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08 janeiro 2010
Um gênio do cinema
07 janeiro 2010
Do inesquecível Richard Quine
Duas palavrinhas
2) O final de La dolce vita é de uma beleza impressionante. Marcello, após uma notte brava, encontra, ao alvorecer, na praia, um peixe enorme putrefato objeto da curiosidade dos passantes, e, de repente, avista a jovem da barraca, o anjo úmbrio, que lhe acena, mas ele, deprimido, apenas a olha. Um close up dela encerra o filme, quando os créditos se levantam segundo o ritmo da partitura do maestro Nino Rota. Para se ter idéia da dimensão e da importância de La dolce vita, é preciso que se tenha vivido na época de seu lançamento, quando provocou polêmicas e era falado em toda a parte. Na verdade, La dolce vita é um discurso moral sobre a decadência da civilização ocidental. A estrutura narrativa se estabelece como uma espécie de afresco, de mosaico, sem in crescendo, com blocos narrativos que vão se encaixando. Representa também La dolce vita um corte longetudinal na filmografia de Federico Fellini. Havia um Fellini antes de La dolce vita e outro após esta tormentosa obra-prima. 8 e meio é um filme maior, de importância indiscutível, mas, sem querer diminuir o gênio felliniano, nos seus últimos filmes há uma fellinização, por assim dizer, do próprio autor. Amarcord, no entanto, é uma obra-prima dentro de outras obras-primas, como La dolce vita. Noutro dia, conversando com uma viúva de Glauber Rocha, ela me disse que Glauber Rocha não gostou de La dolce vita. Mas e daí? Que tenho eu com isso? Para a viúva glauberiana, se Glauber não gostou o filme não presta.
A foto é de um momento sublime de Divorzio all'italiana, com Mastroianni.
05 janeiro 2010
Gênio mesmo é Machado de Assis. O resto é bobagem.
Mas em Machado de Assis (1839/1908), se há descrição, esta é bem sucinta. O mestre, o maior dos escritores brasileiros em todos os tempos, principalmente a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), o seu "estalo de Vieira", preocupa-se mais na reflexão das coisas que estão sendo ditas. O seu período descritivo e uma descrição "light" - termina em "Iaiá Garcia" (1878).
Acho que foi Autran Dourado quem disse que todo ano lê, religiosamente, "Brás Cubas", "Quincas Borba" (1892), e "Dom Casmurro" (1900), "para limpar a língua". A estilística machadiana é única e insuperável, a fazer dele um autor singular. Encontra-se entre os maiores da história da literatura, mas seu azar foi ter escrito em português, língua rica, mas pouco lida. Há décadas atrás, está a ser revisado e apreciado nas universidades americanas e européias, e o crítico Harold Bloom (aquele da "Angústia da influência" e "O cânone ocidental") o tem em alta conta.
Verdade seja dita, e dita por um grande admirador do grande romance do século XIX, a descrição esmiuçada da paisagem é irritante. Mas naquela época, quando a fotografia ainda era muito incipiente, e o cinema só veio a existir a partir de 1895, havia a necessidade de o leitor ter a paisagem imaginada. Mas Machado de Assis não se molda a esta querência de realidade, excluindo-a de seus últimos romances. Mas se poderá argüir que o bruxo do Cosme Velho descrevia o Rio de Janeiro da Corte Imperial. Sim, mas com citações breves: "Enfiou-se pela rua dos Inválidos, mas viu que era longe para chegar à rua do Ouvidor". E pronto.
Mas relendo "Helena" (1876), que precede a fase maior do romancista, há rigorosa estruturação da fábula, ou da história. Os elementos da fabulação estão em perfeita sintonia com a perspectiva de expectação do leitor, que desliza seus olhos pela sintaxe machadiana com um grande interesse pelo que está por vir. Ainda na sua época romântica, o desfecho, trágico, faz parte do momento. Vê-se, aqui, um escritor rigoroso no seu pleno domínio da narrativa ou, a melhor dizer, da sintaxe da língua.
A magistral utilização do tempo em "Quincas Borba", para ficar num exemplo apenas, mostra que, em sua segunda fase, Machado procura somente a reflexão. Rubião Braz acorda num dia de Ano Novo, senta-se num sofá e, com as mãos, fica a mexer nas borlas do roupão. Pensa em como chegou até aquela posição confortável e, até quase a metade do livro, a "ação" localiza-se nos arcanos da memória do grande personagem, a reviver como veio a conhecer Cristiano Palha e a bela, esplendorosa, magnífica Sofia (talvez a mulher mais perfeita "esculpida" por Machado de Assis).
Certa ocasião, vários intelectuais, encantados e extasiados com a prosa de "Quincas Borba", foram a Ferreira Gullar lhe perguntar o que queria Machado de Assis realmente dizer no livro. Gullar pensou um instante e respondeu: "É um livro sobre a arte de escrever".
Se, na fase romântica, anterior à explosão "brascubasiana", e, com ela, a desconstrução do romance tradicional, Machado procura estabelecer a estrutura narrativa numa forma "in progress", a partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" tudo se reduz ao estudo de caracteres, muito embora, já no seu primeiro livro, "Ressurreição", pretenda, justamente, antes de tudo, a observação de comportamentos.
Escreveu Machado na advertência da primeira edição de "Ressurreição" (1872): "Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dous caracteres; com estes simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e, sobretudo, se o operário tem jeito para ela. É o que lhe peço com o coração nas mãos".
Para buscar o interesse do leitor, apóia-se em dois simples elementos: o esboço de uma situação e o contraste entre caracteres. O propósito do primeiro livro se alarga a partir de então até atingir a metalinguagem, a meta-literatura a partir de "Brás Cubas", quando, em determinado momento, para desfazer a ânsia das leitoras da "biblioteque rosé", dá-lhes o conselho de pular o capítulo, caso queira saber logo os detalhes de determinado assunto. Um escritor na melhor tradição de Cervantes e Xavier de Maistre.
As adaptações cinematográficas dos livros de Machado de Assis sempre foram desagradáveis àqueles que conhecem o estilo do grande mestre. "Dom Casmurro", por exemplo, que se chamou "Capitu" na versão cinematográfica, é um verdadeiro assassinato à obra literária perpetrada por várias mãos: as de Paulo César Saraceni (diretor), e, por incrível que pareça, pelas mãos de duas reconhecidas e talentosas pessoas das letras: o crítico cinematográfico e autor literário Paulo Emílio Salles Gomes e sua esposa, na época, Lygia Fagundes Telles. Sem falar na eleita para o papel título tão delicado: a desajeitada Isabella, escolhida porque era, então, mulher de Saraceni.
"Quincas Borba", do ilustre realizador paulista Roberto Santos, nem chegou a ser lançado, mas o que se diz é que é um filme abaixo de qualquer crítica. Vários contos de Machado foram adaptados para a tela, mas com resultados pífios, a exemplo de "Um homem célebre", com Walmor Chagas. E se chegou ao cúmulo de querer modernizar o bruxo do Cosme Velho com outra versão de "Dom Casmurro" cuja ação se passa na época atual: "Dom", de Moacyr Góes, com Maria Fernanda Cândido e Marcos Palmeira. O resultado? Melhor não dizê-lo.
O fato é que o romance filmado é uma utopia, porque duas práticas narrativas que se baseiam num diferente noção de espaço e de tempo. A menos que se queira ficar-se pela "ilustração" de histórias contadas pelo romance, o filme deve converter para o seu espaço-tempo a ação que pediu de empréstimo ao primeiro. Não deve haver, portanto, qualquer preocupação de fidelidade à letra do texto original mas, pelo contrário, a mais ampla liberdade na procura de soluções dramáticas e de "figuras" estilísticas capazes de produzir, na tela, o mesmíssimo efeito poético confiado na página a outros tantos recursos ao dispor da linguagem escrito-verbal. Hitchcock já disse, na sua proverbial sabedoria, que nunca gostou de adaptar obras literárias consagradas. E cita um exemplo: caso alguém queira filmar "Crime e castigo", de Dostoievsky, o filme teria de ter um tempo (para manter fidelidade) de duração excessivo: mas de duzentas horas de projeção. Mas, mesmo assim, a estilística dostoievskyana desapareceria em função da narrativa do realizador cinematográfica. E, perdido o estilo, tudo se perde, porque, como dizia Buffon, "o estilo é o homem".
03 janeiro 2010
Em busca da antiga magia do cinema
O fato é que, com o surgimento dos novos suportes, com o avanço da tecnologia, que possibilita a visão de filmes “em qualquer lugar”, a magia das salas exibidoras desapareceu. As imagens em movimento se tornaram rotineiras. Nasce-se, hoje, vendo-as no televisor acoplado na parece do hospital enquanto ainda se está a sair para a vida. Todo mundo pode, atualmente, fazer um filme. Faz-se filmes como antigamente se fazia poesias. Mas isto não quer dizer que eles sejam poéticos (alguns podem sê-los). E o velho cineclube? Ainda teria a mesma função, o mesmo fascínio, a mesma curiosidade? Em alguns lugares, as sessões, por assim dizer, cineclubistas, ainda funcionam, a exemplo das concorridas sessões do Comodoro, patrocinadas pelo cineasta Carlos Reichenbach na capital paulista. Mas, creio, são exceções que fogem à regra. O “negócio”, nos dias que correm, se encontra em baixar filmes da internet. E, com isso, aquele reverência que se tinha, diante das imagens em movimento, se perdeu no tempo. As coisas mudam, porém, e, com elas, a recepção ao filme se tornou um ato rotineiro sem o tão necessário encantamento e assombro. Na verdade, está a acontecer uma revolução no modo de ver o filme, e esta revolução tem que ser assimilada, compreendida. O cinema que se tinha, nos moldes de antigamente, está morto. A sentença de morte foi dada poeticamente por “Cinema Paradiso” (“Nuevo Cinema Paradiso”, 1989), de Giuseppe Tornatore. E, também, na mesma época, por “Splendor”, de Ettore Scola. Mas, e a respeitar aqueles que gostam de ver filmes na telinha do computador, devo dizer, em alto e bom som: recuso-me, peremptoriamente a ver filmes na telinha do aparelho informático. Vejo-os muitos
Com o advento do VHS, do laser-disc, do DVD, e, agora, com a possibilidade de se baixar quase tudo da internet, a pergunta que se quer fazer é a seguinte: ainda haveria condições de ser ter um clube de cinema nos moldes do de Walter da Silveira nas décadas de 50 e 60 em Salvador?
Naquela época, difícil era se ver certos filmes, que ficavam restritos às cinematecas. O mercado exibidor se restringia aos lançamentos e as constantes reprises de filmes de sucesso. Como, nos anos citados, assistir aos filmes neo-realistas, aos do expressionismo alemão, às obras mais independentes de cinematografias desconhecidas, às obras do realismo poético francês, à vanguarda da estética da arte muda? O único jeito era a viagem e, assim mesmo, o mais certo seria ao exterior, às cinematecas de Nova York ou a de Paris, além de outras importantes da Europa. Aqui no Brasil, existiam, mas ainda incipientes, as cinematecas do Rio e de São Paulo (esta com um acervo mais versátil). Salvador não tinha nenhuma possibilidade de constituir uma cinemateca.
A importância de Walter da Silveira (que boa parte da nova geração não sabe quem foi, apesar de nome de sala alternativa nos Barris) foi justamente a de, com a fundação do Clube de Cinema da Bahia, trazer filmes especiais, essenciais à evolução da linguagem e da estética cinematográficas. Walter da Silveira fez ver, aos baianos de província (mas uma província muito agradável bem diferente da cidade engarrafada de hoje), que o cinema, além de um bom divertimento, era, também, a expressão de uma arte. O próprio Glauber Rocha, quando de sua morte, em novembro de 1970, em artigo para o Jornal da Bahia, confessou que o ensaísta fora seu grande mestre, que aprendeu a ver cinema através das palavras de Walter da Silveira. E conta, num artigo, o esporro que este lhe deu, quando, numa exibição de "O encouraçado Potemkin", numa sessão matutina no cinema Liceu, conversava, durante a exibição, com um amigo. Walter, percebendo o "arruído", deu-lhe tremendo esporro, segundo palavras do próprio Glauber que, conta, nunca mais falou durante a projeção de um filme, tal a indignação do mestre diante do jovem tagarela.
Atualmente, no entanto, com a facilidade existente, pode-se ver um raro filme antigo, a exemplo de "Ordet, de Carl Theodor Dreyer, famoso cineasta dinamarquês, em boa cópia
Há dois anos, tentou-se implantar um cineclube na Faculdade de Comunicação. Com excelente programação. Retrospectivas de Kubrick, Buñuel etc. Mas os alunos, antes de entrar, perguntavam se os filmes estavam disponíveis
Uma vez no Rio, ao saber da exibição de "Ladrões de bicicleta" na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em única sessão, ainda que mal tivesse chegado à cidade, corri para lá. Finda a exibição, chuva torrencial fiquei encharcado e voltei a pé para o hotel (a cidade engarrafada, tudo parado). Nos tempos atuais, faria o mesmo sacrifício? Claro que não, pois o DVD de "Ladri di biciclette" está disponível não somente para ser adquirido, mas também nas melhores locadoras da cidade.
Qual a função do cineclubismo nos dias atuais? Walter da Silveira, por exemplo, sobre ser um dos maiores ensaístas de cinema do Brasil (na Bahia ninguém nunca lhe chegou perto), era um homem, verdade se diga, à antiga, de tom grave, circunspeto, com uma gestualística bem diversa da juventude atual e, mesmo, dos menos jovens que atualmente constituem o meio circundante e intelectual, universitário. A figura de Walter faz lembrar aqueles antigos mestres universitários, principalmente os professores da Faculdade de Direito (no acento vocal, nas pausas, na maneira de expor o assunto, um "magister dixit").
Mas acontece que o mundo mudou e, com ele, a cultura. Houve um papel importantíssimo exercido por Walter da Silveira. Os realizadores que se aventuram na captação das imagens em movimento são contemporâneos de um cinema digital. Faz-se filmes até pelos telefones celulares. O Clube de Cinema da Bahia, portanto, não poderia existir - nem teria razão de ser - nesta chamada contemporaneidade. A própria psicologia de recepção da obra cinematográfica mudou. Bem, são reflexões ao acaso.