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24 abril 2013

Amar o cinema


O aprendizado do cinema é um processo lento e gradual que tem no tempo o seu grande mestre. O mesmo se aplica para as demais artes, como a literatura, por exemplo. O conhecimento das obras-primas requer tempo, paciência, dedicação, hábito. Para se adentrar nos universos de Machado de Assis, Dostoiévski, Thomas Mann, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, Eça de Queiroz, Guimarães Rosa, entre tantos outros, é necessário, e até mesmo conditio sine qua non, a disponibilidade temporal. O que se torna cada vez mais difícil nesta era da informação galopante, de pragmatismo absoluto, quando o excesso de informações acaba por conduzir à desinformação, considerando que o receptor delas não tem tempo para contemplá-las e, por conseguinte, para reprocessá-las e absorvê-las adequadamente. E, neste diapasão, o jornalismo toma carona na leitura rápida, desaparecidos os antigos suplementos literários, as críticas de rodapé. Em seu lugar, o império do audiovisual.
A proliferação de oficinas de crítica cinematográfica é uma maneira, creio, e assim é se me parece, de colocar o carro adiante dos bois. Por exemplo: nos cursos de Letras, ensina-se muita teoria da literatura, enquanto que os alunos não são estimulados para a leitura. No caso do cinema, há a necessidade de se criar um repertório consistente de filmes. Ver e ver filmes, adquirindo, com isso, um hábito. A crítica é a arte da paciência. Depois da contemplação silenciosa de muitos filmes, formado o repertório, é que o interessado pode começar, então, a escrever sobre cinema. Daí porque é um processo lento e gradual.
A decadência da produção comercial é flagrante. Desfeitos os grandes estúdios de Hollywood, em fins da década de 50, o cinema americano, em crise, apostou em novos talentos (Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Roman Polanski, Bob Rafelson, entre tantos), mas, na segunda metade da década de 70, com a aparição das guerras nas estrelas (nada contra elas, mas constatando fatos) e os espetáculos spielberguianos, houve uma infantilização crescente do ponto de vista temático, a ponto de atualmente ser difícil se encontrar um filme que possa ser visto no circuito comercial dos complexos. Toda regra tem exceção, é claro, e no seio da indústria também pode se encontrar bons e severos filmes. As imagens em movimento se vulgarizaram, todavia, com a possibilidade de se fazer cinema a torto e a direito, com um simples celular. E a visão de filmes numa tela de computador não é a mesma da verificada quando somente se podia ver um espetáculo cinematográfico dentro da sala exibidora mediante o pagamento de um ingresso. Conheço uma pessoa que baixa filmes da internet a perder de vista. Conversando com ela, soube que tem mais de mil filmes baixados do espaço virtual. E quantos você assistiu?, perguntei quase atônico. Menos de 30, respondeu-me. Nada contra quem gosta de baixá-los, inclusive porque dá a oportunidade de se ver algumas obras que nunca poderiam ser vistas num circuito normal ou, mesmo, no disquinho.
Quem lê nos dias que correm uma obra fundamental como Os Irmãos Karamazov? Conta-se nos dedos os estudantes de Letras que conhecem Machado de Assis. Mas estou tomando um atalho no que quero aqui colocar: o tempo como fator fundamental e imprescindível do aprendizado cinematográfico. O paralelo com a literatura vem a propósito nesse sentido. Cinema, na verdade, se aprende indo ao cinema. Evidentemente com o embasamento de leituras de obras especializadas, ensaios e críticas publicadas pela imprensa, mas, sobretudo, o interesse pessoal investigativo, a atenção na visão/revisão dos filmes.
O filme não é um rato para ser destrinchado em laboratório com instrumentos precisos. A obra cinematográfica vale-se, em primeiro lugar, do engenho e da arte de um criador, da emoção de um artista e do sentimento desta emoção pelo espectador. Para se sentir e amar o cinema é necessário vê-lo com carinho, com sensibilidade. É um hábito que se adquire, portanto, com o tempo. Infelizmente, o ‘ir ao cinema’ atualmente se transformou num complemento do exercício do ‘shoppear’, um adendo quase à refeição ligeira de um ‘fast food’, quando não se utiliza a própria sala de exibição para a sua prática.
A minha iniciação cinematográfica se fez pela emoção. Nos já distantes anos 50, quando a imagem estava circunscrita à tela luminosa da sala exibidora. Uma formação baseada nos gêneros, na contemplação dos grandes westerns de John Ford, Anthony Mann, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher…, nos musicais de Vincente Minnelli, George Seaton, Stanley Donen, nos épicos espetaculares como Ben HurSpartacus, etc, nos melodramas de Douglas Sirk, Leo McCarey, etc, etc, etc. Depois vim a descobrir que o cinema era uma arte ouvindo as palestras de Walter da Silveira e vendo, estupefato, Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais, Acossado, de Jean-Luc Godard, A noite, de Michelangelo Antonioini, Os sete samurais, de Akira Kurosawa, Oito e Meio, de Federico Fellini,Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha…
É preciso, portanto, aprender primeiro a gostar de cinema, a amar o cinema, e este amor só se consegue indo ao cinema.

21 abril 2013

Robert Mulligan: evocação e sentimento

Steve McQueen e Natalie Wood em O preço de um prazer (Lover with proper stranger, 1963), de Mulligan
Realizador evocativo, cultor das memórias de tempos idos em alguns filmes, dotado de pleno domínio formal de seu meio de expressão, Robert Mulligan (1925/2008) foi-se embora neste mês de dezembro. O que resta, findo Mulligan, da tradição do heróico cinema americano, o cinema do grande segredo na expressão feliz de François Truffaut? Apesar de não ter alcançado a glória de seus ilustres colegas (Billy Wilder, Hitchcock, George Stevens, Cukor...), poder-se-ia considerá-lo um cineasta bem acima da média e que não foi devidamente valorizado, fora alguns filmes ocasionais mais louvados por outros motivos que pela mise-en-scène (como são os casos de O sol é para todos, que deu o Oscar a Gregory Peck, e Houve uma vez um verão).


O blogueiro (ou blogüista), por coincidência, começou a sua trajetória de cinéfilo na mesma época em que Robert Mulligan deu início a seu percurso como realizador cinematográfico, ou seja, em 1957. E, portanto, acompanhou toda a sua filmografia, ainda que os primeiros filmes tenham sido vistos nas constantes reprises que existiam no cinema do passado (a televisão matou a reprise dos filmes). A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.

Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O'Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedy que causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em CinemaScope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.

Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista emO homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em Ocaminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.

“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."