho, do inesquecível e querido amigo Hélio Simões, Enrico Alves, Jair Gramacho, do meu mestre Carlos Eduardo da Rocha, do saudoso e sempre alegre Clóvis Amorim, do Alves Ribeiro e muitos outros como ainda os artistas plásticos Carlinhos Bastos, Mário Cravo e o próprio Carybé.

Conta-se que na época do falecimento do Vadinho, em pleno domingo de carnaval na Bahia (vide Dona Flor e seus Dois Maridos) o Alexandre Robatto Filho declamou no exato momento em que o caixão do Vadinho baixava à sepultura, aqueles conhecidos e decantados versos viperinos, os quais, a exemplo dos poemas de escárnio e mal – dizer do poeta seiscentista Gregório de Matos e Guerra ou ainda dos versos maravilhosos e também ainda incompreendidos do meu amigo e poeta Antônio Short, correram como um rastilho pelas ladeiras, becos, ruelas e ruas apertadas e acanhadas da Bahia e tinham como título solene, pomposo e antes de tudo barroco: “ELEGIA À DEFINITIVA MORTE DE WALDOMIRO DOS SANTOS GUIMARÃES, VADINHO, PARA AS PUTAS E OS AMIGOS”.

Naquele época, os versos que brotaram sonoros e barrocos dos lábios profanos e gloriosos do Alexandre Robatto Filho, nos primeiros momentos foram atribuídos, quanto à sua verdadeira autoria, a inúmeros poetas da cidade, contemporâneos do inominável Robatto Filho. Mas todos chegaram uníssonos à conclusão de que com o estro, a perfeição, a galhardia, a harmonia lírica e sensual, junto com a magia e aquele jeito jocoso e sacana com que foram artisticamente escritos, só poderiam será obra de um Artista – Mais – Que – Perfeito e este era, sem sombras de quaisquer dúvidas, o próprio Alexandre Robatto Filho!

Acrescente-se que o Alexandre Robatto Filho já era bastante conhecido das noites baianas, dos saraus, encontros e tertúlias artístico – literárias como o Rei Mundial do Soneto, pois tinha escrito até aquela ocasião cerca de “20.865 entre decassílabos e alexandrinos de arte – menor e de arte maior e anacíclicos” (vide Dona Flor e Seus Dois Maridos).

Na área da literatura romanesca, nos deixou dois livros, um publicado e outro ainda inédito. O que foi publicado chama-se Raimunda Que Foi – Uma Estória da Bahia, editado em 1976 pela Editora José Olympio e que tem como pano de fundo a zona do Recôncavo Baiano, onde a estória se passa na cidade fictícia de São Bartolomeu do Recôncavo, tendo como figura central a jovem Raimunda, uma guapa e gostosa mocinha de apenas vinte anos de idade, cabelos escorridos, morena e de coxas roliças e grossas, exemplo típico das mocinhas criadas em cidades atrasadas de interior que quando perdem o cabaço, saem como que fugidas, às escondidas, dos lugarejos onde foram criadas e buscam o anonimato nos grandes centros urbanos, a fim de engrossar ainda mais esse filão interminável de mulheres que irmanadas sob o mesmo véu de infortúnio e pecados, proliferam unidas na sua única desgraça: a perda do indefectível cabaço!

Além da Raimunda, encontramos nesse livro a figura andrógena do Bernardino, bichona louca convicta e atuante que tenta retornar ao mundo dos machões, através dos encantos da ardente e sedutora Raimunda. O romance se desenrola envolvendo personagens reais e imaginárias, vivendo situações cômicas, engraçadas e picarescas. O universo mágico da literatura de Alexandre Robatto Filho nos dá um autêntico retrato do Recôncavo Baiano durante a sua fase áurea de industrialização e fúlgido progresso, num período em que o próprio Robatto Filho disse “não haver data”, mas que podemos situá-lo entre as décadas de 1940 e 1950.

Como dissemos acima, a estória da Raimunda traz à baila figuras reais que também participaram da trama, como exemplo o meu avo materno Dr. Manoel Francisco de Oliveira Bahia, o célebre Dr. Bahia, engenheiro santamarense que tinha se formado em engenheiro agrônomo, mas havia deixado as suas reais atribuições para se dedicar ás atribulações forenses. Exercia as funções de rábula, atividade que o torna afamado e conhecido em toda a região. O Dr. Bahia era casado com a jovem professora Perpedígna da Cunha Costa, filha do primeiro casamento da também professora Perpedígna Amélia da Cunha Costa com o seu primeiro marido, Ignácio da Cunha Costa. Logo, a esposa do Dr. Bahia seria também tia do Alexandre Robatto Filho, isto porque, quando a Perpedígna Amélia da Cunha Costa casou-se pela segunda vez com o Prof. Ernesto Rocha, teve como filha a Camila Rocha, que futuramente seria a mãe do nosso cineasta baiano.

Numa das passagens do romance ora em comento, o Robatto Filho narra que o meu avô, o Dr. Manoel Bahia, estava a necessitar de uma montaria para visitar o senhor Dílson, numa fazenda próxima ao município de Santo Amaro da Purificação, denominada São José dos Caboclos; então o Dr. Bahia solicita do seu amigo, o Coronel Possidônio, uma mula emprestada. O animal prontamente lhe é entregue. Todavia, o Dr. Bahia nesse ínterim fica impossibilitado de realizar essa visita ao senhor Dílson e devolve a mula ao Coronel Possidônio com um bilhete escrito no inconfundível estilo, cujo teor verídico é exatamente o que se segue:



“Meu Eminente Amigo,

Efusivos saudares!

Devolvo a sua nobre mula, pura e virgem como me mandou, por não ter sido

preciso servir-me dela.

Com os sinceros agradecimentos do cativo,

Dr. BAHIA”

O segundo trabalho literário do Alexandre Robatto Filho se intitula: “O.D.A. – Organização Demo-Angelical” e foi escrito no Natal de 1977, após o Robatto Filho ter se recuperado de um acidente circulatório que quase antecipa a sua ida ao Céu. A história é contada com o gosto e tempero baianos que tão bem caracterizam o seu estilo jocoso inconfundível. Encontramos nas suas páginas o retrato autêntico da saudosa cidade do Salvador boêmia, dos idos da década de 1920/30, com as suas roletas, bacarás, cassinos e demais casas de jogo funcionando regularmente. Era a época do Cassino Baiano que se localizava na Rua de Baixo (atual Rua Carlos Gomes), onde havia funcionado o ex-Diário de Notícias. Naquela época em Salvador aconteceu o histórico episódio “quebra-bondes” citado pelo Robatto Filho de maneira fugaz e que o escritor Jorge Amado registra com amplitude no seu livro “Tenda dos Milagres”, através do herói e bedel Pedro Arcanjo.

O terceiro livro do Alexandre Robatto Filho é um trabalho de “Memórias” que não foi editado em razão da sua morte, ocorrida em novembro de 1981, aos 73 anos de idade. Tive a oportunidade e exclusividade de ter em mãos os originais desse trabalho, quando a pedido do meu tio Robatto tive o prazer de ler e reler todo o seu conteúdo e revisá-lo, devolvendo-o posteriormente. O mencionado livro é repleto de ilustrações e desenhos que o próprio Robatto Filho executava com zelo e carinho a fim de ilustrar a presente obra. Trata-se da história da Família Robatto, a sua vinda para o Brasil, a sua chegada na Bahia, a ida para a cidade próxima de Alagoinhas, a fazenda, a roda d’água, a construção da estrada de ferro daquela cidade onde trabalharam os seus ancestrais etc.

Esperamos que algum dia a Fundação Cultural da Bahia, a Academia de Letras da Bahia através dos seus ilustres e iluminados pares, ou mesmo historiadores e pesquisadores culturais do nosso estado, tais como a querida mestra Consuelo Pondé de Sena, o poeta, historiador e memorialista baiano Gilfrancisco, o competente biógrafo João Carlos Teixeira Gomes ou mesmo a Myrian Fraga reconheçam no futuro o labor literário do Alexandre Robatto Filho e também o coloquem à altura do Alexandre Robatto Filho cineasta, como há anos atrás procedeu acertadamente a Fundação Cultural do Estado, quando deu o seu nome à Sala de Cinema que ocupa hoje lugar de destaque nas suas dependências.

Esperamos que os órgãos culturais do nosso estado, ligados não só à História do Cinema na Bahia mas também à divulgação da sua História Literária, Artística e Folclórica, consigam trazer ao conhecimento dos mais jovens esse maravilhoso legado executado pelo Alexandre Robatto Filho, que nos deixou um patrimônio imenso não somente na área cinematográfica, mas sobretudo na área de pesquisa e divulgação do nosso folclore, da nossa literatura, dos nossos costumes e tradições que devem ser continuamente preservadas, a fim de que estoriadores e jornalistas menores e mal informados não continuem a ventilar de maneira displicente, irresponsável e imoral a HERESIA sem sentido de que o pioneiro do Cinema na Bahia teria sido o Glauber Rocha! O Alexandre Robatto Filho sim, esse foi o verdadeiro PIONEIRO DO CINEMA NA BAHIA, enquanto o cineasta Glauber Rocha foi apenas o CRIADOR DO “CINEMA NOVO”!

Poderíamos falar também do Alexandre Robatto Filho pintor, desenhista, artista plástico e ilustrador. No seu apartamento situado no elegante bairro do Campo Grande, nesta Capital, hoje conservado pela prima Yeda Stazy, se encontram retratos da Família Robatto pintados pelas mãos hábeis e destras do Robatto Filho. Ao lado das suas pinturas encontramos as fotografias que o mesmo realizava e um sem número de fotos-artísticas e documentais que hoje se constituem num valioso acervo pelo alto valor e significado artístico que representam. Como podemos verificar, além de Cirurgião Dentista, foi ainda cineasta, artista plástico, escritor, poeta etc. além de ser ainda um dos pioneiros do Rádio Amadorismo na Bahia. Foi Professor Catedrático da cadeira de Radiologia da Universidade Federal da Bahia – UFBA onde exerceu com garbo e nobreza as suas funções.

Trabalhou ainda no Departamento de Educação Superior e de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia, em diversos cargos de assessoria e escreveu também inúmeras obras de caráter científico e pedagógico, as quais deveriam ser resgatadas e atualizadas, a fim de integrarem o nosso patrimônio cultural. Finalizando, o Alexandre Robatto Filho foi um homem completo em todos os sentidos e cito apenas uma definição de uma criança de apenas quatro anos de idade, o seu neto Lucas Robatto, ao defini-lo para as pessoas da família: “VOVÔ ROBATTO SABE TUDO... VOVÔ ROBATTO SABE MAIS DO QUE DEUS!”

Quem sabe se o pequenino Lucas não tinha razão?"

TADEU BAHIA – Autor