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24 agosto 2007

O DVD como milagre e como graça


Quem nasceu antes do advento da fita magnética ou do DVD, ter, com você, em sua posse, um filme como O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer, uma das obras-primas de toda a história do cinema, parece mentira. Mas é verdade. Tenho-o comigo, e a capa do DVD, com ele dentro, está aqui, à minha vista, ao lado do meu computador. La passion de Jeanne D'Arc, que passei anos, décadas, de ouvir falar e ler. Lembro-me que a falecida revista Filme/Cultura, em 1968, se não me engano, fez pesquisa com os principais críticos de cinema do Brasil para saber quais os 20 maiores da história. Walter da Silveira, que viria a morrer dois anos depois, em novembro de 1970 (e pensar que morreu mais moço do que eu, aos 55, eu que o via e o tinha como um senhor circunspecto e grave -vou fazer 57), consultado, mandou a sua lista e o primeiro lugar estava com La passion de Jeanne D'Arc, que, certa ocasião, passei uma tarde ouvindo-o falar sobre o filme. Como poderia vê-lo, perguntei constrangido. Ele me respondeu que teria que ir a São Paulo, à Cinemateca Brasileira, que possuia uma cópia. Mas se não estivesse programado?

O fato é que o DVD é um milagre, e milagre dos peixes, da multiplicação.

22 agosto 2007

A estética do brega

Dez anos já se passaram desde que Agnaldo Siri Azevedo e Vito Diniz morreram. O tempo não perdoa à vida, pois tudo está a dar a impressão que voa, que vai acabar. Siri, além de documentarista, com mais de duas dezenas de curtas, foi diretor de produção e amigo de Glauber Rocha em seus filmes mais importantes (Barravento, Deus e o diabo na terra do sol, Terra em transe, O dragão da maldade contra o santo guerreiro). Vito iluminou - sob todos os pontos de vista do vocábulo - a maioria dos filmes baianos das últimas décadas, desde Meteorango Kid, o herói intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, obra marcante do chamado cinema marginal ou underground.

A Jornada Internacional de Cinema da Bahia programou uma homenagem especial para Agnaldo Siri Azevedo. Entre outras atividades, a apresentação de um documentário sobre o cineasta realizado por Roman Stulbach, que foi o montador de quase todos os filmes de Siri. E para lembrar a passagem de uma década sem Vito, quarta que vem, dia 29 de agosto, na Sala Walter da Silveira, dentro do projeto Quartas Baianas, será apresentado dois curtas: Pelourinho, de Vito Diniz, e Comunidade do Maciel, de Tuna Espinheira, pugente documentário que mostra, como uma ferida exposta, a miséria na qual vivem aqueles que moram na comunidade do título. Tuna me enviou um artigo de José Umberto (outro cineasta baiano que está finalizando Revoada, longa que resgata o gênero que parecia perdido, mas responsável por grandes sucessos do cinema brasileiro) sobre Comunidade do Maciel. O título: Fotograma Infravermelho. Abrindo as necessárias e imprescindíveis aspas:

"A análise (do desconhecido ao conhecido) e a síntese (do conhecido ao desconhecido) não se encontravam aqui em contradição mas, pelo contrário, encontravam-se indis-soluvelmente ligadas entre si."

D Vertov (1986/1954)

"É longo e controverso o percurso da estirpe dos cineastas engajados neste mundo. Dziga Vertov ensaiou a estética da revolução, na então União Soviética, com o manifesto "O Homem da câmara de Filmar /Tchelovek S. Kinoapparaton/1929; Luis Buñuel lançou a esté-tica da fome, na Espanha, com Las Hurdes, Tierra sin Pan/32; e o baiano Tuna Espinheira desfraldou a estética do brega, com Comunidade do Maciel, há uma gota de sangue em cada poema/73, estimulado pela veia da indignação que transgride o paradigma do "belo", assume o compromisso com a ética e manifesta senso político com radicalidade irônica.

É possível à beleza desinteressada cruzar-se ao miserabilismo crítico? - interpõe-se o litígio fastidioso.

O documentário elege um espaço da marginalidade na urbe mais antiga do Brasil - o Pelourinho, símbolo do poder colonial assentado no regime escravocrata. O passado, 24 foto-gramas por segundo, entra em conúbio com a atualidade: o regime da ignomínia congela-se no tempo, fétido. E não importa o ontem ou o amanhã, interessa o hoje amalgamado e posto miséria nas raias do escândalo surreal.

(A servidão humana como espetáculo da víscera cinematográfica)

Ultrapassar a fronteira da torre de marfim consiste na subversão do conceito de arte pela arte e sua ânsia em insuflar o sexo dos anjos celestiais. Equilíbrio sobre a navalha afiada que se afirma como bruteza, mas sem perder jamais a meada da generosidade, numa posição de homem decidido no âmbito complexo da sua ciscunstancialidade. Assumindo a linguagem, sem veleidade autoral, como pretexto verticalizante de uma operação materialista da existên-cia no contexto histórico.

A câmara se engaja nas ladeiras do mangue entre cinzentos sobrados e mocambos em ruína. A arquitetura da decadência revela-se nua e crua. O cineasta orgânico nega o beletrismo da imagem: o ser visto de frente, objetiva e secamente. À sombra deste pequeno universo sub-terrâneo pagão trágico/melodramático/sentimental repousa a chaga do cinismo social. E é a partir desse deslocamento crítico que o filme se expõe com secura solidária. Putas, gigolôs e crianças circulam pelos fotogramas infravermelhos. A poesia brota da flor perfumada dentro da lama podre.

Feiúra, sujeira e micróbios contaminam as lentes da filmadora. Tuna Espinheira deixa-se possuir pela transparência do real. Comunidade do Maciel, há uma gota de sangue em cada poema não esconde a estrutura panfletária. A língua escolhida é o grito, solto ao vento. As mazelas se expõem desavergonhadas. É o cinema a serviço da verdade. A arte tomando parti-do diante do seu semelhante abandonado à sorte das injustiças sociais. Filme feio na medida exata da realidade horrorosa. Desta simbiose nasce a raiz do documentário realizado sem cul-pa em cartório.

Não há um convite à piedade lírica. Senão, um estímulo à revolta. Paroxismo cinema-tográfico composto de humanismo revolucionário. Distante da contemplação e próximo do estímulo à reação. Uma estética, portanto, engajada na necessidade da fina urgência. O espec-tador envolvido no que brota da tela sem anteparo, sem filtro, tampouco elipse e afastado do ângulo oblíquo. O canto de cisne atende ao chamado de pura e simples participação. Não ha-vendo espaço, desse modo, à ilusão. A propaganda explícita não engana com rótulo de sedu-ção imagética. Ao contrário, incita a reflexão sem subterfúgio. Severo método de agressão em busca do livre despertar da consciência. Num exercício de cidadania. Ou quando o artista des-pe a máscara do individualismo exacerbado e acena para a possibilidade solidária no redemo-inho do cosmo.

A tradição dramática sempre recomenda a eleição do herói individual, prenhe de psi-cologismo esquemático. Quando o foco deposita luz sobre o herói coletivo - muito raro - en-tão a sintaxe provoca um desassossego à leitura. O filme de Tuna dedica-se em cheio ao nú-cleo de uma comunidade e suas tensões. As partes dissolvem-se no geral.

As dicotomias emergem dos becos estreitos forrados por pedras em formato "cabeça de negro" ou dos fantasmagóricos casarios despedaçados com seus cômodos dividindo a pri-vacidade por tabiques de meia altura. Mijo, esperma e lixo emolduram o quadro trágico. Ex-pressivos rostos anônimos desfilam sob sombras no reboco de toscas paredes arruinadas, con-geladas no tempo.

As cozes da servidão propagam-se pelas frestas de uma alegria de lupanato estimulada pela aguardente. Boleros de Nelson Gonçalves, tangos de Gardel, promíscuo samba-canção ao baile de putas&machões, merengue, guarânia ou a pungente Ave maria de Schuman sobre perebas purulentas circulam como bolhas de vácuo fúnebre numa paisagem de desolamento. Trilha sonora regada pelo romantismo gonorrágico duma gente sem pátria/mátria, virtualizada ao limite do non sense, apendicite aguda do estamental donos de poder indiferente ao suplício do povo paciente, dócil e cordial - estúpido! - soneto parnasiano a rimar irresponsalvemente pus com cuscuz, uma vez que pimenta da Índia no cu do Outro e refresco atômico.

Esses circuitos dramáticos dão um tom hierático do patético. No intervalo melancólico dessa estufa marginal, imprime-se à dor uma alternativa de insubmissão, sob a perspectiva de uma linguagem de deslocamentos que promove a subversão e destila o arejamento das trans-formações. Num mergulho vertical de metáfora sempre atento para a decifração do símbolo como método de devoração do enigma.

"As marcas do puteiro não se apagam, jamais", ouve-se a narração que pontua as i-magens dessa ópera barroca baiana imersa nas contradições da cultura de dependência. O mercado desvalorizado de Sodoma & Gomorra cabocla, tropical, esponja lúdica, lazer do o-primido, útero patológico e fabuloso câncer de uma mundana democracia cicatrizada por lá-grimas de aleijados, choro de mendigos, histerismo de viados, turismo de marinheiros, orgas-mo de polícia, paraíso de tóxicos e velhos olhando da janela as horas mortas. Toda essa degradação, absorvida pelo mofo social, fora no passado zona elegante de riqueza econômica proveniente sobretudo do recôncavo canavial. As nobres casas de famílias abastadas e respeitadas tornaram-se "castelos" de meretrício. Os telhados que no passado a-brigavam os fidalgos, sinhás e mucamas passaram a abrigar putas de bordéis que, com os seus peitos decaídos, dão de mamar aos filhos de dia e saciam o desejo do macho de noite com a vil força do amor venal.

O ontem e o hoje operam o intercruzamento da memória protogênica em promíscua a-tividade cívica. Uma entecedência de elite conservadora, sustentada na tradição de regime escravocrata, em êxtase com o fausto do produto monocultural de exportação, à véspera do declínio, dando passagem a uma desavergonhada e doméstica fauna humana que coloca a sexualidade como pilar da sobrevivência econômica. Reversão de valores de um volátil siste-ma geopolítico acentuada pela hipócrita flutuação de concentrado capital globalizado, A sín-tese, na contemporaneidade, apontou para o DNA social da perplexidade atônita. Enquanto a despojada narrativa do cinema documental de Tuna Espinheira testemunha e disseca o nervo dessa potência da crueldade"

Ficha Técnica Título: Comunidade do Maciel, há uma gota de sangue em cada poema; Pesquisa, Montagem e Dire-ção - Tuna Espinheira; Assessores de pesquisa - antropólogo Vivaldo da Costa Lima e sociólogo Gey Espinheira; Diretor de Fotografia - Roberto Gaguinho; Assistente de Produção - Carlos Gilberto (Ta-tá); Som ao vivo - Pedro Juraci de Almeida; Letreiros - Vellame; Apoio - Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Estado da Bahia; Laboratórios - Rex Filmes S/A e Tecnison; Som - Ótico; Duração - 20´34"; Origem - Salvador/BA/Brasil; Ano - 1973.

21 agosto 2007

Camelot

Camelot, musical em superprodução, foi realizado já nos estertores do gênero e não conseguiu sucesso, apesar de contar com um diretor eficiente como Joshua Logan (basta dizer que dirigiu Férias de amor/Picnic, um dos mais admirados filmes dos anos 50), e com um elenco acima da média: Richard Harris, Vanessa Redgrave, Franco Nero, Lionel Jeffries, David Hemmings. Durante as filmagens de Camelot, Redgrave se apaixonou por Franco Nero e tiveram um filho. Interessante observar que dois nomes do cast foram retirados de Blow up, de Michelangelo Antonioni: David Hemmings e Vanessa, a bela. Libreto e músicas de Alan Jay Lerner e Frederick Loew, os mesmos de My fair lady.
O gênero musical que tantas obras-primas nos deu, e ao cinema, perdeu a sua simplicidade no apagar das luzes dos anos dourados. Muitos críticos afirmam que o último musical da grande fase é Gigi, 1958, de Vincente Minnelli. Mas na década de 60, se o gênero perdeu a sua singeleza, a sua simplicidade, não deixou, no entanto, de ser explorado, com a diferença de que foi, por assim dizer, superproduzido, a exemplo de West Side Story, A noviça rebelde (The sound of music, 1965), My fair lady, Funny Girl (1968), entre outros. Um dos melhores musicais dos 60 continua sendo, para mim, Positivamente Millie, 1964, de George Roy Hill, com Julie Andrews, e A moedinha do amor, de George Sidney.
A Fox, no ocaso dos anos 60, foi à falência por causa de Hellô Dolly, produzido num momento em que a maior parte das pessoas que ia a cinema, os jovens, já tinha entrado em outra, qual seja a de Woodstock. Dirigido por Gene Kelly, e no papel título Barbra Streisand, que poucos anos sacudira a Academia com o Oscar por Funny Girl, de William Wyler, Hellô Dolly se constituiu num imenso fiasco. Por causa justamente de o gênero musical já ter dado, alguns anos antes, sinais de exaustão e pela emergência de uma nova instrumentalidade sonora: o famigerado rock.
Para ver o cartaz maior e com mais nitidez dê um clique nele.

Os crimes do Telecine

Como se não bastasse a deformação do formato original dos filmes realizados originariamente em cinemascope, que são mostrados, nos canais Telecine, em abominável tela cheia (full screen), estes canais, que tanto gostam de maltratar a arte do filme, estão a editar os créditos finais, podando-os ou acelerando a sua passagem pela tela. Aí já é demais e estou a pensar, seriamente, em cancelar a minha assinatura. Já escrevi, aqui neste blog, que quando assinei a Net, e, com ela, os telecines, havia respeito aos formatos e a programação era tão boa que considerava ter uma cinemateca em casa.

O fato é que o público somente se interessa pela história do filme, pela sua trama, pelo seu enredo. E o prefere em tela cheia, bem espichado, e, se possível, dublado, pois neste país cuja maioria dos alfabetizados é analfabetos funcionais há imensa preguiça de se ler as legendas. Constatei que num dos canais, ou o Action ou o Première, estão agora a intrometer um gato que dança durante o desenvolvimento da narrativa fílmica. O que estão pensando que os assinantes são? Débeis mentais? Segundo li por aí, o que o Telecine faz é em função de uma maior audiência, e os assinantes estão satisfeitos com os filmes deformados em tela cheia, com o gato que dança, com os créditos que sobem em velocidade alucinante, etc.

Resta, infelizmente, considerar o público como um bando de analfabetos, um bando de débeis mentais, que precisa ser educado, que precisa ficar mais refinado, que precisa sair de sua imensa ignorância, que precisa ter mais finesse em relação às obras cinematográficas. Mas são débeis mesmo, haja vista que, numa sala de exibição, atendem, sem a menor cerimônia, o desgraçado do celular, e conversam durante a projeção, além do barulho das pipocas, etc.

Além de não se poder mais ir ao cinema, considerando que a sala de exibição é um palco de vandalismo, agora não se pode mais ter uma assinatura de canais especializados em filmes, porque estes são deturpados. O que resta fazer? Dar um tiro na cabeça?

19 agosto 2007

Introdução ao Cinema (9)

03. A montagem narrativa: Utiliza-se para contar uma ação através da reunião de diversos fragmentos de realidade cuja sucessão se destina a formar uma tonalidade significativa. Há, nítida, nesse tipo de montagem, uma função eminentemente descritiva enquanto que os outros tipos de montagem acima referidos se distanciam do descritivismo para um domínio significativo mais criador. Considerando-se que o tempo é a dimensão fundamental de qualquer narrativa, pode-se distinguir, quatro tipos de montagens narrativas: (a) a linear; (b) a invertida; (c) a alternada; (d) a paralela.

a) a montagem linear - ainda que, hoje, o público que vai ao cinema já tenha se acostumado aos flashbacks e alguns recursos de linguagem antes incompreensíveis para a grande maioria, a vocação fabulista do espectador pede a linearidade - até mesmo por uma questão de deseducação cinematográfica e a pasteurização lingüística imposta, no gosto popular, pela indústria cultural cinematográfica. A montagem linear, porém, é importante e funcional para o sucesso do discurso narrativo. É a mais simples e mais clássica: uma única ação é exposta em uma sucessão de cenas dispostas umas após as outras numa ordem lógica e cronológica.
b) A montagem invertida - aqui, a ordem cronológica, tão respeitada na montagem linear, não segue nenhuma diretriz - o que significa dizer: o tempo é pulverizado algumas vezes e, na maioria, o filme é construído a partir de uma ou várias regressões ( flashback ). Um ou mais fragmentos da ação passada são inseridos numa ação presente, como em Cidadão Kane, de Orson Welles, Desencanto(Brief Encounter), de David Lean, Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman. Pode haver, como assinala Gérard Bretton, um presente, um primeiro e segundo passado (A Condessa Descalça/The Barefoot Contessa, de Joseph L.Mankiewicz) ou uma introdução de um futuro no presente em lugar do passado(o que se chama flash foward em oposição ao flash back), como no clássico Underworld (Paixão e sangue, 1927, de Joseph von Sternberg, com GeorgeBancroft.
c) A montagem alternada - a descoberta da ação paralela e a mudança do ângulo visual foram conquistas importantes para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica sem as quais Griffith não teria realizado Intolerância ou, mesmo, O Nascimento de uma nação. Baseia-se, a montagem alternada, no paralelismo entre duas ou várias ações contemporâneas: imagens justapostas que mostram alternadamente personagens numa discussão, um perseguidor e um perseguido (como nos westerns clássicos e filmes deperseguição à la Indiana Jones), etc. As montagens alternadas rápidas podem suscitar no espectador uma emoção intensa e mantê-lo em suspense, traduzindo a iminência do drama, da fatalidade. Alfred Hitchcock, nesse particular, é um mestre. A seqüência da procissão em A Linha Geral, de Serguei Eisenstein, pode ser considerada um primor na arte da alternância.
d) A montagem paralela - o paralelismo referido se refere à chamada ação paralela clássica: a mocinha amarrada nos trilhos do trem enquanto este, em disparada, avança e, enquanto isso, em outro espaço, o mocinho recebe a informação de que sua noiva está em perigo. Tem-se, então, vários espaços simultâneos: o mocinho que corre para chegar a tempo, o trem que avança, e o desespero da mocinha amarrada. É pela alternância das imagens que se faz a emoção, a corrida contra o tempo. Há confusão entre alguns teóricos entre montagem alternada e a montagem paralela. O exemplo do trem é de montagem alternada e não paralela. Há montagem paralela, um dos tipos de montagem narrativa, quando o realizador se baseia numa aproximação simbólica de várias ações com o objetivo de fazer surgir uma significação de sua justaposição. A simultaneidade temporal das várias ações não é absolutamente necessária. O exemplo mais típico - e, talvez, mais primoroso - de montagem paralela se encontra em Intolerance, de David Wark Griffith: 4 (quatro) episódios - a tomada de Babilônia por Ciro, o massacre de São Bartolomeu, a Paixão de Cristo, e um drama moderno, a condenação a morte de um inocentenos Estados Unidos - que conduzem, majestosamente, a um único tema: a intolerância social e religiosa através dos tempos. A audácia reside no fato de as quatro narrativas não serem sucessivas, mas entremeadas, o autor passando de uma para outra segundo a técnica, então completamente nova, da montagem alternada.
A evolução da linguagem
Da câmara fixa, parada, dos tempos dos Irmãos Lumiére e de George Méliés,passando pela sistematização da linguagem cinematográfica com David Wark Griffith (O nascimento de uma nação, 1914, Intolerância, 1916), o cinema, que completou o seu centenário em 1995, sofreu, na sua trajetória, várias transformações em seu estatuto da narração. Do reinado da arte muda, quando se pensou o cinema ter alcançado a sua essência como linguagem, passando pela introdução do som - que, inegavelmente, modificou a arte do filme, a linguagem cinematográfica recebeu, na sua trajetória, influências da tecnologia, incorporando seus avanços. As inovações tecnológicas favoreceram a ruptura dos esquemas tradicionais (produtivos e expressivos) e a difusão de usos do cinema que, anteriormente, tinham sidos feitos só em caráter excepcional (as vanguardas históricas e certos momentos heróicos doneo-realismo).Incorporando os avanços tecnológicos, o cinema conseguiu sair da supremacia da montagem para a profundidade de campo - a invenção das objetivas com foco curto permitiram a um Welles a ousadia de uma renovação estética em Cidadão Kane, ponto de partida da linguagem do cinema moderno. A profundidade de campo permitiu a utilização de filmagens contínuas sem a excessiva fragmentação da montagem anterior. Com a profundidade de campo,anuncia-se, uma década depois, a eclosão do modelo de Michelangelo Antonioni que, com sua trilogia A aventura - A noite - O eclipse deu ao cinema uma nova maneira de pensar e um estilo de representar. O fracionamento deu lugar a demoradas incursões da câmera dentro da tomada, permitindo, com isso,maior poder de captar a alma humana nos seus devaneios e nas suas angústias como, também, com Roberto Rossellini, assaltar com a câmera o momento histórico, o instante real. A instalação da película pancromática (aquela dotada de maior sensibilidade) e a difusão de câmeras mais fáceis de manobrar mudaram a face do cinema e foram fatores que contribuíram para o advento do chamado cinema moderno. A câmera na mão, que veio a facilitar a apreensão da realidade, surgindo o cinema-verité, é uma conseqüência da tecnologia. A película pancromática, por mais sensível, fez com que os realizadores saíssem dos estúdios fechados e se intrometessem, com suas câmeras, nos exteriores mais recônditos, descobrindo, com isso, um cinema mais verdadeiro porque menos artificial.A tecnologia determinou uma evolução da linguagem cinematográfica?Evidentemente que a tecnologia determina uma transformação da linguagem cinematográfica, ainda que não venha a provocar a revolução estética que se verificou quando da passagem do cinema mudo para o sonoro. A tecnologia encontra-se , por exemplo, hoje, tão evoluida , que provoca no espectador uma impressão de realidade antes impossível de ser verificada (os dinossauros de verdade dos filmes de Spielberg: O parque dos dinossauros e O mundo perdido). Tem-se a estética cinematográfica quando a técnica se conjuga com a linguagem , instaurando-se, aí, o ato criador.Se o cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, com a projeção pública do cinematógrafo efetuada pelos Irmãos Lumiére, a linguagem cinematográfica somente veio a se consolidar, no entanto, vinte anos depois, em 1914/15 com O Nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith. Entre o seu nascimento e a consolidação de sua linguagem, o cinema passou por uma série de de gradações evolutivas, com o descobrimento, aos poucos,dos elementos determinantes de sua especificidade como linguagem sem língua. Um cinegrafista de Lumiére, Promio, andando numa gôndola em Viena, e observando o casario, inventou o travelling. Griffith em alguns curtas da Biograph ofereceu a expressão definitiva ao close-up. Edwin S. Porter, com sua narrativa ainda balbuciante, tenta a montagem e o enquanto isso que viria a desencadear um elo importante para a construção da linguagem cinematográfica. O fato é que a linguagem fílmica nasce a partir do momento em que se constatou que a câmera podia sair do lugar, que podia se movimentar, mover-se, dando origem, com isso, à mudança do ângulo visual. Outra conquista importante veio com a constatação pelos ingleses da escola de Brighton de que, para contar uma história, é preciso inserir um primeiro plano, um close-up, dentro de um plano geral, nascendo, com isso, a montagem. O grande sistematizador, porém, é David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica sem a qual, aliás, o cinema não existiria como é hoje praticado. O próprio Serguei Eisenstein deve muito a Griffith. Este, no frigir dos ovos, é muito mais importante do que o soviético, pois o grande criador, o inventor genial, o sistematizador preciso. Esta descontinuidade real do cinema e que se transforma numa impressão de continuidade, de fluxo contínuo, é resultado de uma abstração inconsciente da linguagem cinematográfica pelo espectador. Este, acostumado aos filmes, absorve os seus truques de linguagem, contando que esta não fuja da padronização à qual está acostumado. O que significa dizer: se, antes, para fazer que o público compreendesse que um personagem estava se lembrando do passado era preciso a utilização de fumacinhas e de diversos artifícios - nunca o corte direto presente/passado como num flash-back moderno, o cinema da contemporaneidade abdica de qualquer artifício no sentido explicativo. Os lances de memória que tornaram incompreensível O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, hoje estão sendo utilizados na publicidade televisiva. O puzzle proposto por Welles em Cidadão Kane é perfeitamente identificável em fitas desta suposta pós-modernidade.Conta-se, entretanto, o caso de uma moça da Sibéria que, em visita a Moscou, julgou horrível o primeiro filme (uma comédia) que tinha visto em sua vida, porque "seres humanos eram despedaçados, as cabeças jogadas para um lado, os corpos para outro". Equando Griffith mostrou os primeiros close-ups em um cinema, e uma imensa cabeça decapitada sorriu para o público, houve pânico na platéia. Aliás, quando da primeira projeção do cinematógrafo dos Lumiére, em 1895, um trem que se dirigia à câmera determinou que algumas pessoas, ainda que a pequenez da tela, o preto-e-branco nem tão real assim, se escondessem assustadíssimas, debaixo das cadeiras - com medo de o trem sair da tela e esmagá-las. Em dois filmes de 1948, Laurence Olivier (Hamlet) e Alfred Hitchcock (Festim diabólico/Rope) eliminam o corte, substituindo a descontinuidade das imagens por uma circulação incessante da câmera, que soluciona a velha contradição entre cinema e teatro. Em Crises d'alma(Cronaca de un amore), Michelangelo Antonioni também renova a estrutura fílmica pela valorização da construção formal pelo movimento no interior de longas sequências e não mais pelo movimento de plano a plano.Glauber Rocha também valoriza a construção formal pelo movimento no interior de longas sequências, ainda que Terra em transe seja filme de montagem sincopada, de planos curtos, com influência clara do cinema investigativo de Welles. A maioria dos filmes de Glauber Rocha, no entanto, revela um predomínio do plano-sequência - ao invés de ser dividida em cenas e diversos planos é feita numa única tomada. Isso levou Marcel Martin, ensaísta francês, a pensar numa transformação do cinema contemporâneo, transformação que começou com a desdramatização praticada por Michelangelo Antonioni, nos anos 50, e o aparecimento da câmera móvel que possibilitou o cinema-verité. Segundo o grande Marcel Martin em seu fundamental A linguagem cinematográfica (Brasiliense, 1990): "O cineasta tende cada vez menos a decupar seu filme demaneira a destacar uma série unilinear e inequívoca de acontecimentos; já não sublinha por meio de montagem ou de movimentos de câmera aquilo sobre o que ele deseja fixar a atenção do espectador; a câmera não desempenha mais o seu papel habitual de nos dar o ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre todos os acontecimentos, facilitando, assim, o trabalho perceptivo e estimulando a preguiça intelectual do espectador (...) O abandono da linguagem concebida como conjunto de procedimentos de escrita ligados à técnica, tal como era praticada por Eisenstein ou Welles, é, portanto, acompanhada de uma rejeição do espetáculo, noção ligada à da direção (...) Passamos a um outro plano: o cinema de roteiristas cede espaço ao cinema de cineastas. O cinema não mais consiste essencialmente em contar uma história por meio de imagens, como outros o fazem por meio de palavras ou notas musicais: consiste na necessidade insubstituível da imagem, na preponderância absoluta da especificidade visual do filme sobre seu caráter de veículo intelectual ou literário.Nos filmes decididamente "modernos", o espectador não mais tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo inteiramente preparado, mas de estar sendo acolhido na intimidade do cineasta, de estar participando com ele da criação: diante desses rostos quese oferecem, desses personagens disponíveis, desses acontecimentos em plena constituição, desses pontos de interrogação dramáticos, o espectador conhece a angústia criadora."
Tempo e diegese
O paradoxo do tempo, segundo a Filosofia, reside na existência de dois passados: o passado que desapareceu e o passado que permanece como parte integrante do presente, gravado na memória e essencialmente criador. O passado que se encontra em cada um - qual uma madeleine a esperar a busca do tempo perdido. Tal paradoxo ganhou, no cinema, aspectos mais radicais. Nele, a noção de tempo é extremamente ambígua, porque não existe um único tempo, mas vários tempos mantendo entre si relações estreitas, e que só podem ser separados por uma operação do espírito.Distinguem-se, no filme: o tempo real (ou o tempo físico: duração cronométrica da projeção); o tempo psicológico (duração subjetiva da fábula narrada: um dia, meses, anos); e o tempo dramático (ou narrativo: tempo verbal em que transcorre a história/fábula: presente, passado ou futuro).Objetivamente, a rigor, o filme é um tributário do passado, mas de um passado que se refaz cada vez que o filme é projetado na tela. Mesmo que sua ação decorra no presente só existiu, esta ação, de fato, durante a filmagem, daí a aparente falsidade do presente cinematográfico, um presente virtual que, na realidade, é um passado.Em 2001, Uma odisséia no espaço (2001: A space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, há, por meio de um corte direto, a passagem de milhares de anos, quando um grande macaco, levantando-se, joga, com força, um enorme osso para o ar e este osso, no corte, transforma-se numa nave espacial. Se a projeção de A família (La famiglia, 1987), de Ettore Scola, dura pouco mais de 130 minutos, seu tempo real, físico, o seu tempo dramático, narrativo, no entanto, compreende mais de 80 anos na vidade um velho senhor que, na Itália, constituiu grande família.Para estudar melhor o assunto, a filmologia - nova ciência que estuda a influência do filme sobre o espectador e estabelece as bases psicológicas que o aproximam ou afastam da ação desenrolada na tela - criou o termo diegese. A diegese refere-se a tudo que pertence, no processo intelectivo, à história contada no filme, ao mundo fabulístico sugerido ou pretendido pela ficçãocinematográfica. A diegese, portanto, abarca o mundo ficcional apresentado pelo filme e tudo o que esse mundo implica, se fosse tomado como verdadeiro.

Matar ou morrer



Muito mais que um western, este filme, pretende ser uma parábola sobre a coragem individual diante da covardia coletiva. Faroeste com rosto humano, pode ser considerado, também, uma paráfrase do horror macartista na sociedade americana da época, quando o senador Joseph McCarthy tenta caçar todos os comunistas de Hollywood. Fred Zinnemann, diretor austríaco instalado nos Estados Unidos, aproveitando um roteiro de Carl Foreman, faz do western um veículo para a sua visão da sociedade americana.O xerife de uma localidade do oeste, Will Kane (Gary Cooper no auge de sua carreira), procura ajuda entre a população para combater uns marginais que se preparam para atacá-la. Todos, no entanto, negam-lhe o apoio e ainda aconselham a se retirar da luta a fim de evitar um derramamento de sangue. Contra a opinião de sua esposa (Grace Kelly), Kane não desiste e, só contra todos, espera, angustiado, a chegada dos assassinos.Zinnemann (A um Passo da Eternidade, Julia...) estrutura a sua narrativa com absoluto respeito à unidade de tempo - que serve para potencializar o suspense à medida que a hora fatal vai chegando.
Matar ou Morrer é um western sólido, sóbrio e bem construído, que, contrariando os cânones tradicionais do gênero, não se apóia na ação física - uma constante do western tradicional. A dimensão psicológica dos personagens adquire, aqui, capital importância: a descrição minuciosa da conduta de cada um, a crescente angústia do xerife situado entre a obrigação moral e o instinto de conservação. Foreman e Zinnemann pretendem refletir uma época na qual muitos setores do país ficam paralisados pelo medo ao contrário de uns poucos que assumem sozinhos suas graves responsabilidades morais.
Desde No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford, western paradigma e emblemático, o gênero, sempre baseado mais na ação física, evolui para sobreviver aos tempos , rompendo, com a ajuda de cineastas como William A. Wellman, Samuel Fuller, Delmer Daves (Flechas de Fogo), Howard Hawks, John Sturges, Nicholas Ray, John Ford e Anthony Mann, os estereótipos de outrora. O western humaniza-se, torna-se poético, adulto, adquire status como veículo para a análise de comportamentos e da condição humana (Rastros de Ódio, de John Ford, Winchester 73, de Anthony Mann, Johnny Guitar, de Nicholas Ray, Conspiração do Silêncio, de John Sturges, Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, de Howard Hawks...).Matar ou Morrer representa um divisor de águas no western, gênero (entende-se por gênero um conjunto de filmes que possuem o mesmo conteúdo narrativo e seguem o mesmo esquema para explicitá-lo) que se intelectualiza a partir deste filme de Zinnemann. Há cada vez mais psicologia e drama de consciência nos personagens, como neste High Noon, e em Um Homem Solitário, de Ray Milland, 1954, não faltando, mesmo, a nota freudiana, como no insuperável Rastros de Ódio, de Ford, e Gatilho Relâmpago, de Robert Rouse, 1957. Mas a alegoria do bem e do mal ressurge com força de tragédia grega em duas obras-primas: Madrugada da Traição, de Edgar Ulmer, 1956, e Crimes vingados, de Charles Haas, 1957 E a legenda do herói romântico que chega ao povoado, distribui a justiça e vai embora como um desconhecido, é retomada em Os Brutos Também Amam (Shane, 1953), de Georges Stevens.
Em Matar ou Morrer, Zinnemann respeita a unidade de tempo, isto quer dizer: o tempo físico é igual ao tempo dramático. Com uma duração de 89 minutos, tempo tomado pela projeção do filme, High Noon tem sua ação dramática compreendida neste mesmo tempo, ou seja: a compreensão do tempo levado pelos acontecimentos narrados. Assim, Gary Cooper espera os malfeitores durante um tempo igual ao da projeção do filme. Para sinalizar o avanço temporal, é mostrado sempre um plano de detalhe de algum relógio onde se encontre o personagem. Procedimento igual, entre muitos outros, fazem Robert Wise em Punhos de Campeão(The Set Up) e Alfred Hitchcock em Festim Diabólico (Rope, 1948). High Noon tem uma iluminação bastante funcional de Floyd Crosby, inserida nas solicitações dramáticas, assim como a partitura de Dimitri Tiomkin, cujo tema principal se torna um clássico da música para cinema.