Pesquisa feita pelas majors dão conta de que o público está aceitando muito bem os filmes dublados. As distribuidoras, a exemplo do que fez com o quarto Duro de matar, estão a jogar seus blockbusters em várias cópias dubladas em português. A aceitação excelente pelos consumidores (cinéfilo agora virou sinônimo de consumidor) animou as majors e algumas delas estão a pensar seriamente na ampliação das cópias dubladas. Segundo revelou reportagem da Folha de S. Paulo domingo passado, dia 5, a dublagem pode vir a ser adotada no Brasil. A notícia, para mim, foi cruel, pois considero a dublagem uma intervenção criminosa na integridade da obra cinematográfica, considerando que a inflexão vocal tem muita importância no desempenho dos atores e, mesmo, na significação do que se está a ver. Por outro lado, como um filme tem três bandas de som (a de ruídos, a de diálogos, a de música), a mixagem original, destruída no processo de dublagem, é mal construída a posteriori, fazendo com que a banda de diálogos tenha predominância em detrimento das outras. Se a dublagem vir a ser adotada, e não havendo mais filmes nos idiomas originais, deixo, definitivamente, de ir ao cinema. O perigo está também nos DVDs. Não duvido que a dublagem venha a se constituir em prioridade no lançamento dos DVDs em território brasileiro. Infelizmente, e esta a verdade, o público, ignorante, prefere a película dublada, porque, segundo diz a pesquisa, tem preguiça de ler, e não se importa com a estética de uma obra cinematográfica. O que o público se interessa é pela história, pelo enredo, pela trama. Não quer saber de mais nada. E se os atores falam em português, melhor, pois não precisa ler embaixo as legendas. Não seria demasidado dizer que mais de cinquenta por centos dos ditos alfabetizados, segundo uma outra pesquisa, desta vez do governo, são analfabetos funcionais. O Brasil desce, a passos largos, ladeira abaixo.
Vi, por estes dias, dois filmes argentinos em co-produção com a Espanha: Conversando com Mamãe, e Elza & Fred, cujos diretores, agora, quando digito estas, não mo-los recordo. O segundo faz homenagem a Fellini, com alusão repetida a A doce vida, tendo, ambos, a veterana atriz China Zorrillo. O que me espantou, neles, foi a deformidade de suas imagens, pois a distribuidora responsável, curiosamente conhecida como Imagem, comprimiu o formato original dos filmes (cinemascope, lente anamórfica, tela larga) na sempre abominável tela cheia (full screen), como vem praticando agora com todos os filmes originariamente realizados com lente anamórfica o híbrido Telecine Cult. Por que destruir a possibilidade de contemplação dos filmes agindo de tal maneira, retalhando as obras cinematográficas, deformando-as? A partir de agora todo filme que for distribuído pela Imagem é preciso que se tenha muito cuidado quando de sua compra ou locação. A Europa, aliás, outra distribuidora, destruiu o lançamento em DVD de Menina de ouro, de Clint Eastwood, enquadrando-o indevidamente na tela cheia, e não permitindo o formato original, que é em cinemascope. Há poucas semanas, a notícia da exibição de Da terra nasce os homens (The big country), de William Wyler, grande filme, fez-me cancelar compromisso para ficar frente à telinha doméstica para vê-lo no Telecine Cult. Finda a apresentação dos créditos, que estava em cinemascope, com aquela tira, puxaram-na para encher a tela, deformando a imagem e deformando, também, a minha paciência. Desliguei, quase apopléxico, a televisão e, com isso, perdi o compromisso e o filme, que recuso em vê-lo assim tão deformado como quer o Telecine Cult. Até o Canal Brasil está fazendo a mesma truculência, pois Abril despedaçado, de Walter Salles Jr, passou sem o formato original. Queria revê-lo, mas constatando a sua deformidade, a monstruosidade no qual foi apresentado, desliguei. Que o Telecine faça isso, compreende-se nesta era neoliberal em que tudo é mercadoria para o consumo de imbecis, mas o Canal Brasil poderia ter tido mais respeito com o seu público.
Mas Jogo mortal (Sleuth, 1972), de Joseph L. Mankiewicz, filme que não via há mais de trinta anos, passou ontem, quarta, no Cult, mas no formato original (não é originariamente em cinemascope), ainda que alargando um pouco, para encher a tela, além do que seria permitido a um programador que prezasse a arte do filme e sua integridade. A cópia um tanto quanto velha, descolorida, não impediu a contemplação desse derradeiro trabalho de um dos mais intelectualizados diretores do cinema americano. Com roteiro de Anthony Shaffer, iluminação (que não dá para ver direito na cópia televisiva) de um artista, Oswald Morris (fica-se a pensar a beleza de ver o filme numa sala de exibição em cópia restaurada), e partitura do competente John Addison, hermaniano, Sleuth é um jogo entre dois personagens - e que atores: Laurence Olivier e Michael Caine, um jogo de caça e rato, no qual se estabelecem como atrativos a excelência da interpretação dos dois, os diálogos afiados, a crítica aguda à arrogância britânica, e a alusão do cinema como uma representação contínua sem, contudo, o discurso metabólico e academizante que se quer ver em tudo e em todos. Veio à lembrança a relação senhor/escravo hegeliana que Joseph Losey, via Harold Pinter, enfoca no magnífico O criador (The servant, 1963), um dos momentos sublimes desse cineasta que anda meio esquecido pela crítica que se diz atenta e consciente. Joseph L. Mankiewicz é um realizador americano (irmão de Herman, que fez, com Welles, o roteiro de Kane) que gosta de diálogos apurados, bem escritos, um diretor mais intelectualizado, como se pode ver em A malvada (All about Eve, 1950), A condessa descalça (The barefloot contessa, 1954), Júlio César, Charada em Veneza, entre tantos outros filmes. Três filmes que lhe são atípicos: Eles e elas (Guys and dolls, 1955), cujos méritos se encontram mais localizados na coreografia de Michael Kidd, musical com Marlon Brando e Frank Sinatra, e Ninho de cobras (There was a crocked man, 1971), western, com Henry Fonda e Kirk Douglas. E o mastodante Cleópatra. Não sei se é possível se achar, no disquinho, Sleuth. Está na programação do Telecine Cult, que, por sinal, vai abrir a sua grade aos assinantes da Net em agosto a partir do dia 9.
A foto é de Charada (1963), de Stanley Donen, onde se vê Cary Grant e Audrey Hepburn. Bogdanovich escreveu que Charada é o último filme do cinema americano clássico.