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18 dezembro 2013

Carl Dreyer: sensibilidade e ascese

A palavra (Ordet, 1954), de Carl Theodor Dreyer
Há quarenta e cinco anos morria em Copenhague (Dinamarca) Carl Theodor Dreyer (1889/1968), um dos maiores realizadores cinematográficos de todos os tempos, cujos filmes vieram a influenciar toda uma geração de cineastas, principalmente os nórdicos, a exemplo de Ingmar Bergman, assim como o contemporâneo e polêmico Lars Von Trier (Dançando no escuro, Ondas do destino, Dogville, Os idiotas...). Seus filmes principais já foram lançados em DVD e se constituem em obras fundamentais para o conhecimento não somente de um autor excepcional, mas, também, e principalmente, de um cinema particular, sublime, e extremamente expressivo na sua singularidade. Não se pode entender o cinema contemporâneo sem as bases referenciais do pretérito. E Dreyer, neste sentido, por artista criador, situa-se no Olímpio dos diretores da chamada sétima arte.

O ensaísta baiano Walter da Silveira, quando enviou para a antiga revista Filme/Cultura, em 1968, a relação de seus dez maiores filmes, colocou La passion de Jeanne D’Arc em primeiro lugar. O crítico tinha verdadeira adoração pelo cineasta dinamarquês. Dreyer morreu, no entanto, sem alcançar o seu tão sonhado projeto, o de filmar a vida de Jesus Cristo. Sobre Gertrud, o último filme, escreveu Jean-Luc Godard no Cahiers du Cinema: “Gertrud iguala em loucura e beleza as últimas obras de Beethoven”. É preciso dizer, portanto, que o DVD está a funcionar como um resgate do grande cinema. Mas vamos ver aqui alguma coisa sobre A palavra (Ordet).

Seguindo o estilo de Dies Irae – planos-sequências e recitações, lentos movimentos de câmera e intercalação de breves close ups, A palavra (Ordet) representa a plenitude de Carl Theodor Dreyer no tocante à harmonia da complexidade, a ascese de sua dinâmica espiritual e artística e à sabedoria da realização. Como em La passion de Jeanne D’Arc (1928) e Dies Irae, encontramos temas iniciais que se colocam em prosseguimento, como, por exemplo, em Ordet, uma acusação da intolerância e o orgulho dos exclusivistas da verdade. A morte constitui o vértice dramático, mas, também, aqui, Dreyer adota uma clara postura na ordem do sobrenatural. Com uma sinceridade conseqüente, Dreyer conduz o filme até o milagre, o qual só é possível, em seu caso, como consequência de um ato de fé total, puro, sensível e compartilhado. Desta forma, o realizador dinamarquês se situa acima de seu tempo e do lugar: a morte precede naturalmente o milagre, e este determina a reconciliação consciente e coletiva. Ordet se desenrola como uma sinfonia de sensibilidade e de austeridade, em que o orgulho sectário de Morten e Peter se harmoniza com a despreocupação religiosa de Mikkel, o despertar amoroso de Anders, o sossegado intimismo de Ingers e a loucura de Johannes, cujas récitas proféticas salmodiam o filme, levando-o com grande fluidez até a cena final, a do milagre. Neste momento, Johannes recupera toda a sua lucidez, a plena razão, e, a falar com a menina, sua sobrinha, com o apoio desta, tem força suficiente para conseguir a ressurreição desejada.

Em uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a indiferença só pode representar sintoma de incultura (como alguns, que se dizem entendidos de cinema, e que assistiram ao DVD de Ordet, e viram nela uma obra acadêmica e ultrapassada, pessoas, aliás, que costumam frequentar com a assiduidade das bestas as salas do circuito Bahiano) e, desde logo, de ausência total de sensibilidade artística. Ordet, monumento agora disponível em disco, se baseia na obra homônima de Kaj Munk, pastor protestante assassinado pelas tropas de Hitler que ocuparam seu país, e que, desafiando-as, ao proclamar certas verdades do púlpito de sua igreja, foi logo morto.

A ação de Ordet se localiza num povoado dinamarquês. O velho Morten Borgen (Henrik Malberg) e seus filhos Mikkel (Emil Haas Christensens) e Andrés (Cay Kristiansen) buscam o terceiro filho de Borgen, Johannes (Preben Rye), que em sua loucura afirma ser Jesus Cristo. Inger (Birgitte Federspiel), esposa de Mikkel e que está grávida, tenta consolá-los. Enquanto Borgen discute com seu vizinho Peter (Ejner Federspiel), pertencente a uma seita religiosa distinta, Inger sofre uma urgente intervenção médica. O caçula dos Borgen quer se casar com a filha de Peter, mas este reage e não aceita, obrigando o velho a ir discutir com ele. Enquanto ele conversa com o outro, o recém-nascido de Inger morre e esta não tarda em seguir-lhe, morte, aliás, que havia sido profetizada por Johannes. Durante os preparativos do funeral, Mikker não pode conter a sua dor, quando aparece Johannes, lúcido, a lhe reprovar sua falta de fé. E, através de sua intervenção, Inger volta à vida.

A temática de Dreyer se centra no ser humano como sujeito de valores absolutos. O homem é observado psicologicamente e a sua dignidade defendida frente a toda intolerância, coação física ou moral. Através da tolerância, da bondade e do sofrimento, chega à ideia abstrata do amor e da pureza espiritual, assim como, no âmbito religioso, à fé, e no metafísico, às relações do homem com Deus. Sua técnica narrativa, influenciada em suas origens pela escola cinematográfica alemã, expressionista, e pelos principais criadores do cinema soviético, adquire caracteres próprios e inconfundíveis a partir de La passion de Jeanne D’Arc. Mediante o uso de diversos elementos, em especial os movimentos lentos de câmera, serenidade expositiva, grande direção dos atores, iluminação difusa umas vezes e contrastada em outras, utilização do silêncio como valor dramático, e progressiva dramatização da ação interna, passa, imperceptivelmente, do físico ao moral, do cotidiano ao existencial ou metafísico. Para Dreyer, o estilo é a incorporação da alma do artista à obra do criador, isto é, sua personalidade. Segundo o criador de Ordet, sem estilo não há obra de arte.

P.S:Carl Theodor Dreyer nasceu em Copenhague (Dinamarca) em 1889 e  veio a falecer nesta mesma cidade em 1968, quando já tinha captado todos os recursos para o sonho de sua vida: filmar a trajetória de Cristo na Terra. Morreu com 79 anos. Gertrud, seu canto de cisne, rodado em 1964, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven, despreza qualquer influência do cinema que lhe era contemporâneo: anti esnobe, lento, seco, direto, tendo a palavra como veio condutor.

16 dezembro 2013

O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão/Veredas

O jornalista e cinéfilo Dimas Oliveira, o cineasta Tuna Espinheira, Juraci Dórea e outro da equipe.
Terça, dia 17, às 21 horas, numa das salas dos confortáveis cinemas recém-inaugurados do Shopping Barra, a avant-première do mais novo filme de Tuna Espinheira: O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão/Veredas. O texto abaixo tem como escrevinhador o próprio Tuna, velho de guerra.

"Era uma vez o sertão que virou museu a céu aberto, ao sol, a chuva, ao tempo, ao vento... tudo se fez precisamente assim, quando o artista, Juraci Dórea, teve a ideia do Projeto Terra e  arrumou seu matulão para cair no mundo, fazendo às vezes do pregador bíblico, João Batista, adentrando as veredas do sertão baiano, descortinando suas icônicas esculturas, de madeiras vestidas de couro, com uma linguagem contemporânea, desconhecida naqueles ermos, bradando no deserto.  Logo/logo, viriam as exposições itinerantes, ciganas, de quadros de pintura, de porte razoável de tamanho, com motivos populares, viriam a alegar as retinas cansadas dos viventes da região. Um festão em cada lugar por onde passava. E assim foi que, estas semeaduras de arte, em léguas tiranas , no agreste, através de documentações fotográficas, chegaram à mídia, escrita, falada, televisada, chamou a atenção, de um público vário, por todo canto, principalmente, os críticos das artes plásticas, entre eles Frederico Morais, o que tornou visível aquela épica,  emblemática e indômita forma do fazer arte em dialogo interativo com um mundo invisível. E deu-se que, o trabalho do artista ganhou botas de sete léguas e asas de albatroz, e, invertendo a normalidade do processo, saiu do assombroso museu a Deus dará, para os espaços emblemáticos das Bienais, São Paulo, Veneza, Cuba... e as inúmeras exposições, Brasil afora e além fronteiras... E o Sertão virou mar...

Nosso projeto de um filme/documentário, assim foi em busca de contar esta estória cuja gênese é o distante 1982, tempo abissal, sobretudo para encontrar vestígios das esculturas pioneiras, urdidas como arte efêmera, sobretudo as esculturas, construídas com madeiras e vestidas com o couro, expostas ao tempo, sujeita aos predadores naturais ( o couro é precioso e de grande utilidade naqueles meios), o que justificava a sua morte anunciada. Juraci Dórea embarcou nesta canoa, foi um dos mais indômitos membros da equipe, botou a mão na massa, além de personagem desta estória, em imagem em movimento, agiu, todo o tempo como cúmplice do nosso fazer. Plantamos, de Feira de Santana, passando por Monte Santo e Canudos, quatro novas e enormes esculturas, conversamos com muita gente sertaneja... À mercê do calor da hora, fomos colhendo material... O possível e impossível para contar a saga deste estranhíssimo Projeto Terra, catando, aqui e açula, o combustível necessário para que La Nave Vá... E ela foi..
e-mail: tuna.dandrea@gmail.com 

15 dezembro 2013

Dupla homenagem: Alexandre e Sílvio Robatto

Pioneiro do cinema baiano, Alexandre Robatto, Filho, começa a fazer filmes, nos anos 30, com uma câmera de 8mm, registrando os ainda incipientes sistema de abastecimento d'água da cidade de Salvador.Antes dele, tem-se notícias de alguns nomes como os de Diomedes Gramacho, José Dias da Costa, mas cujos filmes desapareceram - conta-se que Gramacho, desesperado com um incêndio em seu laboratório, jogou todo o seu trabalho nas águas da Bahia de Todos os Santos. Alexandre Robatto, Filho, desenvolveu melhor o seu pendor cinematográfico, quando partiu para a bitola de 16mm nos anos 40, e se dedicou ao registro documentário (A guerra das boiadas talvez seja o exemplo mais acabado desta fase). Vale ressaltar, que o trabalho cinematográfico feito por Robatto é um trabalho de aventura e heroísmo, considerando que na Bahia não existiam laboratórios que pudessem revelar os filmes, nem mesas de montagem, equipamentos para mixagem, enfim, nada: tudo tinha que ser feito, fora as filmagens, no Rio de Janeiro. É na década de 50 que realizou seus filmes esteticamente mais elaborados, a exemplo de Entre o mar e o tendal (1953), Xaréu e Vadiação (1955).

Robatto registrou acontecimentos e eventos marcantes da velha província da Bahia, a exemplo de Quatro séculos em desfile, quando da comemoração gigantesca dos 400 anos da fundação da cidade em 1949, um desfile monumental que se não tivesse sido filmado pelas lentes do cineasta ficaria apenas na memória de alguns sobreviventes ou nos arquivos empoeirados dos jornais. Chianca di Garcia, já uma celebridade, foi o organizador geral da manifestação cívica. Também no mesmo ano, na ocasião em que os restos mortais de Ruy Barbosa vieram do Rio para serem alojados no então recém-inaugurado Fórum, que dá nome ao ilustre jurista, o desfile que acompanhou o carro está retido nas imagens de A volta de Ruy.

Os refrigerantes Fratelli Vitta produziram O regresso de Marta Rocha, em 1955, quando da volta à Bahia da formosa baiana que não conseguiu o pódio de Miss Universo por causa de "uma polegada a mais", como fala célebre música popular. Robatto, neste documentário precioso, mostra desde a chegada de Marta, num acanhado aeroporto provinciano, a sua passagem em carro aberto pelas ruas do centro histórico, uma festa em sua homenagem no Clube Bahiano de Tênis, e uma visita à fábrica de refrigerantes patrocinadora, que, além destes, fabricava também cristais da melhor qualidade e que eram, inclusive, exportados.

Seu filho, Sílvio Robatto sempre o acompanhou no itinerário da captação das imagens em movimento e é autor de alguns curtas, entre os quais, Igreja.

Dentista por profissão, o cinema era um hobby, que se tornou, com o passar do tempo, em importante referência para a história do cinema baiano. Não seria exagero dizer que Barravento (1959/1962), primeiro filme de Glauber Rocha no longa metragem, tem uma certa influência da estética robattiana.

Entre os dias 17 e 21 de dezembro, realiza-se, no Teatro Vila Velha, a Mostra Alexandre e Sílvio Robatto, com uma exposição de fotos e o lançamento de Sílvio Robatto, um homem feliz, escrito por Symona Gropper, além da exibição de dois filmes de Robatto e o documentário Os filmes que eu não fiz, de Petrus Pires.