Fernando Beléns, realizador de Pau Brasil (2009), primeiro longa após quase quarenta anos na atividade cinematográfica com seus curtas insólitos e médias demolidores, faz, aqui, uma apreciação (ou, como ele mesmo diz, uma breve e livre aproximação) de O homem que não dormia, derradeiro filme de Edgard Navarro, que teve avant-première bastante concorrida na última semana de julho durante o Cine Futuro. Conheço Beléns desde meados da década de 70, quando foi um dos mais ativos participantes do boom superoitista nas jornadas de cinema organizadas por Guido Araújo. Dublê de psiquiatra e cineasta, não atura a devastação que se abate nas relações humanas, expondo-as, em sua imagens em movimento, de forma insólita, iconoclasta, e, por vezes, sem piedade. Segundo a Professora Doutora Marise Berta de Souza, em sua tese sobre Fernando Beléns, O corpo e as políticas do cotidiano nos filmes de Fernando Belens, o cinema belensiano se caracteriza por preocupações recorrentes que giram em torno de duas questões inseridas na discussão da arte contemporânea: as representações do corpo e as micropolíticas. Belens apropria-se desses temas para plasmar o seu universo criativo, por meio do qual expõe a sua tessitura narrativa. O intuito dessa comunicação é discutir as estratégias narrativas agenciadas pelas inter-relações dessas recorrências no conjunto de seus filmes."
Breve e Livre aproximação do filme O Homem que não Dormia de Edgard Navarro
Breve e Livre aproximação do filme O Homem que não Dormia de Edgard Navarro
POR FERNANDO BELÉNS
“O Homem que não Dormia” já não me deixa dormir em paz. Ele fica ali, espreitando entre as minhas imagens hipnagógicas, e, ao menor vacilo, invade os meus melhores sonhos e os meus piores pesadelos. Desde que o vi, pela primeira vez na sala do Teatro Castro Alves, encerrando o Cine Futuro, que ainda prefiro chamar Seminário de Cinema da Bahia, toda noite e toda manhã, ele comparece para me incomodar, com suas imagens inesquecíveis
Você deve ver esse filme ímpar pelo menos uma vez, você não o esquecerá, e ele, também não vai esquecer-se de você, vai lhe atanazar um bom tempo. É um filme para aqueles que vão ao cinema não somente para preencher algumas horas com o já conhecido, ele te pega pela garganta e propõe o seu jogo de mexer com suas entranhas e seu bem-estar, ele não te dá espaço para a pipoca.
“O Homem que não Dormia” tem irmãos mais e menos conhecidos: ““Saló”, de Pasolini,” A Idade da Terra”, de Glauber Rocha,” A Comilança” de Marco Ferreri, e “O Baixio das Bestas” de Cláudio Assis, entre não muitos. É aquela obra cinematográfica que não faz acordos com nada, nem com a bilheteria, nem com a crítica, nem com a censura que habita todos nós. Ela existe para perturbar, para criar a discórdia, para lançar irmão contra irmão, filho contra pais, amigos contra amigos, na infantil luta entre o gosto e o contragosto. “Gosto se Discute”
O filme é alucinante na sua construção e rico das mais variadas possibilidades de interpretações, neste ponto ele é extremamente poético. Ele é também aquoso, no manuseio das nossas excreções líquidas: esperma, urina e lágrimas. Ele é fragmentário por opção e totalmente cruel, aquela crueldade de que nos falava A. Artaud.
A estória no “Homem que não Dormia” é o que menos importa, ela é apenas um pretexto para Navarro penetrar nossas mentes e semear contradições.
Entendo “O Homem que não Dormia” como o encerramento de um ciclo, Navarro é um cineasta visceral e circular. O primeiro ciclo, em superoito, foi formado pelo Rei do Cagaço (Fase Anal), Alice no País das Mil Novilhas (Fase Oral) e Exposed (Fase Fálica). O segundo ciclo que agora se encerra, tem início com o Superoutro (Ode a Loucura), Eu me Lembro (Abordagem do seu eu no seu próprio tempo) e agora o alucinante e sofisticadíssimo “O Homem que não Dormia”, poucos cineastas tem uma obra tão intimamente ligado ao seu autor.
Tangenciando “Teorema “ de Pasolini, a chegada do peregrino desencadeando no povo a missão de exumar o capital escondido pelo Barão, uma botija com diamantes enterrada, é similar a chegada da personagem de Terence Stamp, no âmbito de uma família burguesa e sem sonhos, numa Itália conflagrada e, através do desejo-sexo, provoca mudanças radicais nesse núcleo reacionário. Edgar prefere colocar o motor das mudanças que redundam em uma nova consciência, no capital perdido, sonegado pelo poderoso, que mesmo após a morte, estabelece uma maldição permanente, é proibido dormir, sem sono não há sonhos, sem sonhos perdemos grande parte do imaginário e nos afastamos do inconsciente coletivo que permeia a raça humana.
Provavelmente por assistir tão somente uma vez ao filme, muita coisa não me foi possível apreender, mas as imagens poderosas colam em nossa memória de forma totalmente pregnante. Evelyn Buchegger tem uma interpretação monumental, entregue aos papeis com a força de um furacão, Ramon Wane forma um Prafrente Brasil burilado até o último detalhe, o inocente torturado por engano, faz parte das dívidas que a ditadura marcou a ferro e fogo na nossa pele, todo torturado é inocente. Bertand Duarte, Psit Mota, Bertho Filho, Fábio Vidal e Mariana Freire completam o elenco principal de forma extremamente talentosa, sem esquecer-se da própria interpretação de Edgard como o Barão sanguinário, perfeita composição e, de Luiz Paulino, como o peregrino, numa interpretação minimalista e profundamente comovedora.
Hamilton Oliveira faz a mais arrebatadora, expressiva e arriscada fotografia entre todos os filmes baianos em que trabalhou. Quando se pede beleza ele é clássico, quando se pede movimento ele comparece com uma câmara angustiada, na mão, buscando estilhaços de significados em cada enquadramento.
Nicolás Hallet nos traz um som funcional e criativo, ouvimos até o mais leve sussurrar e as vozes da natureza que dialogam com as personagens. Confesso que não tive tempo para apreciar a trilha sonora, mas ela esteve em todos os momentos em que quase me afundei na cadeira, dizem que a melhor trilha sonora é a que não se percebe, ela está tão imbricada com o todo que não podemos vê-la só, mas vou ouvi-la em outras exibições, afinal pretendo assistir ao filme várias vezes e, numa delas, de olhos fechados.
Pra Frente Brasil que atrás vem gente, cuidado com a Mula sem Cabeça, os Cegos masturbadores vão te enxergar nas esquinas, o Lobisone na lua cheia arranca teus sapatos.
Mitos populares, Jung, Chapada Diamantina.
É preciso exorcizar os eguns, principalmente Garrastazu, abram-se todos os arquivos da ditadura.
E no final tudo se junta: Marujada, procissão de Pentecoste, Burrinha, Orquestra de Fred Dantas, Folguedos Populares e o povo, amarrados em balões coloridos sobem juntos para o azul do oxigênio que chamamos de céu.
É urgente assistir mais de uma vez ao “Homem que não Dormia”
Fernando Belens – Realizador independente