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29 novembro 2008

Filmes baianos premiados em Brasília

O realizador baiano Adler Kibe Paz, autor, em parceria com Moacy Gramacho, de Cães, filme que recebeu três prêmios no recente Festival de Brasília, entre os quais o de melhor ator para Hilton Cobra, mais conhecido como Cobrinha. Uma produção da DocaDoma, e que tem como producer Lula de Oliveira, Cães, segundo a sinopse, é um filme sobre um encontro e dois pontos de vistas: o de um pai e o de um filho. A fotografia de Pedro Semanovischi, bastante elogiada, recebeu também um Candango.

Kibe, como é chamado, já tem em seu currículo os seguintes títulos: Pênalti (vídeo, 2000) e Babavida, a Cidade de Cabeça para Baixo (vídeo). É o primeiro de Moacyr Gramacho, que tem participações no cinema como diretor de arte (á exemplo de Cascalho, de Tuna Espinheira). Tudo isto me parece um sonho, documentário de 150 minutos do consagrado Geraldo Sarno, também foi premiado.

27 novembro 2008

O filão da comédia sofisticada

Há filmes que expressam bem o estilo de representação de uma época ou de um gênero determinado. Confidências à meia-noite (Pillow talk, 1959), de Michael Gordon, com Rock Hudson, Doris Day e Tony Randall, é exemplar nesse sentido. Se, antes deste, o cinema americano sempre se notabilizou por excelentes comédias (as de Hawks, as de Cukor, as de Tashlin, as de Minnelli...) é, porém, a partir de Pillow talk que se constitui, por assim dizer, um filão específico no qual a comédia vira perfurmaria de luxo, a adquirir uma nova sofisticação. Confidências à meia-noite é pioneiro como um filme detonador de outros que se lhe seguiram quase no mesmo diapasão, quase no mesmo tom: Volta meu amor (Lover come back, 1961), com o mesmo par romântico, é um revival de Pillow talk sob as ordens de Delbert Mann, Quando setembro vier ( Come September, 1961), de Robert Mulligan, troca Doris pela italiana Gina Lollobrigida, mas o screenplay dos três é de Stanley Shapiro, um autêntico perfumista (ao lado do produtor Ross Hunter). A nova sophisticated comedy inspirou até Howard Hawks, que aproveitou Rock Hudson em O esporte favorito do homem (Man's favorite sport, 1964), ainda que o estilo deste autor comportasse uma certa anarquia e um espírito demolidor não afeitos à perfumaria de Shapiro e companhia. O fato é que o filão tomou conta do cinema americano até a quebra definitiva do Código Hayes em meados dos anos 60, quando os temas deixaram de ser tão perfumados e adquiraram o cheiro da tragédia americana. Norman Jewison realizou Não me mandem flores (Send Me No Flowers, 1964), com Rock e Doris, e Michael Gordon não perdeu tempo em ver se fazia ressurgir o filão (já prestes a se esgotar), em 1965, reunindo Rock Hudson e Leslie Caron (a inesquecível Gigi, de Minnelli) em Favor não incomodar.
O fato é que Confidências à meia-noite se constituiu num fenômeno de bilheteria na época de seu lançamento (Ruy Castro, numa lista, chegou a considerá-lo um dos filmes marcantes de um período). Um compositor mulherengo (sim, Rock Hudson mesmo) e uma decoradora de interiores (a virginal Doris Day) tornam-se inimigos quando compartilham o mesmo número de uma linha telefônica. Mas tudo se acerta depois, quando os dois se apaixonam perdidamente. Interessante observar que, naquela época, era difícil se encontrar uma linha de telefone. O que não ocorre atualmente com a avalanche de telefones celulares que tanto perturbam a vida dos outros (quando usados de maneira deseducada e inconveniente, como pelos selvagens que fazem parte da platéia das salas de cinema).

26 novembro 2008

Vendaval de arrogância e cretinice

Sinto-me cada vez mais incomodado quando vou ao cinema por causa das conversas, do telefone celular, das risadinhas fora de hora, do comportamento debilóide da platéia. Se, antes, o incômodo se dava mais nas salas dos complexos Multiplex e Cinemark, atualmente também se aplica às chamadas salas alternativas. Canso de escrever e de falar sobre o comportamento selvagem do público que vai, hoje, ao cinema. Mas às vezes penso que sou uma voz a clamar no deserto. As pessoas vão ao cinema, como disse David Lynch em sua recente viagem ao Brasil, mais para se mostrar, para sair do anonimato, para se exibir, para ficar mais na sala de espera do que na sala de projeção. Mas leio no blog (http://olhoslivres.zip.net) do Comodoro que estou mesmo com a razão, a julgar pela nota divulgada por Carlos Reichenbach em seu reduto sobre a barbárie presenciada por ele no Festival de Brasília. Convidado como jurado oficial, o autor de Falsa loira ficou indignado com o comportamento da platéia e, diga-se de passagem, a platéia de um evento que se diz sério. Peço licença para copiar e colar o seu desabafo, que, a rigor, concordo em gênero, número e grau e assino embaixo. Ei-lo:

NOTA (DESESPERADA) DE BRASÍLIA

"Uma autêntico vendaval de arrogância e cretinice o que vem acontecendo nas salas brasileiras de cinema (e, infelizmente, também aqui no cine Brasília).

Como se não bastassem o fedor de manteiga rançosa das pipocas e o papo animado - e em voz alta - de gente estúpida durante as sessões, os idiotas resolveram agora exibir - em público e de forma acintosa - seus moderníssimos equipamentos hi-tecs (sobretudo, enormes iPhones).

Durante a exibição de O MILAGRE DE SANTA LUZIA, na quarta-feira, um babaca na fileira da frente do júri oficial da competição 35mm ficou assistindo ao jogo Brasil-Portugal, durante toda sessão, incomodando várias pessoas que acompanhavam com interesse o bonito documentário que tem o genial Domiguinhos como guia.

PIOR: o cidadão na certa devia fazer parte de alguma equipe dos curtas metragens em competição, pois estava sentado na fileira reservada aos concorrentes. Deu vontade de perguntar ao mocinho o nome do curta de que ele havia participado e sumariamente "queimar o filme" do Mané.

O procedimento, infelizmente não foi exclusivo do boçal em questão, mas vem se repetindo todos os dias, à despeito da solicitação que é feita pelos apresentadores antes das exibições (inclusive, à meu pedido). Ontem, outro Mané passou meia hora - na minha frente - lendo e-mails e consultando sites de horóscopo. Como o cara não se tocava, toquei eu, enfiando a sola do meu 46 (bico largo) em sua vasta cabeleira. Ao pedir desculpas pelo descuido de "escorregar" o pé em sua cabeça, aproveitei para "sugerir" (de forma civilizada, claro) ao camaradinha desligar o seu moderníssimo iPhone ("que está enchendo o meu saco há meia-hora").

Alguém me contou ontem, que David Lynch declarou recentemente, que cada dia que passa as pessoas estão indo ao cinema menos para ver os filmes, mas para sairem do anonimato e se exibirem."

- Carlos Reichenbach está no 41° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, como jurado dos filmes em 35 milímetros (longas e curtas)


25 novembro 2008

Viagens com minha tia



Não mais existe um diretor do nível, da competência, da qualidade, da finesse, de um George Cukor. Realizador de extraordinária habilidade, sabia, como ninguém, dirigir atrizes e destilar, nos seus diálogos, fina ironia, um sense of humour particular. Se inexistem diretores, hoje, como Cukor, há filmes, por outro lado, que apesar de excelentes, que caíram na vala do esquecimento. Lançados, passaram em brancas nuvens e é como se não existissem. É o caso do agradabilíssimo Viagens com minha tia (Travels with my aunt, 1972), de Cukor, com Maggie Smith (atriz inglesa feia e fleugmática que ganhou o Oscar por sua performance em A primavera de uma solteirona), Alec McCowan (que neste mesmo ano faria,, com Hitchcock, Frenesi/Frenzy, na pele do inspetor cuja esposa é especialista em arte culinária e inferniza, com seus quitutes, a vida e o estômago do personagem), Robert Stephens (cast altamente britânico, como se vê), Lou Gossett, entre outros. Baseado em Graham Greene (também parece não existir mais um escritor tão agradável como Greene e obras de um humor dilacerante como Nosso homem em Havana), Viagens com minha tia foi roteirizado por Jay Presson Allen (que assinou o roteiro do filme doente, e esplêndido, de Hitchcock, Marnie) e Hugh Weeler.

Durante o funeral de sua mãe, o funcionário de banco Henry Pulling (Alec McCowan) encontra sua tia Augusta (Maggie Smith), uma elegante e excêntrica senhora com quem nunca teve muito relacionamento. Mas a simpatia da mulher conquista Henry, que será guiado pela tia numa grande aventura cujo objetivo (dela) é o resgate de um grande amor do pretérito.

Há, pelo menos, pelo menos, dois filmes crepusculares de Cukor que nunca foram exibidos no Brasil (a não ser pela televisão): Amor entre ruínas (Love among the ruins, 1975), com Katherine Hepburn e Laurence Olivier, que, dizem aqueles que o viram, é obra de grande intensidade dramática, e, também com Katherine, O milho está verde (The corn is green, 1979). É chegada a hora, com a facilidade do DVD, de que distribuidoras procurem lançar no mercado brasileiro estas duas preciosidades.

23 novembro 2008

Marilyn Monroe: o mito eterno



A grande vencedora da enquete sobre o maior mito sexual do cinema, Marilyn Monroe marcou toda uma geração. Se afirmei que minhas bonecas de carne preferidas são Brigitte Bardot e Carroll Baker, posso dizer também que adoro Marilyn Monroe, e, confesso que, para o cinema, tem muito mais importância do que as minhas queridas e preferidas. La Monroe está maravilhosa em quase todos os seus filmes, mas destacaria Adorável pecadora (Let's make love, 1960), de George Cukor, onde trabalha ao lado do charmant Yves Montand em comédia deliciosa, Nunca fui santa (Bus stop, 1956), de Joshua Logan, O pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955), de Billy Wilder, Quanto mais quente melhor (Some like it hot, 1959), de Wilder, Os desajustados (The Misfits, 1961), de John Huston, seu último trabalho no cinema sem contar o inacabado Something's Got to Give (1962), de George Cukor.

Carroll Baker: uma boneca de carne



Na formulação da enquete sobre os mitos sexuais do cinema, que se encontra prestes a se encerrar e tem em seu topo Marilyn Monroe, cometi um ato falho, imperdoável, ao esquecer de colocar entre as opções o nome de Carroll Baker. Devo confessar que a primeira atriz que despertou a minha libido como mulher foi indiscutivelmente Brigitte Bardot, mas Carroll Baker também, principalmente depois que a vi, ainda bem jovem, fêmea apaixonante, em Baby Doll (Boneca de carne, 1956), filme esquecido de Elia Kazan, baseado em Tennessee Williams, com ela, uma verdadeira, como diz o título em português, boneca de carne, Karl Malden, Eli Wallach. A aparição de Carroll Baker, neste filme avançado tematicamente para a época no tocante ao tratamento do sexo, provocou frisson inusitado.

Em seguida, ainda que vestida, veio Da terra nascem os homens (The big country, 1958), vigoroso western de William Wyler, mas antes de Baby Doll já tinha trabalhado em fitas televisivas e em Assim caminha a humanidade (Giant, 1956), de George Stevens. Para recordar Baker, e sem o propósito de colocar aqui todos os seus filmes, alguns momentos de sua divina presença: Harlow, a vênus platinada (Harlow, 1965), de Gordon Douglas, Os insaciáveis (The Carpetbaggers, 1964), de Edward Dmytryk, com Alan Ladd, baseado em best-seller de Harold Robbins, Crepúsculo de uma raça (Cheyenne Autumn, 1963), de John Ford, Sylvia (1966), de Gordon Douglas, Quando a vida é cruel (Something Wild, 1961), de Jack Garfein, A maior história de todos os tempos (The Greatest Story Ever Told, 1965), de George Stevens, no papel de Verônica. A partir de meados dos anos 60, ainda bela e extremamente sexy, partiu para a Europa e trabalhou em filmes pseudo-eróticos e alguns westerns-spaghettis, a exemplo de O doce corpo de Débora (Il Dolce corpo di Deborah, 1968), de Romolo Guerrireri, Captain Apache (1971), de ilustre desconhecido sob pseudônimo, filmes insignificantes. Mas em 1987 participou de Ironweed, de Hector Babenco, ao lado de Jack Nicholson e Meryl Streep.

Para o cinema, a importância de Marilyn Monroe como mito sexual foi, realmente, maior. Mas as minhas duas bonecas de carne são Brigitte Bardot e Carroll Baker. Fica registrado, então, o grande erro, que é corrigido em tempo hábil.

Carrollzinha tem apavorantes 77 anos.

Cinema Baiano (6): "A Grande Feira"

Análise de estrutura audiovisual
A narrativa, em A grande feira, filme baiano realizado em 1961 por Roberto Pires, está mais a serviço da fábula, ainda que o realizador tenha se preocupado em estabelecer uma mise-en-scène para o seu desenvolvimento. Há graus de narratividade que procuram o específico fílmico na transmissão do aspecto fabulístico ou, se se quiser, na ilustração da história. E estes graus de narratividade podem ser conferidos em algumas seqüências: aquela em que Rony, indo procurar Maria, após ser ameaçado com a navalha, rompe o vestido dela; o passeio turístico de Rony e Helena e, principalmente, a pontuação da seqüência com a lancha e os personagens dentro dela; o momento no qual Chico Diabo vai tocar fogo nos tanques com o dinamite e o desenvolvimento de uma montagem paralela baseada na lei de progressão dramática griffthiana da corrida contra o tempo; o prólogo, com a partitura de Remo Usai; o plano geral que antecede o epílogo, com campo visual aberto onde, no quadro fílmico, vê-se o cais do porto em toda a sua dimensão e, pequenos, os dois protagonistas (o marido que, com a porta do carro aberta, espera a esposa arrependida); etc.

Em outros momentos, o realizador estabelece a sua condução fílmica nos diálogos, desenvolvendo pouco a capacidade de articulação cinematográfica. São exemplos desses momentos: as diversas seqüências no bar de Pedro, onde, nota-se, flagrante, a ausência de um maior desenvolvimento no que tange a um melhor ritmo especificamente cinematográfico, a predominar um nítido confinamento dos protagonistas num espaço asfixiado, quando o realizador poderia ter dimensionado este mesmo espaço em termos de uma maior flexibilidade de ação geométrica para a câmera. Aqui, neste caso, valeria mais usar, por exemplo, o campo e o campo contrário ou, melhor, o campo e o contra-campo. Há, também, um abuso virtuosístico que, ao contrário de abrilhantar a narrativa, fá-la apenas decorativa, enfeitada: os ângulos inusitados e insólitos da sequência na qual Rony dança com Maria no cabaré de Zazá.

No cômputo geral, existe um desequilíbrio no campo da mise-en-scène de A grande feira, causado, talvez, pela falta de recursos da produção. Roberto Pires, vale ressaltar, nesta sua segunda longa metragem, revela, por outro lado, uma artesania bastante apreciável e uma idéia de cinema capaz de fazê-lo um cineasta de vôos mais altos no plano narrativo. Não é, entretanto, um autor, ou, mesmo, um estilista, mas aquilo que se pode chamar de um artesão cinematográfico, pois tem capacidade de articular as imagens e de contar uma história.
No caso de A grande feira há, evidente, na distinção entre narrativa e fábula, (distinção que é válida mais no plano teórico), que são, a rigor, indissociáveis, que a fábula, de autoria de Rex Schindler, passou por um tratamento ainda literário através do roteiro feito pelo próprio cineasta que, pré-visualizando o filme, capacitou-o de uma linguagem própria e específica. Se a fábula original, o argumento, a história, é de Rex Schindler, a narrativa, porém, é de responsabilidade de Roberto Pires. Na transferência de signos – a transfer, o que é literatura, símbolos, passa para uma outra especificidade, qual seja a linguagem cinematográfica. Daí se dizer que a adaptação de uma obra literária para o cinema é impossível na medida em que a narrativa literária se destrói na transfer para a narrativa cinematográfica, a ficar, apenas, a intriga, as personagens, as situações, a idéia central.

É verdade que Rex Schindler, ao escrever a história de A grande feira, pensou em termos imagéticos, pois seu propósito era o de desenvolver uma história para ser filmada. Mas enquanto escrevia, com o uso de um referencial simbólico (letras articuladas em frases e, estas, em orações e períodos), fez literatura e não cinema. O cinema começa a partir do momento em que Roberto Pires escreveu o roteiro, fixando, neste, os elementos determinantes e componentes da linguagem cinematográfica.

Quanto à abrangência do poder narrativo de Roberto Pires, limitado, como se viu, mas talentoso, deve-se considerar que, havendo, a grosso modo, duas espécies de cineastas, um cerebral e conceptual, outro sensorial e intuitivo, o realizador de A grande feira se insere no segundo grupo, aquele dos sensoriais e intuitivos. Como diferenciar, no entanto, os dois tipos? Os cerebrais e conceituais reconstroem o mundo em função de sua visão pessoal, acentuando a imagem como meio essencial de conceitualizar o seu universo fílmico. Não perece ser, este, o caso de Roberto Pires. Já os sensoriais e intuitivos, ao contrário, procuram, antes, subtrair-se diante da realidade, fazendo surgir da representação direta da realidade a significação que querem obter. Assim, Roberto Pires, por sensorial e intuitivo, faz surgir, em A grande feira, a representação direta e objetiva do drama da Feira de Água de Meninos, a significação pretendida. Para ele, o trabalho de elaboração da imagem tem menos importância – não descuidando, porém, é claro, da mise-en-scène – que sua função natural de figuração do real. O seu virtuosismo – como no caso da cena que Rony e Maria dançam em ângulos insólitos – está em função dessa figuração do real, sendo um cineasta, nesse particular, realista. Ao contrário de um expressionista – que deforma o real, retorcendo segundo a sua visão, ou de um surrealista – que junta a realidade exterior e a interior, ou, mesmo, um intimista – que filtra, da realidade, alguns aspectos desta que exalta.

Cineastas conceituais e cerebrais são Serguei Einsenstein (Outubro), Orson Welles (Cidadão Kane), Jean-Luc Godard (Acossado), Alain Resnais (O ano passado em Marienbad), entre tantos outros, que tendem a reconstruir o mundo em função de sua visão pessoal. Neles, a narrativa tem predominância absoluta sobre a fábula, confundindo-se com esta ou, mesmo, o conteúdo, se se pode falar assim, nestes cineastas, é a forma.

Um outro exemplo de cineasta conceitual e cerebral é Alfred Hitchcock. O conteúdo de seus filmes está condicionado pela forma. Inventor de fórmulas, criador, Hitchcock não se incomoda – nem se preocupa – com a figuração do real, mas de seu real, pois autor completo. Ainda que, em relação a Roberto Pires, não se possa compará-lo a estes monstros sagrados da sétima arte, o fato é que, sendo sensorial e intuitivo, aproximando-se de outros, ainda que sem a força imagética destes, Pires é um realizador cuja intuição da imagem leva-o ao espírito griffthiano da narrativa, a uma concepção mais trabalhada em termos do desenvolvimento da imagem in crescendo. É mais um administrador da imagem do que um criador da imagem.

Tomando a palavra emprestada a Walter da Silveira (em ensaio-crítico publicado no suplemento literário do Diário de Notícias em novembro e dezembro de 1962 – em vários domingos), vale ressaltar que a mise-en-scéne de Roberto Pires, é, de certa forma, imperfeita. Diz Walter: “O roteirista-diretor-montador quis, com vários cortes, violentos e inesperados, criar ou renovar o interesse pelo relato, quebrando no espectador aquela acomodação subjetiva produzida pela acomodação ótica. Mas o efeito obtido, longe de representar o choque físico e espiritual desejado, às vezes não passou de uma agressão visual, insólita e dolorosa, sem fim estético ou dramático. Nenhum exemplo mais tangível do que a transposição do plano longo do automóvel, distanciando-se no porto, para o primeiro plano de Cuíca de Santo Amaro, gritando no final. Roberto Pires deve ter pensado que montage, na gramática moderna do cinema, equivale a um rompimento do convencional. Seria simples demais. Pode-se tentar uma nova ordem para o ritmo cinematográfico, jamais destruí-lo. Usar o corte imprevisto seguidamente termina numa academização, portanto em outro convencionalismo, sem a certeza de que o resultado artístico supere o tradicional. A única opção justa seria a de entender que um estilo de continuidade, de montage, acompanha e traduz o sentido do roteiro, assim como o estilo do verso, a sua brevidade ou alongamento, traduz e acompanha o sentido interno do poema. Esse entendimento, como totalidade, foi cumprido em A grande feira: nas suas particularidades, faz crer, porém, que Roberto Pires transforme em sistema o que apenas tinha validade para a natureza episódica de seu segundo filme.”.

Não se concorda, aqui, com o brilhante crítico e ensaísta a respeito do corte direto do plano longo do automóvel esperando no cais para o close up de Cuíca de Santo Amaro. Pires, ao contrário do que diz o ensaísta, provoca, é verdade, um choque ao sair de um plano geral para um close up e, com isso, nesta concepção moderna da montagem, não está sendo convencional. Se se puder concordar, com Walter, que o excesso de corte estridente na passagem de uma seqüência a outra (como o golpe desferido no policial que persegue Chico Diabo, o saxofone que dá início à seqüência na qual Zazá é morto, etc) pode conduzir a uma forma de academicismo, no que se refere ao corte final, que anuncia o término de A grande feira, o resultado é altamente funcional. Como a sugerir que a fábula do filme não passou de uma história de Cuíca de Santo Amaro. A tomada demorada, em plano geral, sinaliza um comportamento novo em estilística, a indicar que Roberto Pires estava antenado com o cinema mais moderno em prática em outros países. Ainda que, se se analisar no geral, o filme não deixa de ser, como diz Walter, acadêmico em sua estrutura narrativa. A ruptura desse cinema academizante (a câmera em volta da cama de Maria, os ângulos insólitos e virtuosos apontados) só viria a se dar em Glauber Rocha, dois anos depois, quando este realiza Deus e o diabo na terra do sol.
Outro crítico, Orlando Senna, em artigo sobre A grande feira publicado em novembro de 1962 no Diário de Notícias, discorda de Walter da Silveira em relação ao plano longo do final, quando escreveu: “O ponto alto do filme é a seqüência em que Ely (ou Helena), abandonada pelo marinheiro, retorna ao conforto do seu marido: um longo plano, ao fundo, entre dois armazéns das docas, Ely indecisa, seu marido, o automóvel próximo: a tomada é longa, parada, sofrida”. Mas Walter, a rigor, não discorda do plano em si, de sua longa duração, mas da montage, do corte ex-abrupto que, terminando a seqüência do cais, faz aparecer em expressivo close up o rosto falante de Cuíca de Santo Amaro.

A construção de uma narrativa fílmica, ou o arranjo que o material narrável assume na obra, pode obedece a diversos critérios. A distinção mais evidente é entre estruturas simples e estruturas complexas, sendo fato consumado que, neste caso, a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa (pode haver histórias intricadas, mas de estrutura elementar e, pelo contrário, histórias lineares mas que se tornam intricadas por uma disposição dos segmentos narrativos). Deu-se, na verdade, forma ao que se encontrava espalhado aqui e ali, procurando o entendimento do cinema dentro de um corpus sistematizador – e não aleatório. Assim, em A grande feira, considerando-se os vários tipos de estruturas narrativas, pode-se classificá-lo como um filme de estrutura simples e narrativa linear, aquela que é percorrida por fios condutores, que se desenvolvem de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema a que obedece é aproximadamente o seguinte: (a) introdução ambiental; (b) apresentação dos personagens; (c) nascimento do conflito; (d) conseqüências do conflito; (e) golpe de teatro resolutório. O esquema repete à letra o que era a estrutura base do romance naturalista ou psicológico do século XIX.