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16 abril 2011

O que é ter cultura cinematográfica?

Oito e meio (Otto e mezzo, 1964), de Federico Fellini, foi um filme-impacto na minha juventude.

O que é, afinal de contas, cultura cinematográfica? Quando se pode dizer que determinada pessoa tem cultura cinematográfica? Apoiando-me numa preciosa definição do falecido crítico literário José Paulo Paes, tradutor e ensaísta de grande renome, vou tentar expandir o seu conceito de cultura para o cinema. Disse ele numa palestra: "Cultura não é acumulação de informação, é assimilação de informação, é tudo aquilo de que a gente se lembra após ter esquecido o que leu. A cultura se revela no modo de falar, de sentar, de comer, de ler um texto, de olhar o mundo. É uma atitude que se aperfeiçoa no contato com a arte. Cultura não é aquilo que entra pelos olhos, é o que modifica o seu olhar. (Veja bem, a observação, aqui: "Cultura é o que modifica o seu olhar"). Não é preciso ler muito, mas ler bem"

Procurando aplicar, ao cinema, o que José Paulo Paes definiu como cultura, podemos dizer que o verdadeiro cinéfilo é aquele que assimila bem os filmes vistos e, por conseguinte, lembra-se de certas sequências após ter esquecido o que viu. Existem, infelizmente, pessoas que assistem aos filmes como produtos meramente descartáveis, esquecendo-os completamente pouco tempo depois de tê-los visto. Ora, pessoas assim não podem ser consideradas cinéfilas, porque, para poder ostentar esta condição, de apreciadoras do cinema, devem, antes de tudo, assimilar bem o que viu para, então, ter, até, modificado o seu olhar pela influência de certas obras fundamentais.

Não seria exagero afirmar que depois que vi Oito e meio (Otto e mezzo), de Federico Fellini, tive, modéstia à parte, meu olhar  modificado, e um novo horizonte se despontou, para mim, em relação às potencialidades expressivas do cinema como um autêntico veículo de expressão artística. Oito e meio traumatizou a minha condição de então de cinéfilo en passant. Filmes, porém, como os blockbusters oriundos da indústria cultural desta maldita contemporaneidade, somente entram pelos olhos dos espectadores, entorpecendo-os, brutalizando-os, sem que haja nenhuma modificação de suas visões de mundo (não gosto dessa expressão olhar,que me parece muito academizante - mea culpa se a usei acima). A iniciação de um cinéfilo se faz pelo processo temporal, pois a habitualidade é uma conditio sine qua non da formação de platéias. Já se disse que o excesso de informação pode gerar a desinformação, porque, antes de mais nada, necessária a contemplação, pois é através desta que se penetra na coisa e, é por meio dela que se inicia o processo de conhecimento do sentido do cinema. Um filme como Morangos silvestres (Smultronstallet), de Ingmar Bergman, ou  Dogville, de Lars Von Trier, ou, ainda, Sobre meninos e lobos (Mystic river), de Clint Eastwood, Ervas daninhas (Les herbes folles), de Alain Resnais, para se ficar mais no contemporâneo (e considerando que, desaparecidos os grandes mestres do cinema, é preciso que as pessoas se contentem com os que restam), são obras que oferecem àquele que as aprecia uma nova perspectiva, ainda que pessimista diante do mundo - mas não se pode esquecer que a vida é traiçoeira e cruel.

A cultura cinematográfica é aquela, portanto, que, assimilada, é sempre lembrada mesmo depois que muitos anos tenham se passado daquilo que se viu. São os filmes que ficam na memória, que nos fazem sentir que o cinema é um poderoso instrumento estético, humanista, revelador etc. Se uma obra cinematográfica é capaz de fazer uma pessoa modificar o seu olhar (vá lá, bata-me um suco de graviola!), esta obra tem um valor que transcende o mero entretenimento, acrescentando-lhe uma visão mais profunda e, com isso, tornando o cinema um veículo produtor de sentidos.

Necessário, no entanto, não confundir alhos com bugalhos, saber apreciar tanto um filme de narrativa clássica inteligente como uma narrativa cujas tomadas, demoradas, procurem uma desvinculação de modelos já gastos. O valor cinematográfico de um filme se encontra na maneira pela qual o tema é tratado, pelo modo pelo qual o realizador manipula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Assim, não é preciso ver muito, mas ver bem, embora o vestibulando a cinéfilo precise ver o maior número de filmes possível para saber, depois, separar o joio do trigo. Quando comecei, há trinta e seis anos, três décadas nada prodigiosas, minha carreira de comentarista, via todos os lançamentos da semana. Freqüentava, em tempos pretéritos, as salas de cinemas todos os dias e, num ano, conhecia todos os filmes que fossem lançados no mercado. Hoje, cansado de guerra, sou mais seletivo.

Há filmes ruins, por outro lado, que ensinam pelos seus erros, pela sua tragédia como possibilidade cinematográfica. Saber ver os erros, ter consciência de um filme enquanto linguagem, que se traduz numa narrativa a conduzir a fábula, sentir os momentos capazes de proporcionar estesia, saber, enfim, admirar um corte de Welles, um contracampo de Jean Renoir, uma panorâmica de John Ford, um travelling de Hitchcock, a desdramatização de um Michelangelo Antonioni e seu domínio da anti-narrativa, o cinema enquanto ensaio proposto por Godard, etc, é saber ver o cinema. O que significa dizer: é ter cultura cinematográfica.

14 abril 2011

O eterno retorno

Paul Newman - talvez na melhor interpretação de sua carreira - como o advogado alcoólatra  de  O veredicto (The verdict, 1982), de Sidney Lumet.

Dei-me férias do espaço virtual por dois meses. Alguns artigos aqui postados foram através de um pen-drive que levava comigo com alguns arquivos e que, ao sabor da hora e do humor do tempo, postava-os para não deixar a página completamente desatualizada. De vez em quando, e de quando em vez, conferia minha caixa postal. O fato é que, sem a navegação, aumentei muito a minha carga de leitura e a visão de filmes em DVD. Estou relendo os grandes clássicos do século passado (Dostoievsky, Balzac, Stendhal, Flaubert...). Com o pen-drive colocado no bolso dianteiro de minha calça, onde fica o isqueiro, muitas vezes tirava o pen e tentava -  sem resultado - acender o cigarro amigo com este, porque do mesmo tamanho. Sim, existe vida fora da internet. É claro que atualmente, e principalmente para quem tem colunas em jornais, o Microsof Word é indispensável, conditio sine qua non para o exercício da profissão de jornalista. Estava, antes do repouso internético, jogando muitas abobrinhas no Facebook e Twitter. Os dois reunidos estão promovendo a Primavera Árabe e causando um impacto positivo na rede de comunicação mundial. Mas eis que, de repente, morre Elizabeth Taylor, a última atriz do star system, a derradeira estrela do cinema nos moldes daquele feito no passado. E há poucos dias, a notícia do falecimento de Sidney Lumet. O que fazer? Todos nós começamos a morrer quando nascemos, eis a verdade verdadeira no sentido kantiano. Termino por aqui. Acho que estou ficando velho. C'est la vie!

12 abril 2011

Sidney Lumet está morto


Iria colocar uma tarja preta neste blog, mas não soube como fazê-lo. Por causa da morte de Sidney Lumet, um grande realizador americano que morreu há alguns dias, aos 86 anos (boa idade, aliás, para se passar à eternidade, já que não podemos ficar para semente). Sobre ser um profissional acima da média, um cineasta notável, não teve em vida a notoriedade merecida - talvez por uma certa irregularidade na sua ficha filmográfica, mas quando tinha um bom roteiro em mãos geralmente o suplantava e causava admiração. Aliás, há poucos anos, o seu derradeiro opus, Antes que o diabo saiba que você está morto, entrou para a minha lista dos melhores filmes do ano.

Gostaria de fazer um mergulho retrospectivo na sua filmografia, mas, no momento, não há tempo disponível na minha agenda ociosa. O que não posso, sob pena de consciência culpada, é deixar de registrar o seu passamento, o desaparecimento de um profissional de altíssimo nível, que, lá vai o clichê, deixa o cinema contemporâneo cada vez mais pobre e medíocre. Lumet, homem de lhano trato, observador irônico do comportamento humano não desprovido de fina ironia, simples no trato, era, porém, exigente quando trabalhava (escreveu um livro onde relata o seu método de trabalho).

Não faz parte dos grandes pioneiros do cinema americano, mas surgiu da geração da televisão, onde começou a sua carreira até que realizou o seu primeiro e consagrado longa: Doze homens e uma sentença (12 twelve men, 1957), com Henry Fonda, Lee J. Cobb, e grande elenco, em CinemaScope e branco e preto, cuja ação se localiza durante duas horas numa sala onde jurados decidem a sorte de um réu. Impressionante o sentido da utilização do espaço exíguo e a capacidade de manter o espectador integrado ao espetáculo sem que haja, por parte deste, nenhuma hesitação em relação à abdicação de vê-lo, grudado, até o the end. Notável também o seu método de dirigir atores, embora estes, no cast de 12 twelve men, fossem excepcionais. Henry Fonda, que ajudou na produção, chegou a dizer, em entrevista, que Doze homens e uma sentença era o filme de sua preferência.

Entre os filmes de Sidney Lumet que mais admiro, além do citado Doze homens e uma sentença, estão Limite de segurança (Fail safe, 1964), com Henry Fonda, um dos mais agudos alertas sobre a ameaça nefasta da bomba atômica e seu perigo iminente; Um longo dia de viagem dentro da noite (Long day's journey into night, 1962), adaptação conscienciosa da grande peça de Eugene O'Neil, mas boicotado em sua distribuição comercial, que tem, no cast, entre outros, a excelsa Katherine Hepburn; O homem do prego (The pawbroker, 1965), com interpretação inexcedível de Rod Steiger, como o judeu atormentado pelo passado e que vive trancafiado em seu trabalho como dono de uma casa de penhor (que revi recentemente no Telecine Cult); neste filme, quase todo rodado em exteriores, na agitação da selva de pedra novaiorquina, Lumet usa com um sentido muito preciso o flash-back super rápido, que seria muito imitado por outros cineastas, sabendo absorver, e bem, os ensinamentos dos lances de memória resnaisianos; A colina dos homens perdidos (The hill, 1965), que se passa num campo de trabalho forçado e, pela primeira vez, apresenta Sean Connery numa interpretação que atesta a sua força de grande ator; Chamada para um morto (The deadly affair, 1967), eficiente thriller que tem James Mason; Serpico (1973), com Al Pacino como um policial sui generis na labuta diária do crime em cidade grande; Um dia de cão (Dog day's afternoon, 1975); Rede de intrigas (Network, 1976), com William Holden, Faye Dunaway e Peter Finch, que focaliza os bastidores nada reluzentes de um canal televisivo e deu, por este desempenho, um Oscar a Finch, que morreu logo depois das filmagens; A manhã seguinte (The morning after, 1976), filme esquecido e desprezado sobre o alcoolismo, com Jane Fonda e Jeff Bridges, O veredicto (The verdict, 1982), com forte presença de Paul Newman como o advogado alcoólatra que pega um caso como última tentativa de redenção,  entre outros.

Que a terra lhe seja leve, caro e querido Sidney Lumet!