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12 janeiro 2013

A música segundo Tom Jobim


Saiu o DVD de A música segundo Tom Jobim, que pode ser adquirido nos melhores sites que vendem os disquinhos. Indispensável.
1.) Documentário que foge ao feijão com arroz tradicional das imagens entrecortadas por depoimentos, A música segundo Tom Jobim, do veterano Nelson Pereira dos Santos, é um documentário extraordinário. Primeiro, porque é sobre Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o maior compositor brasileiro de todos os tempos, e, segundo, porque o filme se restringe às músicas e às imagens de arquivo, sugerindo uma obra sinfônica. O realizador do clássico Vidas secas teve a sensibilidade suficiente de colher os registros de um tempo e acioná-los por meio da música do célebre maestro autor (com Vinicius de Morais) de Garota de Ipanema. Veja aqui o trailer oficial do filme em HD:
2.) Tom Jobim é mais conhecido como um compositor da Bossa Nova, o parceiro de Vinicius, Carlos Lyra, Chico Buarque, Newton Mendonça, outros, mas, na verdade, é um compositor que atinge os limites fronteiriços da música clássica, como podem ser observadas suas partituras para discos como Wave, Matita Perê, Passarim, Urubu. Com formação clássica e influências diversas, entre as quais Debussy, Jobim é um fenômeno de talento. Ouvir a sua música e ver as imagens de sua grande época - inclusive na interpretação por outros notáveis - se constitui num espetáculo único. A pesquisa de imagens teve a colaboração da segunda esposa do maestro, Dora Jobim, que cedeu os registros cinematográficos do Instituto Antonio Carlos Jobim. Nelson Pereira dos Santos chegou, por isso, a incluí-la como co-autora de A música segundo Tom Jobim. 
3.) Partiturista de filmes nacionais e estrangeiros, entre os que assinou osoundtrack destacam-se: Orfeu negro (aqui chamado Orfeu do Carnaval, 1959)), o polêmico filme do francês Marcel Camus, baseado na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Morais; Porto das caixas, (1962), de Paulo César Saraceni, Garota de Ipanema (1967), o fracassado filme de Leon Hirszman, que pretendeu criticar o mito e mostrou que estava completamente fora de sua praia, pois cineasta enragéO mundo dos aventureiros (The Adventurers, 1969), de Lewis Gilbert, com Charles Aznavour, Candice Bergen, Ernest Borgnine, Rossano Brazzi, Olivia de Havilland, John Ireland, uma superprodução de quase três horas de duração; A casa assassinada (1974), de Paulo César Saraceni, que se baseou num livro de Lúcio Cardoso. A trilha de Jobim, para este filme, é magnífica; Gabriela Cravo e Canela (1982), de Bruno Barreto, com Sonia Braga e Marcello Mastroianni; entre outros, sem esquecer a música que fez, em parceria com Chico Buarque de Holanda, para a minissérie Anos dourados da rede Globo. Se não fosse uma certa preguiça que o caracterizava, Jobim poderia ter feito partituras para muitos filmes importantes e, como partiturista de cinema, pode ser comparado a alguns maiorais como Lalo Schifrin, John Williams, Jerry Goldsmith. 
4.) Sempre admirei muito Tom Jobim e comprei quase toda a sua discografia disponível, que a tenho em vinil, faltando apenas um ou dois discos. Mas com o advento do CD, e a falência de meu toca-discos (difícil de encontrar outro por aqui), não posso mais ouvi-lo em suas extensões mais clássicas. Sempre que vou ao Rio, quando da aterrissagem no aeroporto que tem seu nome, lembro-me, logo, de seu Samba do Avião. Uma vez, no Rio, fui ao Bar Veloso, em Ipanema, lá pelos anos 70, e me sentei para tomar alguns chopes. De repente, duas mesas adiante, vi sentado, sozinho, com um chapéu panamá, o próprio Tom Jobim. Naquela época, um chopp sempre via acompanhado de uma bolacha de papelão pela qual se contava a quantidade bebida. A mesa na qual Jobim se sentara estava com um monte dessas bolachas, sinalizadoras de que tinha entornado muitos e muitos chopes. Pensei em me aproximar do maestro, mas, por tímido, fiquei constrangido. O garçom me disse que ele frequentava todos os dias e, geralmente, saía riscando. O Bar Veloso foi reformado e tomou o nome de Garota de Ipanema, mas não tem mais as mesinhas características com suas cadeiras de vime. 
5.) Foi neste bar que Jobim recebeu uma ligação de Frank Sinatra. Conta a lenda que Sinatra, impressionado com o talento de Jobim, quando de sua apresentação nos Estados Unidos, queria gravar um disco com ele. Telefonou para sua casa em Ipanema, e sua primeira esposa, Tereza (sim, a Tereza da Praia) informou que o marido deveria estar bebendo no Veloso e deu o número do bar a Sinatra. Este imediatamente ligou e quem atendeu foi o garçom, que foi avisar na mesa onde Jobim estava tomando chopes com os amigos. Todos ficaram estupefatos. O grande Frank Sinatra a telefonar para Jobim no bar! Jobim foi atender num daqueles telefones pendurados na parede. Sinatra então o convidou para a gravação do disco. 
6.) Ruy Castro em A República de Ipanema conta a maravilha que era se morar no bairro nos anos 60 e 70. Era uma verdadeira república como alude o título do livro. Com o passar do tempo, Ipanema se descaracterizou, perdeu alguns de seus bares característicos e seus frequentadores famosos. Ficou apenas a lembrança de um tempo feliz. Castro, talvez num acesso de exagero, chega a comparar Ipanema daquele tempo como o paraíso na terra. 
7.) Tijucano, na época em que a Tijuca pertencia ao Rio Zona Norte, Jobim nasceu em 24 de janeiro de 1927, vindo a morrer em 8 de dezembro de 1994, aos 67 anos. Fora a Nova York fazer uma cirurgia de próstata num dos centros de excelência na especialidade. A operação correu bem, mas um coágulo se soltou e invadiu uma artéria coronariana, obstruindo-a. Mas Tom era da Tijuca apenas por nascimento, porque sua família se mudou para Ipanema assim que ele completou um ano de idade. Segundo está escrito na Wikipédia, "a ausência do pai, Jorge de Oliveira Jobim, durante a infância e adolescência lhe impôs um contido ressentimento, desenvolvendo no maestro uma profunda relação com a tristeza e o romantismo melódico, transferido peculiarmente para as construções harmônicas e melódicas. Aprendeu a tocar violão e piano em aulas, entre outros, com o professor alemão Hans-Joachim Koellreutter, introdutor da técnica dodecafônica no Brasil." Vale ressaltar que durante a época de ouro da Universidade Federal da Bahia, anos 50 e 60, Hans Joachim Koellreutter foi convidado pelo reitor Edgard Santos para compor o corpo docente do então inaugurado Seminário de Música. 
8.) O diretor de A música segundo Tom Jobim, Nelson Pereira dos Santos, é considerado o grão-duque do cinema brasileiro. Nelson plantou as sementes do Cinema Novo com o seu precursor Rio quarenta graus, que seria seguido por Rio Zona Norte. O seu melhor filme é, também, um dos melhores do cinema nacional em todos os tempos: Vidas secas, adaptação rigorosa do livro homônimo de Graciliano Ramos Na sua filmografia tem uma boa versão de Nelson Rodrigues para as telas: O boca de ouro, com Jece Valadão no papel-título. Se Nelson se dá bem nas adaptações dos livros do Velho Graça (Memórias do cárcere é um grande filme), não consegue, no entanto, ser feliz nas versões realizados dos romances de Jorge Amado: Jubiabá é frustrante para quem leu o livro, e Tenda dos milagres, ainda que bem melhor, não convence. 
Para quem gosta de boa música, um filme para ver obrigatoriamente.

Tuna Espinheira também escreveu sobre o filme quando do seu lançamento:

O velho Tuna Espinheira foi ver A música segundo Tom Jobim, de seu amigo Nelson Pereira dos Santos (que produziu um de seus filmes curtos) e saiu deslumbrado com a beleza do documentário. Chegando ao seu apartamento, bateu o comentário que vai abaixo e, na afobação, nem parou no bar vizinho de Seu Hermenegildo para tomar a sua cerveja acompanhada de uma rigorosa Seleta. Abro aspas para evitar desconforto textual:

"Nelson Pereira dos Santos, mestre divisor de águas, da história do cinema brasileiro, faz um gol de placa com o filme: A música segundo Tom Jobim. A opção feliz de contar a saga do compositor tão somente pelas suas próprias criações melódicas foi deveras um grande achado. A edição primorosa trás para as retinas (estas costumeiramente cansadas) dos espectadores, a impressão de estar vendo um filme com um único plano sequencia,     (embora com centenas de cortes)

A abertura do filme, nas asas da Panair, em preto e branco, dando uma visão de um Rio antigo, é deslumbrante e, sem gastar saliva, encarna o maestro iluminado na cidade do Rio de Janeiro e vice versa. Se existe o chamado carioca, com seu jeitinho de ser, seu retrato falado coincide com próprio Tom, não se pode separá-lo da Cidade Maravilhosa, assim como não se deve apartar Dorival Caymmi da Bahia.

Mesmo sendo uma mania antiga, esta de contar um filme, não cabe neste caso, é incontável, só vendo, seu enredo é puramente para ver e ouvir. Um impressionante desfile de artistas, ao nível de Ellla Fitzgerald; Frank Sinatra; Sammy Davis Jr; estas e outras e outras feras imortais, em rico material de arquivo de filmes, tocando e cantando as pérolas musicais do bruxo compositor, a quem o Chico Buarque chamou: de “Maestro Soberano”. É um revezamento de cenas antológicas de artistas nacionais e internacionais, um espetáculo de dar água na boca, para uns, e de deixar a alma lavada, para muitos.   

Sem querer comparar, mas me lembrou  O Baile, de Ettore Scolla. Talvez porque é também a música que conduz o enredo. A realização de um filme mudo, mas não silencioso, como estes dois, enfrenta o suspense do caminhar no fio da navalha. Semelhante a um jogo de armar, cada peça no seu cada qual. É tudo ou nada. É coisa é coisa de mestre.
                      
Nelson fica devendo o filme número 2, agora falado. Tem muito pano prá manga neste outro olhar necessário sobre Jobim, muitas histórias, estórias “causos”, depoimentos, coisas do arco da velha. O Diretor já provou ser um ótimo regente de conversações (vide o documentário sobre Sergio Buarque de Holanda), vai tirar de letra.

Mestre  Nelson , na plenitude dos oitenta anos, fez um gol de placa com o filme: A Música Segundo Tom Jobim."  

10 janeiro 2013

Da miséria cultural baiana


Já publiquei este artigo há dois ou três anos tanto aqui, no blog, como na revista eletrônica Terra Magazine, mas creio que vale a pena republicá-lo, pois o tempo passa e a memória do brasileiro, principalmente dos baianos, é curta - quando existe.
Diz-se que a Bahia já teve seu Século de Péricles, uma alusão ao período efervescente que se situou nos anos 50 e na primeira metade dos 60, quando Salvador congregava o que havia de mais criativo na expressão artística. Estimuladas pela ação da Universidade Federal da Bahia, comandada, e com mão de ferro, pelo Reitor Edgard Santos, as artes desabrocharam com o surgimento do Seminário de Música, da Escola de Teatro, do Museu de Arte Moderna, dos inesquecíveis concertos na Reitoria, da porta da Livraria Civilização Brasileira na rua Chile, dos papos ao por do sol frente à estátua do Poeta, no bar e restaurante Cacique, dos debates calorosos da Galeria Canizares (no Politeama), da "boite" Anjo Azul (na rua do Cabeça), entre tantos outros pontos que faziam da Bahia um recanto pleno de engenho e arte.
Na Escola de Teatro, por exemplo, que, inicialmente, foi dirigida por Martim Gonçalves, montava-se, lá, de Bertolt Brecht, passando por Ibsen, Eugene O'Neill, entre tantos, a Strindberg, com um rigor inusitado, e tal era a excelência de seus espetáculos que vinham pessoas do sul do País, e até do exterior, vê-los encenados "in loco". No curso de preparação de ator, o estudante levava alguns anos para poder participar de uma montagem teatral, iniciando a sua trajetória como um mordomo mudo ou de poucas falas. Somente ter o seu nome no programa da peça já era um prêmio, uma alegria, um consolo.
O recente livro, "Impressões Modernas - Teatro e Jornalismo na Bahia", de Jussilene Santana, analisa a configuração do teatro como temática na imprensa baiana em meados do século XX e, pela primeira vez, faz justiça a Martim Gonçalves, o responsável pela excelência das montagens teatrais, criador da Escola de Teatro (que hoje tem o seu nome), mas muito criticado na sua época e até mesmo denegrido pelos opositores. Após a leitura deste livro imprescindível, a conclusão é única e inequívoca: sem Martim Gonçalves não se teria um teatro baiano do nível a que chegou, ainda que, décadas depois, tenha perdido todo o seu vigor, transformando-se num grande proscênio destinado à proclamação de "besteiróis", honradas as exceções de praxe.
Cinqüenta anos depois, meio século passado, a realidade cultural baiana é uma antípoda da efervescência verificada, uma época que foi chamada, inclusive, de "avant garde" pela sua disposição de inovar, pela marca de vanguarda da mentalidade de seus artistas e intelectuais. Atualmente, a Bahia regrediu muito culturalmente a um estado, poder-se-ia dizer, pré-histórico, e o "homo sapiens" do pretérito se transformou no "pithecantropus erectus" do presente. Aquele estudante do parágrafo anterior, por exemplo, não existe mais.
Na Bahia miserável da contemporaneidade, qualquer um pode pular em cima de um palco, qualquer um se sente apto a dirigir uma peça, "mexer" com cinema, fazer filmes. Com as sempre presentes exceções de praxe, o teatro que se pratica na Bahia é um teatro besteirol, que faria corar aqueles que participaram da antiga escola de Martim Gonçalves.
A Bahia não está apenas mergulhada em bolsões de pobreza, na violência diuturna e desenfreada, com seu povo excluído de tudo - e até mesmo dos cinemas, mas do ponto de vista cultural a miséria é a mesma. Miséria cultural, descalabro, ausência do ato criador, apatia, desinteresse. Eventos existem para a satisfação de pseudo-intelectuais que não possuem as bases referenciais necessárias para a compreensão do que estão a ver ou a ouvir. O momento presente, se comparado aos meados do século passado, assinala uma regressão cultural sem precedentes. Como disse Millor Fernandes, a cultura é regra, mas a arte, exceção, o que se aplica sobremaneira sobre o estado atual da cultura baiana. Cultura se tem em todo lugar, mas arte é difícil, e a arte baiana praticamente não existe.
Com o desaparecimento dos suplementos culturais e o advento de normas editoriais que privilegiam o texto curto, além da incultura reinante pela assunção do império audiovisual em detrimento da cultura literária (vamos ser sinceros: ninguém hoje lê mais nada), a crítica cultural veio a morrer por falência múltipla das possibilidades de exercício da inteligência numa imprensa cada vez mais burra e superficial.
Sérgio Augusto, crítico a respeitar, que militou nos principais jornais cariocas, em entrevista ao "Digestivo Cultural", site da internet (vale a pena lê-la na íntegra:http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=10), do alto de sua autoridade no assunto, afirmou que o jornalismo cultural está morto e enterrado, ressaltando que se fosse um jovem iniciante não entraria mais no jornalismo porque não vê, nele, perspectivas para a crítica de cultura (área de sua especialidade).
Dava gosto se ler o Quarto Caderno do Correio da Manhã com aqueles artigos copiosos, imensos, que abordando cultura e artes em geral, eram assinados por Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Viana, entre tantos outros. A rigor, todo bom jornal que se prezasse tinha seu suplemento cultural. Aqui mesmo em Salvador, vale lembrar o do Diário de Notícias e o do Jornal da Bahia (em folhas azuis). Atualmente, resiste o Suplemento Cultural de A Tarde (mas, mesmo assim...).
A inexistência da crítica de arte não diz respeito apenas ao soteropolitano. É uma constatação geral no jornalismo brasileiro. Mas, e os cadernos culturais e asilustradas da vida? Caracterizam-se pela superficialidade e servem, apenas, como guia de consumo, com suas resenhas ralas. Atualmente, os cadernos dois, assim chamados, são até contraproducentes porque elogiam o que deveriam criticar, colocando na posição de artistas personalidades que deveriam, no máximo, estar no departamento de limpeza de estações rodoviárias.
A crítica de arte serve justamente para isso: para, construtivamente, sem insultos, mas com argumentos sólidos, desmontar aquilo que não presta. Que falta não faz uma crítica de teatro séria, que, semanalmente, venha a apreciar o que se está a apresentar na cidade como literatura dramática! Ou uma crítica de artes plásticas. A interferência de um crítico faria corar muitos pintores que estão expondo na Bahia e posando como artistas. Assim também uma crítica de cinema que fosse menos paternalista com os "coitados' dos cineastas baianos cujas imagens são a de "franciscanos" em busca da expressão cinematográfica, mas cujos resultados, em sua grande maioria, remetem o espectador aos braços de Morpheu, quando não à aporrinhação.
Se a miséria da cultura baiana é cristalina, a miséria da crítica cultural é, também, imensa. Que esmola pode ser dada para se acabar com ela?

06 janeiro 2013

No tempo feliz das chanchadas


De vento em popa (1959), de Carlos Manga, mestre da chanchada, com Doris Monteiro e Cyll Farney (aqui no vídeo). 

Os primeiros filmes brasileiros que vi, nos anos 50, foram as famosas chanchadas, que eram desprezadas pela maioria da crítica cinematográfica. Nos chamados anos dourados, era o que predominava no cinema nacional. Assim, minha porta de entrada na nossa cinematografia foi pela chanchada: O batedor de carteiras, O massagista da madame, Mulheres à vista, Entrei de gaiato, todas com o impagável Zé Trindade, Um candango na Belacap, Metido a bacana, com Ankito, Nem Sansão nem Dalila, O homem do sputnick, De vento em popa, com Oscarito, entre muitas outras com comediantes como Vagareza, Costinha, Grande Otelo (que fazia dupla com Oscarito) etc. As chanchadas, apesar do desprezo crítico, eram adoradas pelo público e os filmes eram disputados pelos exibidores. Lembro-me que, em dia de domingo, para se ver uma chanchada nacional, tinha que chegar à porta da sala exibidora com uma hora de antecedência para comprar ingresso. E havia uma fila (quilométrica) para adquiri-lo e outra (também quilométrica) para entrar.

Se, no seu tempo, as chanchadas foram ridicularizadas, atualmente, ironia do tempo que passa, são objetos de estudos cinematográficos em teses e dissertações de mestrados e doutorados. Havia nelas uma certa ingenuidade típica da época, mas que, na verdade, retratavam o modo de ser do brasileiro. E algumas delas são notáveis, revistas hoje, a exemplo de O homem do sputnick eDe vento em popa, de Carlos Manga, com o genial Oscarito (se houvesse ido para Hollywood teria se tornado um comediante internacional. Bob Hope, uma vez, em visita ao Rio, vendo-o no palco, fez-lhe o convite, mas Oscarito declinou. Não gostava de viajar e o que apreciava mesmo era trabalhar no Brasil e comer sua feijoada dominical em família). Em se tratando de comédias, misturava-se tudo numa espécie de saco de gatos. Mas havia algumas que transcendiam a pura chanchada, como é o caso da bem sucedida estréia de Anselmo Duarte na direção em Absolutamente certo (1958).
As chanchadas eram livres (quer dizer sem classificação etária) num tempo em que a censura classificatória, muito rigorosa, não permitia a menores o acesso a filmes considerados adultos. A classificação seguia as seguintes etapas: livre, 10 anos, 14 anos, 18 anos. Havia, junto ao porteiro, um comissário do Juizado de Menores que fiscalizava a entrada das pessoas. Um filme, por exemplo, que tivesse, em sua história, um adultério, era prontamente proibido até 18 anos.
Mas apesar de certas piadas maliciosas, picantes, como se dizia na época, as chanchadas brasileiras eram livres. Os ditos de Zé Trindade sempre tinham conotação sexual, sempre dizeres de duplo sentido, maliciosos. Zé Trindade era um tipo esquisito, particular, com seu estilo inconfundível na arte de fazer graça, como gostava de afirmar Procópio Ferreira. Baiano, começou na Rádio Sociedade de Salvador fazendo piadas, mas seus trejeitos característicos não podiam ser vistos numa transmissão radiofônica.
De repente, em torno dos 10 anos, vi um filme brasileiro que não era chanchada:Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, que retrata a vida de um favelado compositor (Grande Otelo) que sempre é ludibriado em suas canções, roubadas pelos mais espertos. Não havia graça em Rio Zona Norte, mas o retrato bem realista de uma vida sofrida, com acentos de violência.
Nos tempos das chanchadas, embora estas fossem predominantes no circuito exibidor, houve, na primeira metade da década de 50, a tentativa de implantação de uma infraestrutura para a produção sistemática e continuada de filmes sérios no Brasil: a Vera Cruz, iniciativa da burguesia paulista tendo à frente o empresário Franco Zampari. Se foi um fogo de palha, entrando, alguns anos depois, em decadência, a Vera Cruz produziu, porém, muitos filmes, entre os quais, O Cangaceiro, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes como melhor filme de aventuras, em 1953, Sinhá Moça, de Tom Payne, Simão, o caolho, de Alberto Cavalcanti, Uma pulga na balança, de Luciano Salce, entre muitos outros. Embora no boxoffice, o filme brasileiro de maior bilheteria seja Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto, acredito que o mais visto de todos os tempos tenha sido O Cangaceiro. Leva-se em conta, nestas estatísficas, o preço do ingresso. E também, em relação ao filme estrangeiro, que tem Titanic, de James Cameron, na ponta do iceberg,...E o vento levou teve um espectro mais amplo no que se refere ao número de espectadores. Mas posso estar errado.
Nos agitados anos 60 não havia mais lugar para as chanchadas, cujo humor se transferiu para os programas de televisão, e surgiu o Cinema Novo. O Brasil não tinha uma indústria cinematográfica de filmes médios para a satisfação de um amplo mercado e, assim, os filmes do Cinema Novo, desaparecida a chanchada, tomaram conta do mercado. Mas o público sumiu. Sobre ter, em sua existências obras de grande mérito, a exemplo de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, Os fuzis, de Ruy Guerra, São Paulo S/A, de Luis Sérgio Person, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, entre muitos outras, o fato é que o público não gostava dos filmes cinemanovistas e quase todos ficavam às moscas, esta a verdade verdadeira. E paradoxal, porque seus mentores queriam conscientizar o povo brasileiro de sua miséria, de sua fome, e da necessidade de uma insurreição contra o status quo. Como disse uma vez Carlos Diegues: "O Cinema Novo, além de querer mudar o cinema, queria também mudar o mundo".
Nos anos 70, Emílio Garrastazu Médici comandava a ditadura com seu rádio de pilha pregado ao ouvido em pleno Estádio do Maracanã. Sempre aparecia em close no cinejornal Canal 100. O país vivia o seu "ame-o ou deixe-o". Surgiu, então, a Embrafilme, que resolveu patrocinar o cinema brasileiro, E a pornochanchada, que já se insinuava a partir de Os paqueras, de Reginaldo Farias em 1969. Patrocinados pela Embra (como alguns carinhosamente a chamavam) surgiram filmes sérios, mas ruins, muito deles adaptados, como queria a ditadura, de obras literárias: Fogo mortoConfissões de uma viúva moça(faca num conto de Machado de Assis), Soledade, Sagarana, o duelo (faca em Guimarães Rosa, entre muitos outros. Havia exceções, é claro, como São Bernardo, de Leon Hirszman. E até o consagrado Nelson Pereira dos Santos meteu a faca sem piedade em Machado de Assis com o desastrado, alegórico e arrastado Azyllo muito louco, cuja fonte de inspiração estava na beleza que é o conto do bruxo O alienista, que, segundo muitos, é um de seus melhores (e melhor, para o autor de Memorial de Ayres significa excelência).
Vindo Collor, ainda no início de seu mandato, tacou de uma canetada só a extinção da Embrafilme do Concine (Conselho Nacional de Cinema). O cinema brasileiro ficou a ver navios até que Itamar Franco, com a Lei Rouanet e a de Incentivos Fiscais propiciou ao que veio a ser conhecida como a retomada do cinema brasileiro com o êxito surpreendente de Carlotta Joaquina, de Carla Camuratti.