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06 outubro 2011

“Let’s Make Money” - análise do Professor Jorge Moreira


O Professor Jorge Moreira, baiano da Ilha da Maré, hoje Ph.d, com tese sobre Antonio Callado, e regente de disciplinas em universidades dos Estados Unidos - já passou pela University of California, Minnesota, Wisconsin, entre outras), é, também, um grande admirador da chamada sétima arte, e, bissextamente, dá-me a honra de enviar análises perfuratrizes sobre filmes. Articulista de Rebellion, destacado diário onde escreve sobre política, Moreira tem um livro que, sobre dar imenso prazer de leitura, é um documento da paz reinante em sua meninice quando Salvador e adjacências era uma ilha de tranquilidade. Trata-se de Memorial da Ilha e outras ficções. Mas vamos parar por aqui para ler logo a sua análise de Let's Make Money, premiado documentário que se encontra despertando curiosidade pelo mundo afora.

“Let’s Make Money” é um filme (2008) do diretor austríaco Erwin Wagenhofer que conquistou em 2009 o premio de melhor documentário do Festival Internacional da Alemanha (German Documentary Film Prize) e que não devemos deixar de assistir.

O documentário, organizado em várias partes, mostra um conjunto de imagens e de entrevistas com os grandes investidores, economistas, professores, dirigentes políticos, com o povo e os representantes de organizações populares do terceiro mundo. As imagens e as entrevistas revelam como funciona o neoliberalismo no atual processo de globalização que nos conduziu a uma das piores crises econômicas da historia mundial, ou seja, revelam como funciona a expansão imperial do capitalismo pelos países do terceiro mundo e como no neoliberalismo os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais pobres.

As entrevistas foram realizadas na África, na Ásia, na Europa e nos EUA onde os proprietários capitalistas dominam e exploram a população pobre de Gana, de Singapura, da Indonésia, da índia, da Espanha, dos EUA e outros países.

Entre os entrevistados encontram-se, de um lado, os dogmáticos defensores do neo liberalismo e da globalização (os que são favoráveis à expansão imperialista do capitalismo pelo mundo); do outro lado, encontram-se os críticos e os resistentes ao capitalismo.

Entre os defensores do neo liberalismo encontramos, como não poderia deixar de ser, o Sr. Mark Mobius, o presidente da Templat Emerging Markets que é a maior companhia administradora de fundos de investimiento do mundo, cujas operações alcançam um valor de 50 bilhões de dólares.

Também encontramos, entre os defensores, a Mike Kovats (um temível investidor que está colocado entre os 15 homens mais ricos de Áustria) e Terru Le Sueur (o ministro de finanças da ilha de Jérsei, o paraíso fiscal da Europa) que trata de justificar o “progresso da Ilha” afirmando que ela passou de uma economia baseada na agricultura para uma baseada no turismo; e finalmente, se transformou num dos grandes centros de finanças e de especulação internacional.

Entre os resistentes e os críticos do neo liberalismo (os que são representantes anti capitalistas das populações expropriadas pelo capital) estão:

Sujatha Raaju, formada em estudos de comerciais na Universidade de Madras (Índia) que denuncia a injustiça social, a miséria e a poluição causada pelo neo liberalismo na cidade de Chennai;

John Chistensen, economista de desenvolvimento que denuncia como o processo de desregulação do controle dos serviços financeiros e econômicos que foi engendrado pelo consenso de Washington, pelo Banco Mundial e pelo FMI e foram os responsáveis pelo aumento da expropriação das indústrias e empresas públicas e sociais em benefício da apropriação privada pelo grande capital: conforme ele foi este modelo neo liberal que nos conduziu a catástrofe econômico financeira atual;

Francis Kologom um gerente de produção do algodão que denuncia o sistema protecionista do liberalismo dos EUA como o responsável pela miséria dos plantadores africanos de Burkina Faso;

Werner Rugemer da Universidade de Colônia que denuncia o processo de privatização que expropriou os meios de transportes públicos de Viena (que pertenciam ao estado e à população da Áustria) para beneficiar os investidores externos.

Entre os críticos do neoliberalismo também vemos a Hermann Scheer, um destacado membro do parlamento da Alemanha, lúcido crítico da opressão do sistema financeiro internacional, da poluição e da destruição ambiental da natureza. Scheer chega a conclusão de que não pode haver mudança social sem a reorganização política dos prejudicados para lutar contra o capitalismo.

Em uma categoria especial localizamos John Perkins, o ex-assassino econômico (a former economic Hitman-EHM) que descreve (desde dentro das organizações governamentais) o caráter ilegal e criminal da política externa imperialista do governo dos EUA para os países subdesenvolvidos (ou emergentes) da America Latina (Brasil incluído), da Ásia e da África.

Embora todas as entrevistas e as imagens cinematográficas sejam partes importantes do documentário e devem ser vistas e escutadas durante a exibição do filme completo, gostaria de selecionar e destacar uma das entrevistas, a de John Perkins, pois ela me parece imprescindível para caracterizar e entender como funciona a relação entre as partes no documentário e a totalidade política representada pelo imperialismo dos EUA: a que proporciona o sentido essencial do processo de acumulação de capital e de dominação política a partir do neo liberalismo e da globalização.

Não tenho duvida que a entrevista de John Perkins é de vital importância dentro do filme porque mostra (sobretudo) a lógica que as corporações e o governo dos EUA utilizam para submeter os países do terceiro mundo (os emergentes ou subdesenvolvidos) ao processo de recolonização (neo-colonialismo) pelo capital imperialista globalizador.

Ao mencionar John Perkins, vejo-me na necessidade de informar quem é ele e que papel jogou na configuração do sistema imperialista:

Perkins fez carreira e foi sócio da MAIN, a agencia de consultoria internacional ligada à Agência de Segurança Nacional (National Security Agency – NSA), a maior instituição de inteligência do mundo. Ali, ele era encarregado de missões na Indonésia, no Panamá, no Equador e na Arábia Saudita onde ele elaborava estudos econômicos fraudulentos, para obrigar estes países a tomarem empréstimos que se revelaram impagáveis no futuro e, assim, se tornaram economicamente dependentes dos países imperialistas e suas corporações credoras.

Com a morte, em condições suspeitas, dos presidentes Jaime Roldos, do Equador, e Omar Torrillos, do Panamá, ele decidiu em 1981 deixar a agencia MAIN e denunciar em livro as atividades ilegais e criminais da empresa e do governo de EUA.

Em 2005, ele publicou seu famoso livro Confessions of an Economic Hit Man sobre o tema que foi traduzido para muitas e diferentes línguas incluindo a portuguesa (Confissões de um assassino econômico).

Para incentivar o leitor a assistir a este importante documentário darei em seguida uma livre tradução de uma parte da entrevista de Perkins para o filme Let’s make Money.

“Sou John Perkins, um cidadão americano, nascido e criado nos Estados Unidos. Sou um antigo e ex “assassino econômico” do meu pais, dos EUA.

O nosso modo de operação era muito semelhante ao assassinato da máfia. Por que? Porque estamos a procura de um favor que virá mais tarde. Os mafiosos e os “gangsteres” já fazem isto a muito tempo. Nos apenas o fazemos a uma imensa escala com governos, com países, e somos muito mais profissionais que os mafiosos.”

“Fazemos isto de muitas diferentes formas, mas talvez a mais comum seja a seguinte: o “assassino econômico” dos EUA identifica um país que tenha recursos que as nossas corporações desejam como o petróleo. Logo, conseguimos um enorme empréstimo para aquele pais a partir do Banco Mundial ou de uma das suas organizações.”

“Mas o dinheiro emprestado nunca vai realmente para o país, em vez disso, vai para as nossas corporações para construírem grandes projetos de infra estruturas naquele país. Projetos que só beneficiam uma minoria muito rica do país. E logicamente beneficiam as nossas próprias corporações. Mas o empréstimo não ajuda a maioria das pessoas que são pobres.

Aos pobres, é deixada uma poderosa divida que é tão grande que eles nunca vão poder reembolsar. Mas no processo de tentar reembolsar a dívida, os países ficam numa situação onde não podem ter bons programas de saúde ou programas de educação. Então, nós, os “assassinos econômicos” de EUA, voltamos lá e dizemos-lhes:

- Escutem, vocês nos devem muito dinheiro e não conseguem pagar as suas dívidas. Assim, vocês têm que dar-nos um pedaço da carne: vendam-nos o seu petróleo muito barato às nossas companhias petrolíferas; ou votem conosco na próxima situação critica nas Nações Unidas; ou enviem tropas para no apoiarem em alguma parte do mundo, tal como no Iraque.”

“E foi desta forma que conseguimos criar este Império porque, de fato, somos nós que escrevemos as leis; nós controlamos o Banco Mundial; nós controlamos o FMI (Fundo Monetário Internacional); e de uma certa maneira, nós também controlamos as Nações Unidas. Como? Somos nós que escrevemos as leis e portanto as coisas que o “assassino econômico dos EUA faz não são ilegais.”

Endividar enormemente os países e depois exigir uma troca de favores, isso não é ilegal; deveria de ser ilegal, mas não é.

Uma das principais características de um império é que impõe a sua moeda ao resto do mundo e foi isso que fizemos com o dólar. Um exemplo? Em 1971, os EUA tinham uma enorme dívida e grande parte da dívida era resultado da Guerra do Vietnam. Neste período, nós estávamos dentro do “padrão do ouro”.

Alguns dos países credores decidiram executar as suas dívidas e queriam receber o pagamento em ouro porque eles não confiavam no dólar. O presidente Nixon recusou-se a pagar em ouro, de fato, retirou-nos do padrão do ouro porque ele sabia que nós não conseguiríamos pagar em ouro, pois não tínhamos o valor (a quantia) para pagar nossas dívidas.

Pouco tempo depois, nós fomos para o “padrão do petróleo” e eu mesmo fiz parte daquele acordo que fizemos com a Arábia Saudita forçando que a OPEP (Organização dos Países exportadores de Petróleo) vendesse o petróleo apenas por dólar. Então, de repente o dólar move-se do “padrão do ouro” para o “padrão do petróleo”. De repente, o mundo só podia comprar petróleo com o dólar e assim o dólar virou a moeda mais importante do planeta.

Atualmente, os EUA mais uma vez, é um pais falido. Hoje temos enormes dívidas, maiores que qualquer país, alguma vez na historia do mundo. E se algum desses países pedir o reembolso dessa dívida, em outra moeda que não seja o dólar estaremos num gravíssimo problema.

No momento, ainda pedem o reembolso em dólares porque atualmente o petróleo é a mais importante mercadoria e os países só podem comprar o petróleo com dólares.

Por isso quando Saddam Hussein ameaçou vender petróleo com outras moedas que não fossem o dólar, nós decidimos ficar livre de Saddam Hussein.”

Vou parar a entrevista fílmica de Perkins no parágrafo anterior, porém não sem antes observar que o parágrafo apenas inicia uma explicação contundente da razão fundamental que levou os EUA a invadir o Iraque.

Na minha opinião, essa explicação também permite ao leitor deduzir consistentemente qual foi a principal razão para que os EUA, a França e a OTAN declarassem a guerra contra Omar Kadhafi sob a máscara da “ajuda humanitária” para o povo da Líbia.

Para os leitores que desejem ver e ouvir a entrevista colocarei o enlace (link) apropriado abaixo:


Voltando ao lado formal do filme, devo insistir que a entrevista de Perkins corresponde apenas a uma parte importante do documentário Let’s Make Money porém as outras partes também são imprescindíveis para o espectador porque contem (com as outras entrevistas) um conjunto de desconcertantes imagens que mostram a exploração, a pobreza, a miséria e a desgraça que foram causadas pelo expansão do neo liberalismo e da globalização.

Para todos aqueles que querem compreender a abominável situação em que atualmente nos encontramos (nosso planeta e suas populações) como resultado da lógica destrutiva da globalização capitalista não deverão perder este novo filme, o documentário “Let’s Make Money

05 outubro 2011

"...E o sangue semeou a terra", de Anthony Mann

O western, o cinema americano por excelência, na definição do crítico francês André Bazin, tem em Anthony Mann (1906-1967) um de seus expoentes (ao lado de Ford, o maior de todos, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher, entre muitos outros), como comprova a visão de E o Sangue Semeou a Terra (Bend of the River, 1951), um dos muitos filmes do gênero que realizou com James Stewart (a parceria entre os dois ainda se dá em Winchester 73, 1950, O preço de um Homem/The Naked Spur, 1952, Região do Ódio/The Far Country, 1954), etc, westerns exemplares e que configuram o sentido de espetáculo do cineasta.

Em ...E o Sangue Semeou a Terra, trata-se da marcha de uma caravana de lavradores do Missouri até o Oregon, através de índios, caçadores de ouro, linchamentos e ladrões. No itinerário, Stewart, o herói de Mann, se depara com, e tem de enfrentar, vencendo-os, vários obstáculos, mas encontra a ajuda de um amigo (Arthur Kennedy) e de um jogador de San Francisco (interpretado pelo futuro galã das comédias sofisticadas e dos filmes de Douglas Sirk, Rock Hudson). Os westerns de Mann com James Stewart possuem uma homogeneidade no trato narrativo e na estruturação os personagens, conjugando, como se pode observar em ...E o Sangue Semeou a Terra, o homem e a paisagem.

O realizador fez renascer o gênero, que parecia esgotado nos anos 50 (e que se perderia definitivamente nas décadas seguintes). Mann dá vida ao western, oferecendo-lhe um alento épico dentro do cotidiano. Mas a concepção do herói para o cineasta contraria o lugar comum ao gênero, pois seus personagens têm muito pouco do herói clássico, sempre a emergir, deles, as fragilidades humanas. Os personagens de Mann são, simplesmente, homens consagrados a uma tarefa, a uma missão, que tentam levar ao fim, apesar das dificuldades e dos desalentos.

O western, no entanto, que define melhor o realizador é O Homem do Oeste (Man of the West, 1958), com a presença de Gary Cooper. Neste, o tema do aventureiro envelhecido, a amargar o passar do tempo, possui alentos trágicos se comparado com a trajetória dos outros personagens dos filmes feitos com Stewart, por exemplo, homens de pradaria e dos espaços abertos. Em O Homem do Oeste, há uma concentração mais interiorizada do personagem e Cooper vive uma, por assim dizer, crise existencial. Um western, portanto, com tintas psicológicas.

A partir de Cimarron, em 1960, com Glenn Ford, o legendário ator hollywoodiano que morreu em 2006 aos 90 anos, Anthony Mann, sem mais arranjar produção para continuar fazendo westerns (também já incursionou por outros gêneros, a exemplo de Música e Lágrimas, sobre a vida de Glenn Miller), foi contratado por Samuel Bronston, famoso produtor, na época, de superproduções colossais. Mas se saiu bem nas duas que fez, ambas épicas: El Cid, com Charlton Heston e Sophia Loren e A Queda do Império Romano.

02 outubro 2011

Era uma vez no Oeste: western sinfônico

Já publiquei, há tempos, este post aqui, no Setaro's Blog, mas o republico, porque, ontem, sábado, dei-me ao prazer de rever o filme. Não sei quantas vezes já o vi. Perdi a conta. Pode-se, inclusive, vê-lo de olhos fechados para ficar ouvindo, somente, a partitura de Ennio Morricone. E será possível, agora fazendo a conta, que Era uma vez no Oeste já tem 43 anos? Vi-o no lançamento em 1970, aqui em Salvador, onde me escondo dos credores, ainda que o filme seja de 1968. Acontece que, naquela época, os filmes demoravam um ou dois anos para serem lançados no Brasil. Primeiro eram colocados no eixo Rio-São Paulo e, muitas vezes, acontecia de somente virem à Bahia um ano depois. Mas assisti a C'era una volta in west na vastidão do 70mm no antigo cinema Tupy. Foi um impacto. Lembro-me que Glauber Rocha escreveu um longo artigo impressionado com o filme de Leone. Alguém disse, não sei se o próprio Glauber, que a indumentária dos pistoleiros foi influenciada pela de Antonio das Mortes em Deus e o diabo na terra do sol (filme, aliás, que está na frente na pesquisa que faço ao lado sobre filmes brasileiros), O DVD pode ser encontrado, se não estiver esgotado, a preço de banana prata nas Americanas.

 O DVD de Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone, lançamento em edição especial, cheia de extras, que estava, há pouco tempo, no saldão de conhecida loja de departamentos, é, simplesmente, uma beleza. O filme, com o passar do tempo - é de 1968, ficou ainda melhor, não perdendo em nada do seu impacto inicial, quando o vi pela primeira vez na gigantesca tela do cinema Tupy em cópia de 70mm. Ainda que a dimensão da tela doméstica não possua o mesmo poder de envolvimento e êxtase - sim, é a palavra correta em se tratando de uma obra-prima como essa, momento, sem exagero, de rara inspiração em toda a história da arte do filme, vejo Era uma vez no Oeste como se fosse uma sinfonia, como se uma música de imagens.

A partitura do maestro Ennio Morricone está tão entrosada no filme que faz parte dele, e, neste caso, poderia dizer que Morricone é uma espécie assim de co-autor da obra da mesma maneira como Michel Legrand o é de Os guarda-chuvas do amor, de Jacques Demy. Morricone, com sua extraordinária musicalidade, exerce, aqui, em Era uma vez no Oeste, não apenas uma complementação da narrativa, mas uma mise-en-musique.

E Leone é um esteta, um mestre absoluto, que sintetiza, neste "western sui generis", toda a sua primeira fase constituída de obras que "rascunham" esta belíssima reflexão sobre a estética westerniana num prisma novo e insinuante, apátrida, singular e original. Quem viu Por uns dólares a mais, Por um punhado de dólares e O bom, o mau e o feio - também conhecido por Três homens em conflito - pode testemunhar que estes filmes são uma "anunciação" de Era uma vez no Oeste.

A sua revisão comprova a magnificência de Sergio Leone que, nos anos 80, com seu canto de cisne, Era uma vez na América, traumatizou toda uma década, realizando uma das maiores obras de toda a história do cinema. Pena que a morte prematura - ia fazer 60 anos - o tenha levado embora.

Morricone compôs quatro temas fundamentais destinados a cada um dos personagens principais: Claudia Cardinale, Jason Robards, Charles Bronson e Henry Fonda - magnífico no papel de vilão, cínico, cruel, frio, super-maquiado, super-estilizado, capaz de matar até criancinhas com irrepreensível sangue frio. Quando os personagens se cruzam, as partituras também entram em rodízio com um resultado impressionante em se tratando da relação música e imagem.

A seqüência inicial, de abertura, é uma obra-prima à parte, que mostra a espera, por três pistoleiros, em uma velha e encardida estação, da chegada do trem. Morricone chegou a compor um tema, mas desistiu e, influenciado por John Cage - para quem todo ruído num concerto é música, fez dos ruídos uma espécie de "sinfonia". Assim, o estalar dos dedos de um dos pistoleiros, a gota d'água que cai modorrenta no chapéu de Woody Strode, a mosca que fica zoando no rosto de Jack Élan, o ranger do moinho, a chegada estrepitosa do trem, etc, formam uma tensão inusitada.

Claudia Cardinale agita a paixão dos homens e, neste filme, encontra-se no auge da beleza. A mulher é aqui objeto do desejo de três homens rudes e sedentos: Henry Fonda, Jason Robards Jr, Charles Bronson. Com a perda do marido, um fazendeiro, em dia de festa, que é assassinato cruelmente pelo bando de Henry Fonda, resta a ela, sozinha, enfrentar uma vida nova, recomeçar de novo.

A tomada que apresenta a sua entrada na cidade e que mostra, em grua, a sair da estação, o movimento da cidade, é imensamente bela e impactante. Dá-se no momento em que Claudia sai do trem e entra na cidade, que, movimentada, encontra-se, somente na aparência, indiferente à sua beleza.

Leone tem um sentido de duração que difere da maioria dos cineastas, aproximando-se mais, na utilização do tempo cinematográfico, dos realizadores japoneses. Gosta de alternar extremos close ups com planos gerais de grande amplitude, provocando, com isso, um contraste nos códigos perceptivos. Mas, para Leone, o rosto humano não é uma face oculta, mas, e principalmente, também uma paisagem. Seus closes demoram na tela, enchendo-a, para perscrutar a alma humana, para adentrar na interioridade dos seres. Tudo é muito estilizado e rigoroso sem perder, contudo, o caráter de introspecção.

Não resta dúvida que o melhor filme dos anos 80 foi um Leone, e, aliás, o seu derradeiro, que lembra a segunda parte do monumental O poderoso chefão (The godfather, 1974), de Francis Ford Coppola. Mas o que assombra em Era uma vez na América, assim como em Era uma vez no Oeste, é a fascinante, envolvente, mise-en-scène leonina.

O argumento de C'era una volta in West/Once upon a time in West foi escrito a seis mãos: as de Bernardo Bertolucci, o consagrado cineasta de O último tango em Paris, as de Dario Argento, diretor cult de terroríficos e crítico afamado, e as de Sergio Donati, que ficou responsável pela decupagem, além, é claro, da participação de Leone em todas as fases do processo de criação cinematográfica.

O DVD é especial mesmo e tem muitos extras, inclusive um documentário precioso com depoimentos de Tonino Delli Colli, o fotógrafo, Alex Cox, Gabrielle Ferzetti, Bertolucci, Claudia Cardinale, Henry Fonda, entre outros.

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