Oito e meio (Otto e mezzo, 1964), de Federico Fellini, foi um filme-impacto na minha juventude. |
O que é, afinal de contas, cultura cinematográfica? Quando se pode dizer que determinada pessoa tem cultura cinematográfica? Apoiando-me numa preciosa definição do falecido crítico literário José Paulo Paes, tradutor e ensaísta de grande renome, vou tentar expandir o seu conceito de cultura para o cinema. Disse ele numa palestra: "Cultura não é acumulação de informação, é assimilação de informação, é tudo aquilo de que a gente se lembra após ter esquecido o que leu. A cultura se revela no modo de falar, de sentar, de comer, de ler um texto, de olhar o mundo. É uma atitude que se aperfeiçoa no contato com a arte. Cultura não é aquilo que entra pelos olhos, é o que modifica o seu olhar. (Veja bem, a observação, aqui: "Cultura é o que modifica o seu olhar"). Não é preciso ler muito, mas ler bem"
Procurando aplicar, ao cinema, o que José Paulo Paes definiu como cultura, podemos dizer que o verdadeiro cinéfilo é aquele que assimila bem os filmes vistos e, por conseguinte, lembra-se de certas sequências após ter esquecido o que viu. Existem, infelizmente, pessoas que assistem aos filmes como produtos meramente descartáveis, esquecendo-os completamente pouco tempo depois de tê-los visto. Ora, pessoas assim não podem ser consideradas cinéfilas, porque, para poder ostentar esta condição, de apreciadoras do cinema, devem, antes de tudo, assimilar bem o que viu para, então, ter, até, modificado o seu olhar pela influência de certas obras fundamentais.
Não seria exagero afirmar que depois que vi Oito e meio (Otto e mezzo), de Federico Fellini, tive, modéstia à parte, meu olhar modificado, e um novo horizonte se despontou, para mim, em relação às potencialidades expressivas do cinema como um autêntico veículo de expressão artística. Oito e meio traumatizou a minha condição de então de cinéfilo en passant. Filmes, porém, como os blockbusters oriundos da indústria cultural desta maldita contemporaneidade, somente entram pelos olhos dos espectadores, entorpecendo-os, brutalizando-os, sem que haja nenhuma modificação de suas visões de mundo (não gosto dessa expressão olhar,que me parece muito academizante - mea culpa se a usei acima). A iniciação de um cinéfilo se faz pelo processo temporal, pois a habitualidade é uma conditio sine qua non da formação de platéias. Já se disse que o excesso de informação pode gerar a desinformação, porque, antes de mais nada, necessária a contemplação, pois é através desta que se penetra na coisa e, é por meio dela que se inicia o processo de conhecimento do sentido do cinema. Um filme como Morangos silvestres (Smultronstallet), de Ingmar Bergman, ou Dogville, de Lars Von Trier, ou, ainda, Sobre meninos e lobos (Mystic river), de Clint Eastwood, Ervas daninhas (Les herbes folles), de Alain Resnais, para se ficar mais no contemporâneo (e considerando que, desaparecidos os grandes mestres do cinema, é preciso que as pessoas se contentem com os que restam), são obras que oferecem àquele que as aprecia uma nova perspectiva, ainda que pessimista diante do mundo - mas não se pode esquecer que a vida é traiçoeira e cruel.
A cultura cinematográfica é aquela, portanto, que, assimilada, é sempre lembrada mesmo depois que muitos anos tenham se passado daquilo que se viu. São os filmes que ficam na memória, que nos fazem sentir que o cinema é um poderoso instrumento estético, humanista, revelador etc. Se uma obra cinematográfica é capaz de fazer uma pessoa modificar o seu olhar (vá lá, bata-me um suco de graviola!), esta obra tem um valor que transcende o mero entretenimento, acrescentando-lhe uma visão mais profunda e, com isso, tornando o cinema um veículo produtor de sentidos.
Necessário, no entanto, não confundir alhos com bugalhos, saber apreciar tanto um filme de narrativa clássica inteligente como uma narrativa cujas tomadas, demoradas, procurem uma desvinculação de modelos já gastos. O valor cinematográfico de um filme se encontra na maneira pela qual o tema é tratado, pelo modo pelo qual o realizador manipula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Assim, não é preciso ver muito, mas ver bem, embora o vestibulando a cinéfilo precise ver o maior número de filmes possível para saber, depois, separar o joio do trigo. Quando comecei, há trinta e seis anos, três décadas nada prodigiosas, minha carreira de comentarista, via todos os lançamentos da semana. Freqüentava, em tempos pretéritos, as salas de cinemas todos os dias e, num ano, conhecia todos os filmes que fossem lançados no mercado. Hoje, cansado de guerra, sou mais seletivo.
Há filmes ruins, por outro lado, que ensinam pelos seus erros, pela sua tragédia como possibilidade cinematográfica. Saber ver os erros, ter consciência de um filme enquanto linguagem, que se traduz numa narrativa a conduzir a fábula, sentir os momentos capazes de proporcionar estesia, saber, enfim, admirar um corte de Welles, um contracampo de Jean Renoir, uma panorâmica de John Ford, um travelling de Hitchcock, a desdramatização de um Michelangelo Antonioni e seu domínio da anti-narrativa, o cinema enquanto ensaio proposto por Godard, etc, é saber ver o cinema. O que significa dizer: é ter cultura cinematográfica.