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18 abril 2012

"Venha tomar um café conosco", de Alberto Lattuada

A comédia italiana teve seu auge nos anos 60, com precursores nos 50 (Os eternos desconhecidos/I soliti ignoti, de Monicelli, é uma obra-prima) e um desdobramento até meados dos 70. Naquela época, como havia no cinema italiano autores geniais como Luchino Visconti, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, entre outros, alguns diretores, essenciais, ficaram em segundo plano, a exemplo de Dino Risi, Mario Monicelli, Florestano Vancini, Valerio Zurlini, Mauro Bolognini, e mais, muito mais. Alberto Lattuada, veterano do tempo do neorrealismo (O ferroviário) trabalhou por muitas décadas como diretor e, em 1970, nos presenciou com a excelente comédia Venha tomar um café conosco (Venga uma prendere il caffè da noi), com um impecável Ugo Tognazzi. Creio não haver disponibilidade de cópia em DVD distribuída no Brasil. Em todo caso...
Numa pequena cidade da Itália, um inspetor de rendas, Emerenziano Paronzinib (Ugo Tognazzi), decide quebrar seu celibato  após cortejar três irmãs solteironas, opta por Fortunata, mas, vivendo no casarão da família passa também a dividir suas noites com as manas Tarsilia e Camilla (feias e volutuosas).

17 abril 2012

"A Noite", de Michelangelo Antonioni

Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni em A noite (La notte), de Michelangelo Antonioni

Um dos filmes que me despertaram, no decorrer dos anos 60, para a compreensão do cinema como uma verdadeira expressão da arte, foi, sem dúvida, A Noite (1961), de Michelangelo Antonioni. Visto pela primeira vez no Clube de Cinema da Bahia, La Notte, com o domínio da antinarrativa, promovia o êxtase diante de um cinema que procurava mostrar as difíceis relações entre as criaturas humanas, principalmente no se refere à incomunicabilidade que se manifesta na rotina de um casal. La Notte se constituiu, por assim dizer, numa introdução à cultura superior cinematográfica, formado que era, então, e apenas, pelo cinema de gênero oriundo de Hollywood. A partir de La Notte, vim a conhecer não somente os outros filmes de Antonioni, como as obras dos grandes autores no já citado Clube de Cinema da Bahia (que, neste ano de 2010, cumpre os seus 60 anos de fundação): Resnais, Godard, Truffaut, Kurosawa, Welles, Kenji Mizoguchi, Eisenstein, Fellini, Buñuel, entre tantos. Foi a minha iniciação.
Falar de A Noite, de Michelangelo Antonioni, é falar de uma obra-prima, de um filme emblemático da história do cinema. Responsável pela sublimação da linguagem no ser fílmico, Antonioni praticou um corte longetudinal na evolução da narrativa cinematográfica, com a desdramatização, ou seja, a recusa do espetáculo, a desteatralização, que pode também ser vista em Roberto Rossellini em seu fundamental "Viagem à Itália" ("Viaggio in Itália", 1953), que, a bem da verdade, precedeu o realizador de 'La Notte". Segundo Marcel Martin, a partir dos anos 50, assiste-se a um progressivo ultrapassar da linguagem, àquilo que se poderia chamar de rejeição das regras tradicionais - da gramática de ferro - para fazer da narrativa fílmica não mais um meio, um veículo de sentimentos e idéias, mas um fim em si: a própria narrativa tornando-se o objeto primeiro da criação. Assim, ficou mais difícil aplicar aos filmes que se colocaram na vanguarda da pesquisa estilística - como a famosa trilogia de Antonioni constituída de A Aventura/L'Avventura, 1960, A Noite, e O Eclipse/L'eclisse, 1962 - os velhos esquemas da "explicação de textos" habitual, ou seja, a distinção escolástica entre a forma e o conteúdo se tornou impossível e absurda. Antonioni, pode-se dizer, instaurou a estética do filme.
Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni), um escritor de sucesso, encontra-se prisioneiro em um universo fictício, incapaz de escrever algo sério, verdadeiro. Sua mulher, Lídia, (Jeanne Moreau) se sente excluída do mundo do marido. A morte de um amigo de ambos (interpretado pelo diretor alemão Bernhard Wicki) faz ainda mais patente o abismo aberto entre eles. Gherardini, o poderoso industrial, tenta comprar o escritor, apesar de seu elevado nível de vida e o orgulho que sente por seu poderio capitalista. Sua filha Valentina (Mônica Vitti), afogada no vazio de seu próprio ambiente burguês, sente uma urgente necessidade de se libertar. Cada um desses personagens de Michelangelo Antonioni permanece preso num beco sem saída. Está exposta a equação existencial tão ao gosto do cineasta de A Aventura.
Antonioni, que rodou o filme em Milão, fixou sua atenção sobre os meios industriais e intelectuais da populosa cidade italiana. A mesma Milão que serviu de cenário a outra obra-prima do cinema italiano: Rocco e seus Irmãos(Rocco i suoi Fratelli, 1960), de Luchino Visconti, tragédia exemplar que estabelece a cinematografia italiana como a mais poderosa do momento cinematográfico nos sessenta, agrupando verdadeiros gênios como Antonioni, Visconti, Fellini, entre tantos outros como Valério Zurlini. Assim, a fixação da inação em Milão não é aleatória, mas tem um objetivo e um propósito. Antonioni quando elege a profissão de seus personagens sabe perfeitamente o que está a fazer: "Exijo sobretudo intelectuais, porque são os que têm a consciência mais exata da realidade, além de uma sensibilidade, uma intuição, mais sutil, através da qual posso filtrar a realidade que desejo expressar." A expressão dessa realidade nos seus filmes se faz pelo exterior ou pelo interior.
Antonioni em A Noite aprofunda a linha estabelecida em A Aventura. O esquema dramático maneja uma série de abstrações até então inéditas no cinema de Antonioni. Que, pela primeira vez, reúne Jeanne Moreau e Mônica Vitti, as duas atrizes que melhor souberam expressar as facetas da mulher moderna - a mulher contemporânea dos anos 60, quando a libertação se fazia urgente e o cinema um conduto que muito bem expressava o profundo estado de crise da sociedade burguesa. Um estilo que se caracteriza pelas tomadas longas, estabelecendo, com isso, uma espécie de anti-narrativa cuja exasperação chegou em O Eclipse.
Em A Noite, o industrial Gherardi e sua esposa são realmente figuras da alta burguesia milanesa, assim como em sua maioria os convivas são sócios do Barlassina Golf Club (perto do lago Como), transformado em residência daqueles. Antonioni não incide no jogo duplo em relação a esses atores voluntários. Sua serenidade de artista permite-lhe colocar, ao lado da análise implacável nos diálogos e nos planos, o orgulho do capitalismo que escreve ou roteiriza segmentos da História com personagens verdadeiros, casas verdadeiras, cidades verdadeiras.
Walter da Silveira, ensaísta baiano, após a primeira visão de La Notte, entusiasmado, escreveu um ensaio sobre Antonioni do qual destaco aqui esta parte - que se encontra no livro Fronteiras do Cinema: "Ao contrário do que se tem dito, Antonioni seria, por um paradoxo, o cineasta que mais acredita na sensibilidade e na inteligência do público, dispensando-se de ser evidente para ser claro. E se constrói seu relato fílmico sem excluir o elemento não visual do cinema, dando-lhe a importância de um fator de interpretação ou acentuação da imagem, no final de cada filme transmite-nos uma longa cena silenciosa em que só o gesto define e comunica toda a sua essência vital, ética. Em A Aventura, a mão de Claudia desce, hesita, volta a descer sobre o ombro de Sandro, numa indecisa porém insistente vontade de existência a dois, numa dolorosa porém aguda intuição de que, malgrado todas as demissões, resta ainda ao homem uma tênue possibilidade de libertar-se. Em A Noite, o par cujo casamento já no décimo ano foi tomado pelo tédio, a lassidão conduzindo à incerteza, abraça-se sobre a relva numa cópula de desespero, inseguro da permanência além da madrugada. E em O Eclipse já nem se vêem os recantos em que se encontravam - documentação e também metáfora de uma vida comum abandonada."
A iluminação dessa obra-prima é de um artista: Gianni Di Venanzo.

15 abril 2012

"A tortura do medo", de Michael Powell

KarHeinz Bohem e Anna Massey - que trabalhou em Frenesi e morreu recentemente -  em A tortura do medo (Peeping Tom, 1960), de Michael Powell: uma  obra-prima que foi recusada na sua época. Cliquem na imagem para vê-la em seu tamanho original.
A tortura do medo (Peeping tom, 1960), de Michael Powell, quando lançado na Inglaterra, apesar de assinado por um cineasta famoso, recebeu as mais severas críticas e o público, incomodado, se retirou das salas, a ponto de comprometer a carreira de seu diretor, que ficaria anos sem poder exercer a sua profissão pela recusa sistemática dos produtores. Na verdade, esta obra-prima, que trata do voyeurismo, incomodou os britânicos pela sua franqueza de exposição e pela habilidade de colocar o espectador na mesma posição de "voyeur" de seu personagem principal, um assassino que se compraz em matar mulheres para ver, nelas, o medo estampado no rosto enquanto estão a morrer e sendo filmadas pela sua câmara portátil. O espectador gosta de ser cúmplice de determinadas situações, quando, por exemplo, o personagem não tem ciência do perigo que corre, mas já sabido pelo público que é, pelo cineasta, avisado com antecedência. Em Um corpo que cai (Vertigo), obra-prima do cinema e de Hitchcock, a platéia já sabe que Judy é Madeleine, mas o apaixonado James Stewart continua ignaro da situação. Em "Peeping Tom", Powell, num ato de audácia, faz com que o espectador seja confundido com um assassino e tenha, também, o prazer de um voyeur.
Desprezado pela crítica e pelo público, Peeping Tom precisou esperar mais de uma década até que foi redivivo nos anos 70 e considerado, por realizadores e críticos como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Claude Beylie, entre tantos, uma obra-prima. Scorsese, inclusive, chegou a comprar o negativo em 35mm para restaurar o filme em suas cores magníficas. Com o advento do DVD, a Criterion (distribuidora que somente lança obras luminosas e bem definidas) distribuiu Peeping Tom no mercado americano. A Silver Screen, embora não mantendo a qualidade das cópias da Criterion, lançou, há dois anos, o filme no Brasil. É um acontecimento importante para o cinema e para quem gosta de cinema já que o circuito comercial, honradas as exceções de sempre, impõe ao mercado o lixo cultural oriundo da indústria americana.
Mark Lewis (interpretado por Karl-Heinz Boehm, conhecido como o imperador, marido de Romy Schneider, na série Sissi) é um jovem "cameraman" que vive, para cima e para baixo, com sua câmera portátil 16mm debaixo do braço. Tem prazer em filmar, com ela, as prostitutas que o abordam na rua e matá-las com um estilete dissimulado no pé da máquina. Para aumentar seu prazer, ele mostra a suas vítimas, no momento crucial, um espelho parabólico que reflete a imagem de seu pavor na hora exata de morrer. Ele faz confidências à vizinha (interpretada por Anna Massey, que, mais de dez anos depois, em 1972, Hitchcock, quando filmou em Londres seu extraordinário Frenesi/Frenzy, a convidou para o papel da namorada de Jon Finch, vítima de estrangulamento pelo serial Barry Foster - e não a dúvida que o mestre se influenciou muito no filme de Powell em Frenzy) e exibe, no seu quarto, através de um projetor 16mm, para ela, os filmes amadores feitos pelo seu pai, um psiquiatra que utilizava o filho como cobaia para estudar a reação das pessoas diante do medo. Interessante observar que o pai (visto nos filmes projetados em preto e branco) é interpretado pelo próprio Michael Powell. Renomado psiquiatra tem como objetivo a investigação do pavor no ser humano. O filho passa a infância sendo filmado a toda hora e a qualquer momento. O que lhe provoca nada menos que um imenso trauma. Seu gosto perverso pelo voyeurismo vem daí.
Karl-Heinz Boehm em A tortura do medo
Filmes sobre o voyeurismo são presenças marcantes no cinema (Janela indiscreta, do mestre, Dublê de corpo, de Brian De Palma, entre tantos), mas nunca o voyeurismo atingiu a dimensão e a sutileza verificadas em Peeping Tom.
A polícia, no entanto, consegue pistas de sua localização. Acossado, Mark decide se suicidar e filma a si próprio com sua câmera portátil, a registrar a própria morte em película e, no derradeiro momento da agonia, vê o rosto no espelho. Há, entre outros, dois momentos antológicos: aquele no qual a atriz Moira Shearer (Viv) dança para Mark antes de ser morta e a última sequência no quarto deste, quando decide filmar a própria morte. Michael Powell usa as cores com bastante funcionalidade graças ao talento de seu diretor de fotografia Otto Heller.
Powell, cineasta essencialmente inglês, foi produtor dos primeiros filmes de Hitchcock e, antes de "Peeping Tom", era muito considerado por causa de filmes como Neste mundo e no outro (A Matter of Life and Death, 1946), Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp, 1943), com Deborah Keer, Narciso negro (Black Narcissus, 1947), também com Deborah Keer e Jean Simmons, e, principalmente pelo fascinante Sapatinhos vermelhos (The Red Shoes, 1948), que tem no seu elenco a mesma Moira Shearer de "Peeping Tom". Fala-se que este filme revolucionou o balé. Todos os citados, menos "Peeping Tom", foram dirigidos em parceria com Emeric Pressburger.
Filme fantástico do segundo ou mesmo do terceiro grau, sentenciou o crítico francês Claude Beylie a respeito de "Peeping Tom", esta obra surpreendente apresenta o caso de um Jack, o Estripador, moderno, que teria visto muito "Um cão andaluz", de Buñuel, e "Janela indiscreta".
Beylie, aliás, se impressionou tanto com A tortura do medo que o colocou entre os melhores filmes de todos os tempos em seu imprescindível livro As obras-primas do cinema (editado aqui no Brasil pela Martins Fontes, mas esgotadíssimo). Segundo o ensaísta, "Este filme que seríamos tentados a atribuir a algum epígono de Buñuel ou Hitchcock, é obra de um respeitável cidadão britânico, Michael Powell (nascido em 1905), que, até então, dedicara-se a trabalhos prestigiosos (mas já marcados por um sólido humor) como "Coronel Blimp" ou "Neste mundo e no outro". Retrospectivas recentes permitiram aquilatar a dimensão de um talento que não é indigno dos mestres americanos do cinema de aventuras ou do musical".
Ainda Beylie: "A escolha de uma história - bastante sórdida - que evoca os romances de crime de Edgar Wallace, e apimentada com "private jokes", pode surpreender. De fato, não só tudo neste filme gira em torno da escoptofilia, concebida como uma variante inquietante da cinefilia, mas o diretor multiplica-as "as piscadas de olhos": ele próprio faz o papel de um pai indignado que filma os medos de um garoto (seu próprio filho), enquanto o "deux ex machina" cabe a uma senhora alcoólatra e cega! Para coroar tudo, Powell afirma tranqüilamente que não há nada de malsão nisso, que se trata, ao contrário, de um filme "terníssimo, delicadíssimo, quase romântico". Em todo caso, a obra impressionou várias gerações de espectadores - e de cineastas como Martin Scorsese e Brian De Palma"