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29 janeiro 2014

Os 55 anos da Nouvelle Vague

Em 1959, com a premiação em Cannes de Os incompreendidos (Les quatre-cents coups), de François Truffaut, e a realização de Acossado (A bout de souflle), de Jean-Luc Godard, tem início a Nouvelle Vague, que, neste 2014, completa  55 anos. A Nouvelle Vague representou uma linha evolutiva para a linguagem, lançando uma nova maneira de olhar o mundo, uma modernização temática, procedimentos inovadores na maneira de articular a narrativa cinematográfica, além de uma alteração importante no sistema de produção. É preciso compreender o seu significado. É o que espero fazer, aqui, em duas colunas. Se, após lidas, houver uma compreensão, mesmo que generalista, de seu significado, o trabalho não estará perdido.

Eclosão de talentos díspares, detonada por cineastas dotados de estilos particulares, a Nouvelle Vague, que surge na França em fins dos anos 50 (1959), e que faz, agora, neste ano de 2009, 50 anos, tem, no entanto, um denominador comum: a alteração no sistema de produção, o tratamento de temas considerados tabus, a experimentação na linguagem cinematográfica, o enfoque do homem contemporâneo, etc. Os 50 anos da Nouvelle Vague, neste momento de deslumbramento tecnológico, hegemonia da indústria cultural dos blockbusters e, em conseqüência, da perda da humanidade dos filmes, devem ser registrados como um exemplo único de modernidade, de criatividade, de impacto na sociedade de sua época, de renovação da linguagem fílmica e, principalmente, do império do cinema como um gênero técnico-formal mais virado para a expressão do que para a comunicação. Diante da crise da contemporaneidade na qual o cinema, como expressão da imagem humana, se afunda numa profusão de títeres, marionetes e efeitos especiais (exceção se faça a poucos, como Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, e A Troca, este magistral Clint Eastwood ainda em cartaz), na qual o homem desaparece, vale lembrar que a sobrevivência do cinema como arte está estreitamente ligada à tutela da sua função mitopoética e ao reconhecimento do seu papel de grande matriz moderna da cultura.

Há, na trajetória da história do cinema, momentos culminantes que o transformam e, entre esses momentos, está o do aparecimento da Nouvelle Vague, quando se pode dizer que existe um cinema antes da Nouvelle Vague e um cinema depois de sua eclosão. Assim, como a linguagem é uma antes de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, e outra, após a realização desta obra fundamental, ponto de partida da cinematografia moderna. Os momentos divisores-de-água se espalham pela história: o expressionismo alemão (dos anos 10 e 20), a escola documentarista britânica (quando se consolida o realismo) na década de 20 (John Grierson, Paul Rotha, Alberto Cavalcanti...), a introdução da profundidade de campo (Welles, Renoir, William Wyler...), nos 40, o neo-realismo italiano...

A Nouvelle Vague faz parte de um sopro renovador que atinge o cinema nos anos 50 e que influi em toda uma geração de cineastas da década de 60 (Cinema Novo, no Brasil, Free Cinema, na Inglaterra, o cinema underground nova-iorquino, o novo cinema alemão...). Com seus cineastas oriundos da crítica (da revista Cahiers du Cinema), cinéfilos por vocação, o sopro de modernidade francês determina uma nova maneira de narrar a partir de fragmentos dessemelhantes não mais unidos por um esquema dramático rígido, mas pelo próprio evoluir dos personagens em torno de núcleos de impulsos e de idéias.

Do ponto de vista teórico, é um artigo de François Truffaut, questionando o cinema clássico dos estúdios franceses, que não oferece oportunidade aos iniciantes, o provocador da primeira polêmica em torno da necessidade de mudança no sistema de produção. Assim, a exigência de uma solução econômica surge como a manifestação inicial da Nouvelle Vague. Os produtores, a fim de investir com garantias de reembolso do seu capital, sempre desconfiam daqueles que, sem experiência e sem renome, denotam sintomas de personalidade e de audácia – os filmes são confiados, assim, a cineastas já credenciados, de longo tirocínio. Investindo contra esse sistema, os críticos do Cahiers du Cinema, com parcos recursos (tirados da família, da criação de cooperativas, do próprio bolso...) começam, então, a transferência da teoria a praxis cinematográfica.

A Nouvelle Vague faz uma apologia da liberdade existencial do homem contemporâneo (aquele de 1959) e, nos seus filmes, o tratamento temático se desvincula dos padrões gramaticais estabelecidos. Consolida-se o não-herói em oposição ao herói clássico ou, mesmo, o anti-herói. O retrato de uma situação, a descrição e análise de um momento da vida, e o estudo de comportamentos ambíguos triunfam sobre o argumento tradicional. A fórmula griffithiana (de David Wark Griffith, americano, pai da linguagem cinematográfica com O nascimento de uma nação, 1914, e Intolerância, 1916) da lei de progressão dramática (exposição, intriga, clímax e desenlace) é posta de lado, com os personagens das fitas da Nouvelle Vague não mais com uma unidade psicológica e emocional precisa, mas como um feixe de sentimentos explicitados, contraditórios, ambíguos.

Rompe-se a relação dramática entre personagem e herói e a visão dos seres e objetos se purifica, é desdramatizada – o que determina uma apresentação de fatos e personagens sem enfeites adjetivos. Não mais existe, por conseguinte, o herói em oposição ao vilão, encaixando-se o homem num quadro existencial em que o bem e o mal são ficções puramente lógicas.

Os precursores da Nouvelle Vague já podem ser encontrados em fins dos anos 40, em Alexandre Astruc, principalmente, que, em 1948, lança sua teoria da camera-stylo (“o cinema se libertará pouco a pouco da tirania do visual, da imagem pela imagem, do enredo imediato e concreto, para tornar-se um meio de escritura tão leve e tão sutil quanto a linguagem escrita.”). E em Jean-Pierre Melville (que aparece, em Acossado, de Godard, como o escritor entrevistado por Jean Seberg numa homenagem significativa) que, em 1946, em 24 heures de la vie d’un clown emprega métodos modernos assemelhados aos da vaga francesa. Também em Agnès Varda que, em 1955, realiza La ponte courte, que configura um sentido de um cinema com um frescor e liberdade nada parecidos com as películas dos realizadores franceses da velha guarda. E, ainda, em Roger Vadim e Louis Malle, os quais, em 56 e 57, respectivamente, em ...E Deus criou a mulher (...Et Dieu créa la femme) e Ascensor para o cadafalso (Ascenseur pour l’échefaud) utilizam uma linguagem desamarrada dos cânones narrativos tradicionais.

...E Deus criou a mulher lança o mito de Brigitte Bardot e um plano de sua imagem nua, secando ao sol, causa escândalo e proibições. Alain Resnais, Georges Franju, entre outros, experimentam novas modalidades de produção, usando a bitola de 16mm. E, finalmente, o grupo da revista Cahiers du Cinema, os, por assim dizer, detonadores da Nouvelle Vague: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Doniol-Valcroze, Pierre Kast. O crítico André Bazin, fundador da revista, que falece em 1958, prematuramente aos 40 anos, é considerado o pai espiritual do grupo.

A Nouvelle Vague aparece oficialmente no Festival de Cannes, em 1959, com a Palma de Ouro conferida a Os incompreendidos (Le quatre-cents coups), de François Truffaut, na categoria de “melhor direção” (o de “melhor filme” é conquistada por Marcel Camus por Orfeu Negro, a versão da peça de Vinicius de Moraes que Cacá Diegues adapta com profunda falta de inspiração). Com a premiação de Truffaut, as portas dos estúdios, antes tão fechadas aos iniciantes, começam a se abrir para alguns realizadores novos. Ainda que se denomine a efervescência criadora francesa de movimento, a rigor, a Nouvelle Vague foge às características deste, pois seus membros não se atêm a regras ou postulados de criação comuns, nem se guiam pelas mesmas tendências estéticas. E, por isso mesmo, também não pode ser chamada de uma escola.

É, na verdade, uma camada de renovação que se sobrepõe à tradição dos filmes franceses, que, com a elipse de suas vigas mestras, o naturalismo e o realismo poético, já não se sustentam. A Nouvelle Vague opera uma ruptura violenta, a modificar as relações dos velhos sistemas de produção. A nova geração não se comunica com a anterior, mas, ao contrário, a substitui. É a Nouvelle Vague, quando aparece em 59, um estado de espírito, um conjunto de afirmações inconformistas partidas de cineastas como Melville, Astruc, Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer... 

O fascínio que os realizadores dessa vaga consagram ao cinema é um fascínio desconhecido das gerações precedentes, pois esta geração se forma com o cinema num ambiente de cinematecas e cineclubes, no exercício da crítica e na permanente reflexão sobre a arte do filme – o que nunca ocorrera. A Nouvelle Vague também tem a vantagem de se principiar numa arte já instituída e organizada, o que permite, como conseqüência, ao cinema moderno, aproximar-se sensivelmente da plena realidade humana.

Há, por exemplo, em Louis Malle e Roger Vadim, um erotismo sadio e libertário (os hipócritas de todos os tipos e os falsos moralistas viram 'indecência' e pornografia na bela cena na qual Jeanne Moreau, em Os amantes, pratica um fellatio em seu amante). Em Jean-Luc Godard, um cinismo irônico, quase amoral, bem típico da geração da vaga (quando Jean-Paul Belmondo, no princípio de Acossado [A bout de souffle], atira contra o sol está indicado, aí, o início). Já em François Truffaut pode ser encontrada uma espécie de lirismo de impacto, ainda que não leve o tema à conclusão, deixando ao espectador a tarefa de resolvê-lo, como em Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961). O novo conceito de personagem advindo dos filmes de Godard, Truffaut, Chabrol, Malle, entre outros, exige, por sua vez, um novo estilo de fotografia (Raoul Coutard) e um novo estilo narrativo.

Questiona-se o caráter de movimento da Nouvelle Vague por se levar em conta mais a exigência de uma solução econômica para o cinema francês do que mesmo estética. É verdade que o aspecto econômico tem fundamental importância na eclosão dessa nova vaga, pois aqui se institui uma estética da necessidade (não se pode deixar de levar em conta a sua influência no Cinema Novo brasileiro e a estética da fome glauberiana, ainda que com acentos diferenciadores marcantes, é uma decorrência da alteração proporcionada pelos cineastas franceses no sistema de produção). Por outro lado, existe um despojamento dos processos de filmagem que funda uma nova estética – despojamento pela carência de grandes equipamentos e pela exigüidade orçamentária, limitada a equipe de trabalho a prazo e acessórios restritos.

A política da câmera na mão (que os cineastas dinamarqueses pregam no manifesto Dogma 95 como novidade é, como se vê, antiga e também praticada pelos cinemanovistas), da iluminação natural, da concisão dos efeitos estéticos pretendidos até o máximo de concentração, num mínimo de takes, uma vez colocada em desdobramento, não apenas subverte os métodos 'profissionais' mas, e principalmente, determina o vocabulário e a sintaxe da Nouvelle Vague, fazendo-a particular.

Assim, a tão utilizada montagem fracionada, ou seja, a montagem de instantes (vide a seqüência longa de Belmondo e Seberg no hotel em Acossado), purificando a ação aos seus movimentos essenciais, bem como a extrema mobilidade da câmera e a duração prolongada das tomadas (takes), acham-se condicionadas ao método mais livre e improvisado da filmagem. A estética da Nouvelle Vague em seus predicados evidentes é, como se disse, é uma estética da necessidade. François Truffaut sempre disse:”todo bom filme deve saber exprimir ao mesmo tempo uma visão do mundo e uma visão do cinema.” E Godard, no início dos anos 60: “nós somos os primeiros cineastas a saber que Griffith existe.” Uma nova consciência da linguagem cinematográfica acompanha e alimenta boa parte da produção de diretores da nova onda.

Se Os incompreendidos, de François Truffaut, ao ganhar a Palma de Ouro, deflagra a Nouvelle Vague, é, no entanto, Acossado, de Godard, que se apresenta como o filme mais significativo da rebeldia dos jovens críticos franceses – para os quais cada obra cinematográfica é, também, um ensaio sobre imagens e sobre o cinema, sobre a relação entre o diretor e as histórias narradas, entre o autor e a personagem interpretada, entre a relação das palavras e das imagens... Acossado (que, visto recentemente, conserva todo o seu impacto e já se encontra incluso em todas as antologias e enciclopédias sobre a sétima arte), filmado em quatro semanas entre Paris e Marselha, quase todo rodado com a câmera na mão, pode ser definido como um thriller que se concentra apenas na trama e no princípio da ação física, denunciando, com isso, uma irresistível tentação da mise-en-scène. Michel Poiccard (vivido por Jean Paul Belmondo), imagem do homem contemporâneo com suas dúvidas, ambigüidades, contradições, é um ladrão de carros anarquista que mata um policial motorizado, que o persegue. Encontra, em Paris, a amiga americana Patricia (Jean Seberg) e consegue voltar a ser seu amante. Convence-a ir para a Itália com ele, mas a polícia, por delação dela, descobre Michel e o abate numa rua parisiense. A forma de Acossado condiz com a imagem do comportamento de Michel. A desordem do tempo, os desenvolvimentos e as mudanças impostas pela modernidade excedem Michel e, mais particularmente, Patricia, vítimas da desordem. O filme, nesse particular, é um ponto de vista sobre a desordem, tanto interior como exterior, identificando-se, dessa maneira, com Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais e, mesmo, com Os incompreendidos, filmes que, na verdade, são esforços imaginativos e cinematográficos em busca do domínio dessa desordem.

A herança da Nouvelle Vague é imensa, pois influencia todo o cinema que lhe vem depois. O manifesto dos jovens cineastas alemães que despreza o filme estereotipado, e que procura, com Alexandre Kluge, Volker Schloendorff, Werner Herzog e, mais tarde, Wim Wenders, Rainer Fassbinder, apreender, em suas obras, a angústia da sociedade contemporânea, não se pode negar, é uma decorrência da Nouvelle Vague. Também a renovação da cinematografia britânica, com Karel Reisz, John Schlesinger, Tony Richardson, entre outros, no Free Cinema, recebe os ventos libertadores de uma estética estruturada em velhos hábitos.

Se já se identifica, nos anos 50, um movimento em torno da desdramatização (que tem no italiano Michelangelo Antonioni o grande mestre com sua trilogia A aventura, A noite e O eclipse), cujo pioneirismo está em Roberto Rossellini (Romance na Itália, 1953, o famoso Viaggio in Italia), a desconstrução do esquema griffithiano se dá com mais vigor e uniformidade na eclosão da Nouvelle Vague. O próprio Cinema Novo, se é influenciado pelo neo-realismo italiano (principalmente Rossellini), pela estética revolucionária de Serguei Eisenstein (principalmente em Glauber Rocha) e no exemplo de Humberto Mauro, não deixa, porém, de sentir forte a presença da Nouvelle Vague (o que é Os cafajestes, de Ruy Guerra, senão um filme nouvelle vague feito no Rio?)

Filmografia essencial
1)    Acossado (A bout de soufle, 1959) de Jean-Luc Godard
2)    Nas garras do vício (Le beau Serge, 1959) de Claude Chabrol
3)   Os Incompreendidos (Les quatre-cents coups, 58) de François Truffaut
4)   Hiroshima, mon amour (idem, 1959) de Alain Resnais
5)   O Pequeno soldado (Le petit soldat, 1960) de Jean-Luc Godard
6)   Amor livre (L’eau à la bouche, 1959) de Jacques Domiol-Valcroze
7)   Paris nous appartient (idem, 1958-1960) de Jacques Rivette
8)   Cleo de 5 às 7 (idem, 1961), de Agnès Varda
9)   Amores fracassados (Le bel âge, 1959) de Pierre Kast
10) Le signe de lion (idem, 1959-1962) de Erich Rohmer
11) As quatro estações do amor (La morte saison des amours) de Pierre Kast
12) Os primos (Les cousins, 1959) de Claude Chabrol
13) Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 61) de Jean-Luc Godard
14) Zazie dans le metro (idem, 1960) de Louis Malle
15) Os amantes (Les amants, 1959) de Louis Malle
16) Atirem no pianista (Tirez sur le pianiste, 1960) de François Truffaut
17) Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961) de François Truffaut
18) Lola (idem, 1960) de Jacques Demy
19) Viver a vida (Vivre la vie, 1962) de Jean-Luc Godard
20) Leon morin, prête (idem, 1961) de Jean Pierre Melville
21) O Ano passado em Marienbad (L’année dernière a Marienbad, 1961) de Alain Resnais
22) Quem matou Leda? (A double tour, 1959) de Claude Chabrol
23) Demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965) de Jean-Luc Godard
24) O Desprezo (Le mépris, 1963), de Jean-Luc Godard
25) Trinta anos esta noite (Le feu follet), de Louis Malle

27 janeiro 2014

A evolução da linguagem cinematográfica

O ano passado em Marioenbad (1961), de Alain Resnais
Da câmara fixa, parada, dos tempos dos Irmãos Lumière e de George Méliès, passando pela sistematização da linguagem cinematográfica com David Wark Griffith (O nascimento de uma nação, 1914, Intolerância, 1916), o cinema, que completou o seu centenário em 1995, sofreu, na sua trajetória, várias transformações em seu estatuto da narração. Do reinado da arte muda, quando se pensou o cinema ter alcançado a sua essência como linguagem, passando pela introdução do som – que, inegavelmente, modificou a arte do filme, a linguagem cinematográfica recebeu, na sua trajetória, influências da tecnologia, incorporando seus avanços.
Incorporando os avanços tecnológicos, o cinema conseguiu sair da supremacia da montagem para a profundidade de campo – a invenção das objetivas com foco curto permitiu a Orson Welles a ousadia de uma renovação estética em Cidadão Kane, ponto de partida da linguagem do cinema moderno. A profundidade de campo permitiu a utilização de filmagens contínuas sem a excessiva fragmentação da montagem anterior. Com a profundidade de campo, anuncia-se, uma década depois, a eclosão do modelo de Michelangelo Antonioni que, com sua trilogia A aventura – A noite – O eclipse, deu ao cinema uma nova maneira de pensar e um estilo de representar. O fracionamento deu lugar a demoradas incursões da câmera dentro da tomada, permitindo, com isso, maior poder de captar a alma humana nos seus devaneios e nas suas angústias como, também, com Roberto Rossellini, assaltar com a câmera o momento histórico, o instante real ¿ o cinema como instrumento de conhecimento da realidade.
A instalação da película pancromática (aquela dotada de maior sensibilidade) e a difusão de câmeras mais fáceis de manobrar mudaram a face do cinema e foram fatores que contribuíram para o advento do chamado cinema moderno. A câmera na mão, que veio a facilitar a apreensão da realidade, surgindo o cinema-verité, é uma conseqüência da tecnologia. A película pancromática, por mais sensível, fez com que os realizadores saíssem dos estúdios fechados e se intrometessem com suas câmeras nos exteriores mais recônditos, descobrindo, com isso, um cinema mais verdadeiro porque menos artificial.
Evidentemente que a tecnologia determinou uma transformação da linguagem cinematográfica, ainda que não venha a provocar a revolução estética que se verificou quando da passagem do cinema mudo para o sonoro. A tecnologia encontra-se, por exemplo, hoje, tão evoluída, que provoca no espectador uma impressão de realidade antes impossível de ser verificada (os dinossauros deverdade dos filmes de Spielberg: O parque dos dinossauros). Tem-se a estética cinematográfica quando a técnica se conjuga com a linguagem, instaurando-se, aí, o ato criador.
Se o cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, com a projeção pública do cinematógrafo efetuada pelos Irmãos Lumière, a linguagem cinematográfica somente veio a se consolidar, no entanto, vinte anos depois, em 1914/15 com O Nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith. Entre o seu nascimento e a consolidação de sua linguagem, o cinema passou por uma série de gradações evolutivas, com o descobrimento, aos poucos, dos elementos determinantes de sua especificidade como linguagem sem língua. Um cinegrafista de Lumière, Promio, andando numa gôndola em Viena, e observando o casario, inventou o travelling. Griffith, em alguns curtas da Biograph, ofereceu a expressão definitiva ao close-up. Edwin S. Porter, com sua narrativa ainda balbuciante, tenta a montagem e o enquanto isso que viria a desencadear um elo importante para a construção da linguagem cinematográfica. O fato é que a linguagem fílmica nasce a partir do momento em que se constatou que a câmera podia sair do lugar, que podia se movimentar, mover-se, dando origem, com isso, à mudança do ângulo visual. Outra conquista importante veio com a constatação pelos ingleses da escola de Brighton de que, para contar uma história, é preciso inserir um primeiro plano, um close-up, dentro de um plano geral, nascendo, com isso, a montagem. O grande sistematizador, porém, é David Wark Griffith, o pai da linguagem cinematográfica sem o qual, aliás, o cinema não existiria como é hoje praticado. O próprio Serguei Eisenstein deve muito a Griffith. Este, no frigir dos ovos, é muito mais importante do que o soviético, pois o grande criador, o inventor genial, o sistematizador preciso.
Esta descontinuidade real do cinema e que se transforma numa impressão de continuidade, de fluxo contínuo, é resultado de uma abstração inconsciente da linguagem cinematográfica pelo espectador. Este, acostumado aos filmes, absorve os seus truques de linguagem, contando que esta não fuja da padronização à qual está acostumado. O que significa dizer: se, antes, para fazer que o público compreendesse que um personagem estava se lembrando do passado era preciso a utilização de fumacinhas e de diversos artifícios – nunca o corte direto presente/passado como num flash-back moderno, o cinema da contemporaneidade abdica de qualquer artifício no sentido explicativo. Os lances de memória que tornaram incompreensível O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, hoje estão sendo utilizados na publicidade televisiva. O puzzleproposto por Welles em Cidadão Kane é perfeitamente identificável em fitas desta suposta pós-modernidade.
Conta-se, entretanto, o caso de uma moça da Sibéria que, em visita a Moscou, julgou horrível o primeiro filme (uma comédia) que tinha visto em sua vida, porque “seres humanos eram despedaçados, as cabeças jogadas para um lado, os corpos para outro”. E quando Griffith mostrou os primeiros close-ups em um cinema, e uma imensa cabeça decapitada sorriu para o público, houve pânico na platéia. Aliás, quando da primeira projeção do cinematógrafo dos Lumiére, em 1895, um trem que se dirigia à câmera determinou que algumas pessoas, ainda que a pequenez da tela, o preto-e-branco nem tão real assim, se escondessem assustadíssimas, debaixo das cadeiras – com medo de o trem sair da tela e esmagá-las. Em dois filmes de 1948, Laurence Olivier (Hamlet) e Alfred Hitchcock (Festim diabólico/Rope) eliminam o corte, substituindo a descontinuidade das imagens por uma circulação incessante da câmera, que soluciona a velha contradição entre cinema e teatro. Em Crimes d’alma (Cronaca de un amore), Michelangelo Antonioni também renova a estrutura fílmica pela valorização da construção formal pelo movimento no interior de longas sequências e não mais pelo movimento de plano a plano.
Glauber Rocha também valoriza a construção formal pelo movimento no interior de longas sequências, ainda que Terra em transe seja filme de montagem sincopada, de planos curtos, com influência clara do cinema investigativo de Welles. A maioria dos filmes de Glauber Rocha, no entanto, revela um predomínio do plano-sequência – ao invés de ser dividido em cenas e diversos planos é feito numa única tomada. Isso levou Marcel Martin, ensaísta francês, a pensar numa transformação do cinema contemporâneo, transformação que começou com a desdramatização praticada por Michelangelo Antonioni, nos anos 50, e o aparecimento da câmera móvel que possibilitou o cinema-verité. Segundo o grande Marcel Martin me seu fundamental A linguagem cinematográfica(Brasiliense, 1990):
“O cineasta tende cada vez menos a decupar seu filme de maneira a destacar uma série unilinear e inequívoca de acontecimentos; já não sublinha por meio de montagem ou de movimentos de câmera aquilo sobre o que ele deseja fixar a atenção do espectador; a câmera não desempenha mais o seu papel habitual de nos dar o ponto de vista de uma testemunha virtual e privilegiada sobre todos os acontecimentos, facilitando, assim, o trabalho perceptivo e estimulando a preguiça intelectual do espectador (…) O abandono da linguagem concebida como conjunto de procedimentos de escrita ligados à técnica, tal como era praticada por Eisenstein ou Welles, é, portanto, acompanhada de uma rejeição do espetáculo, noção ligada à da direção (…) Passamos a um outro plano: o cinema de roteiristas cede espaço ao cinema de cineastas. O cinema não mais consiste essencialmente em contar uma história por meio de imagens, como outros o fazem por meio de palavras ou notas musicais: consiste na necessidade insubstituível da imagem, na preponderância absoluta da especificidade visual do filme sobre seu caráter de veículo intelectual ou literário.Nos filmes decididamente “modernos”, o espectador não mais tem a impressão de estar assistindo a um espetáculo inteiramente preparado, mas de estar sendo acolhido na intimidade do cineasta, de estar participando com ele da criação: diante desses rostos que se oferecem, desses personagens disponíveis, desses acontecimentos em plena constituição, desses pontos de interrogação dramáticos, o espectador conhece a angústia criadora.”