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22 outubro 2013

Uma perversa exclusão

Se formos fazer uma comparação entre o número de salas exibidoras que Salvador tinha em 1958 e o que tem atualmente, a conclusão é uma só: os cinemas estão fechando suas portas. Com uma população de, mais ou menos, quinhentos mil habitantes, a província possuía em torno de quase trinta salas, considerando, no cômputo final, as de primeira linhas, os ‘poeiras’ da Baixa dos Sapateiros e os cinemas de bairro. Para arredondar o raciocino, que se coloque trinta salas em 1958 para quinhentos mil habitantes, sendo que cada uma delas tinha, em média, mil poltronas, variando entre as salas maiores, de quase duas mil cadeiras, como o Guarany e o Jandaia, e as menores, que beiravam a mil lugares. Para não haver crescimento das salas exibidores, e considerando, sempre, a densidade demográfica, nos dias que correm – e como correm!, com uma população de dois milhões e quinhentos mil habitantes – e, aqui, nivelando por baixo, Salvador deveria ter, no mínimo, cento e cinqüenta salas, pois a sua população, entre 1958 e 2005, aumentou cinco vezes. O cálculo é simples. Multiplica-se as trinta salas do passado por 5 e se tem o número de cinemas que a cidade deveria ter e, repetindo-se, sem haver crescimento. Mas atualmente o que se tem é um máximo de vinte e cinco salas e cada uma com um máximo de 400 lugares, a maior parte se localizando nos complexos chamados Multiplex.

Então que se faça uma nova contagem, considerando que cada cinema, em 1958, tinha em média mil lugares e, hoje, trezentos. Trinta vezes mil, em 1958, é igual a trinta mil. Que se coloque, para ficar bem claro, em números inteiros: tinha-se, na província, nesta época, 30.000 lugares e, se o número for multiplicado por cinco, porque a população cresceu cinco vezes, tem-se o número redondo de 150.000. Este, o número que, para não se constatar crescimento, mas, apenas, manutenção, deveria a cidade possuir em número de lugares. Mas o que se tem atualmente? Com a média de 400 lugares e 25 salas, fazendo-se a multiplicação, o resultado é de 10.000 lugares. Que diferença brutal!

Se antigamente o povo ia muito ao cinema, hoje, como disse Gustavo Dahl no recente seminário internacional de cinema e audiovisual, não tem acesso a ele. O cinema, que era um meio de comunicação de massa, atualmente é um veículo cujo acesso somente é possível pela elite. Antes, existiam os cinemas de primeira linha, lançadores, que ficavam concentrados no centro histórico, os poeiras da Baixa dos Sapateiros e os de bairro. Luiz Carlos Barreto, que conhece muito bem a mercadologia cinematográfica, afirmou, em recente entrevista no Canal Brasil, que o ingresso custava em torno de um dólar e, nos cinemas de segunda, cinqüenta centavos. É como se hoje o ingresso para entrar numa das salas do Multiplex custasse dois reais e cinqüenta centavos, a inteira, a inteira! Mas quanto custa realmente? Em torno de quatorze reais. Como uma pessoa que ganha a miséria do salário mínimo pode freqüentar as salas de exibição? Ir com a família ao cinema? Nem pensar.

O Plano Real dolarizou a economia de uma forma perversa. O povo está excluído do cinema, assim como a chamada classe média baixa. A conclusão é estarrecedora e reveladora: apenas dez por cento da população baiana pode ir ao cinema, sendo que dois milhões e tanto de pessoas estão completamente fora da rota cinematográfica. Constatou-se, em pesquisa recente, que a maioria dos baianos nunca foi ao cinema. Um grupo organizou uma sessão cinematográfica num bairro periférico e o que se viu foi espantoso. As pessoas ficaram maravilhadas pelas imagens em movimento, pois estavam a contempla-las pela primeira vez. E isto aconteceu na região metropolitana de Salvador!

Na década de 50, o Brasil tinha perto de dez mil salas exibidoras. Em 1975, já se contavam apenas cinco mil. No ano passado, chegou a mil e novecentos. Os cinemas interioranos fecharam suas portas. Assim como aqueles de rua, como os antigos e inesquecíveis da Baixa dos Sapateiros e os de bairro. O que se constata é que os cinemas estão sendo construídos para o usufruto de uma elite que pode pagar os quatorze reais de ingresso, ainda a se refestelar com as guloseimas caríssimas que lhe são oferecidas no ‘fast food’. O público se infantilizou e se idiotizou. Ir ao cinema, antes um ritual, uma solenidade, uma ‘função’, atualmente é comparável a uma ida ao ‘fast food’.


Triste país!

20 outubro 2013

Uma neta recorda a avó


A mãe do cineasta José Umberto Dias, que faleceu na semana passada, Dona Marizete Freire Dias, trabalhou em um filme de seu filho, Voo interrompido, realizado em 1969, e que é considerado por Álvaro Guimarães (o diretor de Caveira, my friend) o primeiro filme marginal baiano. Ela faz a mãe de Sonia Goulart, a personagem principal, uma moça do interior que vai para a cidade grande em busca de melhores oportunidades de vida e acaba como empregada doméstica e, a seguir, torna-se prostituta num processo de decadência vertiginosa. O filme, no entanto, transcende esta sinopse por causa de sua estrutura audiovisual preenchida através de uma linguagem cinematográfica promotora de uma desordem na ordem cronológica para se assemelhar mais a um cinema-poesia em oposição ao cinema-prosa. Esta desordem narrativa é que promove o filme a conter, nele, uma produção de sentidos que transcende o mero relato. Voo interrompido, por sua importância no panorama do cinema baiano, precisa urgente de uma revisão. Transcrevo aqui o que a neta de Dona Marizete, Maíra Vergne Dias, escreveu sobre a sua querida avó, que o tempo, sempre implacável, a levou. Com esta publicação, faço também a minha homenagem a Dona Marizete, que conheci quando das filmagens de Voo interrompido, pois fui um dos assistentes de direção e também figurante nos seus fotogramas.

Maíra Vergne Dias [neta] escreve sobre a avó Marizete Freire Dias:

marizete nasceu em um feriado nacional. não deve ter sido por acaso. 

só conheci marizete após os seus 50 anos. na verdade, ela que me conheceu de imediato, porque eu a fui desvendando enquanto eu crescia. interessante saber que já havia tanta vida nela antes que pudéssemos compartilhar nossas experiências.
com o passar do tempo, fui me acostumando a ser mal acostumada por ela, que sempre me fazia todas as vontades, como é costume dos avós fazerem. principalmente avó com neta única (até então) de filho único.
minha infância é carregada de memórias de vó marizete, com quem eu sempre passava as férias escolares. e era com esses encontros que nos aproximávamos, cada vez mais. era tanto apego que, quando eu ia embora, ela sempre chorava, aos soluços.
depois de deixar a infância pra trás, como é da vida, minha frequência de visitas diminuiu. obviamente, ela sentia muito mais minha falta, e sempre deixava isso claro, por ela mesma, por toda a vizinhança e pelos parentes, cujo primeiro comentário ao me ver era frequente: 'sua vó te adora, não para de falar em você'.
a vida foi um pouco injusta com minha vó, que adorava a ideia de ter uma família grande, mas que foi duas vezes viúva e teve apenas um filho. ela apreciava todas as tradições familiares, mas teve o azar de ter filho e netos que não ligam muito pra isso. adorava preparar muitos doces - e comê-los -, mas arrumou uma neta que não é muito fã deles, e que fazia careta quando ela oferecia a sobremesa.
mas ela complementava as faltas familiares com sua popularidade. sim, marizete era pop. conhecida de toda a vizinhança, a casa dela nunca passava um dia sem visita. independente, gostava de ter suas coisas, mandar nelas, fazer o que quisesse quando tivesse vontade. mas, no seu discurso manhoso de saudade de vó, sempre fazia um apelo dramático de solidão.
a energia de minha vó foi sendo diminuída com a velhice, como é natural. no hospital, onde esteve nesses últimos dias para se despedir da vida, era evidente a tristeza do seu olhar. e eu, que pude vê-la nesse cenário, apesar de momentos de forte esperança egoísta de tê-la sempre viva, sempre minha, fui sendo surrada pela razão que insistia em me convencer de que estava próximo o fim de uma vida de deliciosa convivência. o meu até breve, com carinho nos seus cabelos de cachos brancos, era, na verdade, um adeus. eu não sabia, mas ela sim. na longa viagem de volta para a vida que escolhi ter, a razão venceu minha esperança. e, desde então, anestesiada, espero esse momento passar, certa de que essa sensação de que um pedaço que agora me falta, na verdade nunca saiu de mim.

te amo para sempre, vó.
descanse em paz.

*7/9/1926 +15/10/2013


Foto: "Vôo Interrompido", filme de José Umberto, 1970. Marizete Freire Dias, atrás, toda de preto, Sonia Goulart e o grande Carlos Alberto Vaz de Athayde.