Mural de Carybé no antigo cinema Guarany
Os complexos de salas
(Multiplex, Cinemark, entre outros), uma nova modalidade no campo da exibição para superar
a crise do mercado, que surgiram na Bahia a partir de junho de 1998, se, por um
lado, oferecem conforto e segurança, por outro vêm a descaracterizar o cinema
enquanto casa de espetáculos. As salas, uniformizadas, todas iguais, produzem o
aniquilamento do sentido atmosférico que existia, no passado, com os chamados cinemas
de rua. Nestes, cada um tinha o seu estilo, a sua personalidade,
proporcionando ao espectador uma sensação de estabelecimento,
pois a arquitetura, a decoração, o tamanho da tela, a disposição das poltronas,
entre outros fatores, predispunham o contemplador de filmes, ajudando-o no carregamento
da emoção.
O amante do cinema atual não mais sabe, passado algum tempo, em que sala viu
determinado filme ou, mesmo, pode confundir o Iguatemi com o Aeroclube. O que
antes não acontecia. Sabia-se que Os Dez Mandamentos, por
exemplo, teve a sua estréia no cine Tupy. A visão do filme e o estar-no-cinema
se interligavam como numa espécie sui generis de simbiose. A
influência do ambiente na psicologia do espectador é fundamental, pois este o
associa ao filme. Quem viu, por exemplo, O Manto Sagrado, o
primeiro filme em cinemascope, no Guarany, na década de 50, jamais esqueceu que
o assistiu neste cinema. As características particulares de cada sala de
exibição cinematográfica produziam, por conseguinte, uma influência
avassaladora na contemplação do filme. Mesmo em se tratando de cinemas de
segunda categoria, os poeiras, há, nítida, uma sensação
particular. A imensa tela do Pax proporcionava um impacto surpreendente que se
aliava à atmosfera pesada do ambiente. Até a cortina sebosa do cine Aliança tem
um sentido para aqueles que o freqüentaram na Baixa dos Sapateiros. Fazia-se de
tudo para não se encostar a ela, mas era um empreendimento impossível. E o que
teria a cortina com a percepção do filme? Ela, por determinar a sensação de se
estar num lugar, envolvendo a ambiência, influenciava, sim, o espectador.
Díspares, os cinemas de Salvador possuíam estilos. O que faz a diferença da
contemplação atual nos complexos padronizados, que tiram, inclusive, do cinema,
seu caráter de função - no sentido da função teatral, musical.
Havia, ainda, uma postura hierática por parte daqueles que recebiam os
espectadores, fossem os porteiros, os gerentes, os lanterninhas, sempre
vestidos, uniformizados. Comprando o ingresso, o espectador, ao entregá-lo ao
porteiro, sempre em pé, quase como um soldado de sentinela, tinha a sensação de
acesso, de ter entrado num lugar atmosférico cuja senha, o ingresso, marcava a
sua admissão. Da sala de espera à sala de projeção propriamente dita havia um
certo impedimento, pois ninguém podia adentrá-la se a sessão já estivesse
começada ou faltando quinze minutos para terminar. A corrente na porta
sinalizava o interdito proibitório. Há nisso tudo, portanto, nesta
característica do cinema como função, um espaço imaginário
perdido nos dias atuais pela completa desordem na condução dos espectadores ao
ritual da projeção.
Com o desaparecimento das salas mais populares e das situadas nos bairros, a
classe menos aquinhoada deixou de ir ao cinema. Os complexos de salas, muitos
concentrados, cobram muito caro pelos ingressos. Mas o propósito é falar da
atmosfera, do estilo de certos cinemas que, ainda vivos na memória,
desapareceram em conseqüência da decadência do centro da cidade e do
alargamento do espaço urbano. A velha província, calorosa e mais agitada
culturalmente, expandiu-se numa metrópole desordenada e enfartada.
Quem já tomou uma cerveja gelada, 'a las cinco de la tarde', no Restaurante e
Bar Cacique (que ficava à Praça Castro Alves), sabe do que se está falando.
Vindo de dentro do cine Guarany, o cheiro do ar condicionado dessa sala o
identificava, pois característico, único. A sala de espera, com dois enormes
murais de Carybé esculpidos nas pareces, representando índios com suas armas,
de tonalidade vermelha, era, desde já, um convite ao imaginário do espectador.
Não havia, para alegria dos verdadeiros cinéfilos, máquinas de fazer pipocas e
doidos. Apenas uma discreta bombonière num cantinho ao lado das
poltronas com as guloseimas postas em ordem hierática, os dropes enfileirados
como numa parada militar. Quem adentrasse a sala de exibição tinha que passar
por uma corrente e por portas que se abriam ao manejo de dois funcionários que
ficavam à espreita do espectador a olhar pelos dois únicos quadrados não
fechados que as compunham. Nas paredes desta sala, peixinhos desenhados pelo
artista citado, assim como, do outro lado, índios multiplicados.
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