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17 agosto 2011

Abaixo a Zona de Conforto


Fernando Beléns, realizador de Pau Brasil (2009), primeiro longa após quase quarenta anos na atividade cinematográfica com seus curtas insólitos e médias demolidores, faz, aqui, uma apreciação (ou, como ele mesmo diz, uma breve e livre aproximação) de O homem que não dormia, derradeiro filme de Edgard Navarro, que teve avant-première bastante concorrida na última semana de julho durante o Cine Futuro. Conheço Beléns desde meados da década de 70, quando foi um dos mais ativos participantes do boom superoitista nas jornadas de cinema organizadas por Guido Araújo. Dublê de psiquiatra e cineasta, não atura a devastação que se abate nas relações humanas, expondo-as, em sua imagens em movimento, de forma insólita, iconoclasta, e, por vezes, sem piedade. Segundo a Professora Doutora Marise Berta de Souza, em sua tese sobre Fernando Beléns, O corpo e as políticas do cotidiano nos filmes de Fernando Belens, o cinema belensiano se caracteriza por preocupações recorrentes que giram em torno de duas questões inseridas na discussão da arte contemporânea: as representações do corpo e as micropolíticas. Belens apropria-se desses temas para plasmar o seu universo criativo, por meio do qual expõe a sua tessitura narrativa. O intuito dessa comunicação é discutir as estratégias narrativas agenciadas pelas inter-relações dessas recorrências no conjunto de seus filmes." 

Breve e Livre aproximação do filme O Homem que não Dormia de Edgard Navarro 
POR FERNANDO BELÉNS
“O Homem que não Dormia” já não me deixa dormir em paz. Ele fica ali, espreitando entre as minhas imagens hipnagógicas, e,  ao menor vacilo, invade os meus melhores sonhos e os meus piores pesadelos. Desde que o vi, pela primeira vez na sala do Teatro Castro Alves, encerrando o Cine Futuro, que ainda prefiro chamar Seminário de Cinema da Bahia, toda noite e toda manhã, ele comparece para me incomodar, com suas imagens inesquecíveis

Você  deve ver esse filme ímpar pelo menos uma vez, você não o esquecerá, e ele, também não vai esquecer-se de você, vai lhe atanazar um bom tempo. É um filme para aqueles que vão ao cinema não somente para preencher algumas horas com o já conhecido, ele te pega pela garganta e propõe o seu jogo  de mexer com suas entranhas e seu bem-estar, ele não te dá espaço para a pipoca.

“O Homem que não Dormia” tem irmãos mais e menos conhecidos: ““Saló”, de Pasolini,” A Idade da Terra”, de Glauber Rocha,” A Comilança” de Marco Ferreri, e “O Baixio das Bestas” de Cláudio Assis, entre não muitos. É aquela obra cinematográfica que não faz acordos com nada, nem com a bilheteria, nem com a crítica, nem com a censura que habita todos nós. Ela existe para perturbar, para criar a discórdia, para lançar irmão contra irmão, filho contra pais, amigos contra amigos, na infantil luta entre o gosto e o contragosto. “Gosto se Discute”

O filme é  alucinante na sua construção e rico das mais variadas possibilidades de interpretações, neste ponto ele é extremamente poético. Ele é também aquoso, no manuseio das nossas excreções líquidas: esperma, urina  e lágrimas. Ele é fragmentário por opção e totalmente cruel, aquela crueldade de que nos falava A. Artaud.

A estória no “Homem que não Dormia” é o que menos importa, ela é apenas um pretexto para Navarro penetrar nossas mentes e semear contradições.
Entendo “O Homem que não Dormia” como o encerramento de um ciclo, Navarro é um cineasta visceral e circular. O primeiro ciclo, em superoito, foi formado pelo Rei do Cagaço (Fase Anal), Alice no País das Mil Novilhas (Fase Oral) e Exposed (Fase Fálica). O segundo ciclo que agora se encerra, tem início com o  Superoutro (Ode a Loucura), Eu me Lembro (Abordagem  do seu  eu no seu próprio tempo) e agora  o alucinante e sofisticadíssimo “O Homem que não Dormia”, poucos cineastas tem uma obra tão intimamente ligado ao seu autor.

Tangenciando “Teorema “ de Pasolini, a chegada do peregrino desencadeando no povo a missão de exumar o capital escondido pelo Barão, uma botija com diamantes enterrada, é similar a chegada da personagem de Terence Stamp, no âmbito de uma família burguesa e sem sonhos, numa Itália conflagrada e,  através do desejo-sexo, provoca mudanças radicais nesse núcleo reacionário. Edgar prefere colocar o  motor  das mudanças que redundam em uma nova consciência, no capital perdido, sonegado pelo poderoso, que mesmo após a morte, estabelece uma maldição permanente, é proibido dormir, sem sono não há sonhos, sem sonhos perdemos grande parte do imaginário  e nos afastamos do inconsciente coletivo que permeia a raça humana.
Provavelmente por assistir tão somente uma vez ao filme, muita coisa não me foi possível apreender, mas as imagens poderosas colam em nossa memória de forma totalmente pregnante. Evelyn Buchegger tem uma interpretação monumental, entregue aos papeis com a força de um furacão, Ramon Wane forma um Prafrente Brasil burilado até o último detalhe, o inocente torturado por engano, faz parte das dívidas que a ditadura marcou a ferro e fogo na nossa pele, todo torturado é inocente. Bertand Duarte, Psit Mota, Bertho Filho, Fábio Vidal e Mariana Freire completam o elenco principal de forma extremamente talentosa, sem esquecer-se da própria interpretação de Edgard como o Barão sanguinário, perfeita composição e, de Luiz Paulino, como o peregrino, numa interpretação minimalista e profundamente comovedora.

Hamilton Oliveira faz a mais arrebatadora, expressiva e arriscada fotografia entre todos os filmes baianos em que trabalhou. Quando se pede beleza  ele é clássico, quando se pede movimento ele comparece com uma  câmara angustiada, na mão, buscando estilhaços de significados em cada enquadramento.

Nicolás Hallet nos traz um som funcional e criativo, ouvimos até o mais leve sussurrar e as vozes da natureza que dialogam com as personagens. Confesso que não tive tempo para apreciar a trilha sonora, mas ela esteve em todos os momentos em que quase me afundei na cadeira, dizem que a melhor trilha sonora é a que não se percebe, ela está tão imbricada com o todo que não podemos vê-la só, mas vou ouvi-la em outras exibições,  afinal pretendo assistir ao filme várias vezes e, numa delas, de olhos fechados.
Pra Frente Brasil que atrás vem gente, cuidado com a Mula sem Cabeça, os Cegos masturbadores vão te enxergar nas esquinas, o Lobisone na lua cheia arranca teus sapatos.

Mitos populares, Jung, Chapada Diamantina.
É preciso exorcizar os eguns, principalmente Garrastazu, abram-se todos os arquivos da ditadura.
E no final tudo se junta: Marujada, procissão de Pentecoste, Burrinha, Orquestra de Fred Dantas, Folguedos Populares e o povo,  amarrados em balões coloridos sobem  juntos para o azul do oxigênio que chamamos de céu.
É urgente assistir mais de uma vez ao “Homem que não Dormia”
Fernando Belens – Realizador independente

16 agosto 2011

Sessão Setaro

Um filme de Xavier Beauvois, Homens e deuses (Des hommes e des dieux, 2011), que ganhou, recentemente, o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, é o título programado para a Sessão Setaro, hoje, terça, às 20 horas e 30 minutos, na Sala de Arte da Ufba (Vale do Canela). A renda (100%) será destinada à corrente de solidariedade que está em curso em favor desse blogueiro depenado pelas circunstâncias da vida e pela usura bancária. Que os leitores, pelo menos os leitores baianos, compareçam. Maiores informações sobre o filme: http://www.adorocinema.com/filmes/homens-e-deuses/

15 agosto 2011

Cukor: a dialética do ser e da aparência


Vi, em DVD, a comédia musical Les girls (1957), do grande George Cukor, que assinala uma das últimas aparições de Gene Kelly como dançarino no cinema. O gênero, na época deste filme, já estava a se esgotar, substituído, logo a seguir, pelas grandes produções musicais, a exemplo de West Side Story, A noviça rebelde, My fair lady. Talvez a derradeira película na melhor tradição do filmusical hollywoodiano tenha sido Gigi (1958), de Vincente Minnelli. Os efervescentes anos 60 ainda proporcionaram alguns filmes interessantes (Positivamente Millie, de George Roy Hill, A moedinha da sorte, de George Sidney, Mary Poppins, de Robert Louis Stevenson, entre outros), mas, a partir da segunda metade da década de 60, ainda que alguns estúdios insistissem na grandiloquência (Funny Girl, de William Wyler, A estrela, de Robert Wise), a pá de cal, por assim dizer, veio com Hellô! Dolly, que levou a Fox à falência. Em 1970, com a explosão do Woodstock, o público estava arredio aos espetáculos musicais tradicionais e foi um erro, falta de planejamento, a realização de Hellô! Dolly, um fracasso quase retumbante, ainda que filme fascinante nos seus números e cenas de danças.
Mas estava a falar de Les girls. Um filme de pontos de vista sobre a questão da verdade. O que é a verdade? Há uma verdade de cada um, segundo o ponto de vista de cada um. Cidadão Kane, de Orson Welles, é, neste particular, um puzzlemagnífico construído sobre variações de olhares sobre uma determinada personalidade. Em Les girls, há uma variação em torno da questão, e o autor do roteiro deve ter visto e se influenciado por Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, que trata do assunto. Três pessoas se abrigam de chuva torrencial debaixo de uma marquise e começam a conversar sobre um assassinato que presenciaram. Em flash-backs, como em Les girls, Rashomon mostra a versão de cada um. No final, as versões se contradizem e aparece o espírito do morto para contar a sua verdade.
3) Dirigido por George Cukor, um mestre da comediografia cinematográfica, Les girls gira em torno de um processo judicial com sede num tribunal de Londres, quando uma mulher (Kay Kendall) é processada por antiga amiga por ter escrito um livro que a coloca numa situação difícil, a revelar que, quando eram dançarinas, veio a ser amante de Gene Kelly. O filme então se estrutura a partir dos depoimentos das duas mulheres, a que escreveu o livro e a autora do processo, além do depoimento do próprio Gene Kelly. No final, fica-se sem saber ao certo quem falou a verdade. Para um musical, há, neste particular, um acréscimo temático e filosófico não muito usual. Mas o filme tem números musicais bem coreografados por Jack Cole, um especialista, e as canções foram escritas especialmente por ninguém menos do que o genial Cole Porter.
Cukor é um dos maiores diretores do cinema americano. Não há, no cinema contemporâneo, um cineasta de seu refinamento, de sua finesse, cuja maneira toda especial de dirigir atores (principalmente mulheres) ficou como legenda. Veterano dos estúdios de Hollywood, dirigiu as primeiras cenas de ... E o vento levou (Gone with the wind, 1939), mas o todo poderoso producer David Selznick o demitiu a pedido de Clark Gable, que ficava com ciúme de sua dedicação a dirigir Vivien Leigh. Quem aparece como diretor nos créditos e ...E o vento levou é Victor (O mágico de Oz) Fleming, mas houve outros diretores, como Sam Wood. Interessante observar que é um filme de produtor, o diretor funcionando, apenas, como diretor administrativo. E que extraordinário diretor administrativo, como foi o caso de My fair lady! Se o cinema brasileiro possuísse mais diretores administrativos desse quilate não estaria no beco sem saída do ponto da criação como se encontra, a captar recursos e a pensar pouco na emergência do específico cinematográfico.
Tem um filme, em particular, de Cukor que ficou no meu caminho para o resto da vida, considerando que o vi, pela primeira vez, no cinemascope do cinema Guarany em Salvador, Adorável pecadora (Let's make love, 1960), com Yves Montand e Marilyn Monroe. Cukor aqui está, por assim dizer, na sua quintessência. E o filme é admirável. Tenho-o em DVD e de vez em quando o avisto.
As três girls do filme são as maravilhosas e deslumbrantes Mitzy Gaynor, Tania Elg e Kay Kendall. Elg, mais desconhecida, era uma bailarina finlandesa que encantou o olhar rigoroso de Cukor e foi logo contratada. Kendall, comediante inglesa, do proscênio britânico, mas também com participação em Hollywood, morreu prematuramente de leucemia e era casada com Rex Harrison, o eterno professor Higgins de My fair lady. O número musical do café, no qual há nítida uma paródia a O selvagem, com Marlon Brando, foi coreografado por Kelly, porque, no dia da filmagem, Jack Cole, o coreógrafo oficial, estava doente. Mitzy Gaynor mostra, neste número, a sua excelência como dançarina. Na verdade, um filme como Les girls não mais poderia ser filmado com o poder de encantamento que tem. Porque não há mais uma infraestrutura capaz de oferecer suporte ao gênero: costureiras, coreógrafos, figurinistas, equipe de balé etc.
Cukor foi um verdadeiro mestre. Fez filmes admiráveis como os citados e, ainda, Núpcias do escândalo (Philadelphia story, 1940), Um rosto de mulher (A woman's life, 1941), com Joan Crawford, Viagens com minha tia (Travels with my aunt, 1973), o intrigante A vida íntima de quatro mulheres (The chapman's report, 63), com uma Jane Fonda em início de carreira etc.
O cinema americano do grande segredo, como chamava François Truffaut, é pródigo de talentos na comediografia, a exemplo de Vincente Minnelli, Richard Quine, Blake Edwards, Leo McCarey, entre tantos! Minnelli funcionava bem quer no musical, nas comédias, quer nos melodramas ásperos. Estilista de escol. Neste ponto, mais atraente do que Cukor, sem diminuir, com isto, a excelência deste. Aliás, foi Cukor quem usou cinematograficamente a lente anamórfica emNasce uma estrela (A star is born, 1955), com uma inesquecível Judy Garland (não conheço nenhuma estrela com o talento dessa excepcional cantora e atriz). O cinemascope, então lançado, se perdia nos planos gerais. Cukor o ajustou à expressão cinematográfica com este filme que mostra a ascensão de uma estrela que se casa com um alcoólatra, com acentos biográficos da vida de Garland, interpretado pela fleuma de James Mason. Uma temática constante nos filmes de Cukor: a dialética do ser e da aparência.

14 agosto 2011

O homem que dormiu

Edgard Navarro e Luiz Paulino dos Santos em O homem que não dormia, segundo longa de Navarro.
1.) Confesso (e mea culpa, mea culpa) que ainda não falei aqui de O homem que não dormia, de Edgard Navarro, porque, no dia da avant-première, que se deu quase dez da noite, estava desde a tarde a tomar chopp no Café-Teatro, apesar de uma virose já instalada. Quando foi o momento da projeção, fatigado, tive uma incontinência urinária que me fez sair da sala lotada e descer para ir tirar água do joelho lá embaixo, perdendo, com isso, quase dez minutos do filme. Quando voltei, senti-me febril e cansado, e, ainda,  resaqueado. Dormi durante a exibição - não por causa do filme, diga-se logo de passagem. Ao sair do teatro, senti-me aborrecido, porque não estava em condições de dar nenhuma opinião sobre o derradeiro trabalho de Navarro, realizador de reconhecido talento. Espero que tenha uma outra oportunidade. Talvez vá ao Festival de Brasília, quando o poderei contemplar em tela grande. Fica o registro.

2.) Orson Welles, o revolucionário diretor de Cidadão Kane, fez uma lista especial dos filmes que mais admirava para a revista inglesa Sight and Sound em 7 de setembro de 1952. Eias a relação.
  1. LUZES DA CIDADE (City lights, 1930), de Charles Chaplin
  2. INTOLERÂNCIA (Intolerance, 1916), de David Wark Griffith
  3. VÍTIMAS DA TORMENTA (Sciùscia, 1946), de Vittorio De Sica
  4. A MULHER DO PADEIRO (La femme de le boulancher), de Marcel Pagnol
  5. NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (Stagecoach, 1939), de John Ford
  6. OURO E MALDIÇÃO (Greed, 1924), de Erich von Stroheim
  7. NANOOK, O ESQUIMÓ (Nanook of the north, 1922), de Robert Flaherty
  8. O ENCOURAÇADO POTEMKIN (Brenonosets Pitiokim, 1925), de Serguei Eisenstein
  9. A GRANDE ILUSÃO (La grande illussion, 1937), de Jean Renoir
  10. O PÃO NOSSO DE CADA DIA (City Girl, 1930), de Friedrich Wilhelm Murnau