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17 maio 2012

Marilyn Monroe na voz de Frank Sinatra

Agosto vindouro, mês considerado aziago, Marilyn Monroe completa 50 anos desde que a morte a levou. Seus fãs, na época, ficaram consternados, pois uma mulher ainda em pleno vigor, aos 36 anos, teve fim tão prematuro. Na época, adolescente, ia completar 12 anos, mas já tinha visto vários filmes com ela, em particular Adorável pecadora (Let's make love, 1960), de George Cukor, onde faz parceria com Yves Montand, charmant ator francês em sua primeira experiência no cinema americano. Casado com Simone Signoret, ambos comunistas de carteirinha, Montand não conseguiu se abster dos encantos da atriz e teve com ela um carnal knowledge. Simone soube, mas não se separou do marido, acrescentando, apenas, mais algumas doses na sua bebedeira diária. Adorável pecadora é uma excelente comédia dirigida com a habitual competência de Cukor, um diretor de mulheres, segundo se dizia em Hollywood. Marilyn está adorável para não dizer encantadora. No vídeo aqui disposto, ela aparece em seus últimos momentos acompanhada da voz de Frank Sinatra. 

15 maio 2012

O homem que não dormia

Edgar Navarro

Publicado originariamente em Terra Magazine (6 de maio 2012)

A geografia da ação de O homem que não dormia, Igatú, cidade interiorana baiana situada na Chapada Diamantina, se reparte em diversos planos, incursionando mais no tempo psicológico do que propriamente no tempo geográfico. Edgar Navarro, neste surpreendente segundo longa, faz a opção pelo realismo fantástico, e o filme é um exorcismo de seus fantasmas recônditos, seus temores internos, sua vontade de por para fora, pelo conduto cinematográfico, as aflições do artista. O realismo fantástico foge da lógica habitual, da organização racional das ideias, e, assim, O homem que não dormia é um delírio, uma alucinação, que entra pelos labirintos do universo onírico com acentos surreais. Não se pode exigir de sua estrutura narrativa um comportamento de acordo com os postulados do cinema realista, pois O homem que não dormia não o é.

Há, por assim dizer, um realismo, quando sua câmera capta as conversas na barbearia e no bar, entre outros poucos locais, que retrata com humor e verdade as falas e as maneiras do homem interiorano se comunicar. Nestas sequências, engraçadas pelos ditos, e compostas pelos tipos certos, surge o Edgar anárquico e desabusado, que analisa a condição humana à flor da pele. Os planos de uma realidade surreal estão na mansão do barão sobrenatural (interpretado pelo próprio autor com particular expressão), inclusive com a transformação da película em preto e branco.

O discurso cinematográfico navarriano é um discurso, portanto, vinculado ao fantástico. A projeção neste, no entanto, não deixa de revelar o homem em seu delírio gótico Cineasta de ex-abruptos, Navarro, depois de sua estreia no longa em Eu me lembro, ainda que mude de rumo temático, não desfigura o seu estilo bombástico. Se a obra de estreia é um filme no qual faz o seu amarcord, desligando-se de seus impropérios e devaneios superoitistas iniciais, e, mesmo, da fantasia alucinante de O Superoutro, em O homem que não dormia vomita seus filmes anteriores numa dimensão lúdica e, não seria exagero afirmar, purificadora. A exemplo do padre vivido por Bertrand Duarte que, no final, tira a roupa e, no meio da praça, realiza uma espécie de purgação. O homem que não dormia é, por isso mesmo, a purgação navarriana por meio das imagens em movimento.

Filme surpreendente pelo apuro da produção, pelo desenho de arte excepcional (o casario onde vive o Barão, cheio de mofo, traças, o bar etc), pela fotografia funcional de Hamilton Oliveira, e, principalmente, pela maneira de Navarro organizar a estrutura audiovisual, As dimensão do real se bifurcam num processo simbiótico onde, às vezes, fica difícil distinguir as fronteiras do onírico com as da realidade do tempo geográfico já referido para alcançar um tempo, por vezes, meramente psicológico. Para aqueles que o acusaram de ser redundante na exploração de certos momentos nos quais há torrentes mijatórias, não se deve esquecer que se está diante de um filme de Edgar Navarro. Os dois cegos que se masturbam, por exemplo, é uma homenagem a Luis Buñuel, que declarou certa ocasião que era o seu desejo filmar uma cena com dois cegos assim procedendo. Tudo se encaixa perfeitamente em O homem que não dormia e o relato assombroso tem a haver com a busca do realismo fantástico, como já se disse, e se o filme pode escandalizar incautos, o escândalo é necessário, principalmente numa época, como a de hoje, do vale tudo escancarado, como sempre dizia o surrealista André Breton.

O homem que não dormia, vale ressaltar, é o filme baiano mais bem realizado dos anos 2000, superando, inclusive, Eu me lembro. O filme é visceral, e, nesse particular, preenche-se como obra de arte, como a expressão de um autor que não pretende dormir na sua ação executória como realizador de imagens em movimento.  A estrutura narrativa é uma estrutura onírica, inclusive com o acréscimo de poética animação. O filme caminha para a libertação como pode fazer sugerir o acesso do padre nos momentos finais e os balões coloridos que sobem lentamente para o céu. Teria Navarro, com isso, se libertado, pelo cinema, de seus fantasmas, para um terceiro longa mais suave e mais sereno? Ou o cinema não é o bastante para sacudir o inconsciente do artista, permanecendo, nele, intactos, seus delírios?

Vou tentar desdobrar, aqui, a exegese interpretativa feita por Adalberto Meirelles em seu excelente blog do espaço virtual (acessem-no: http://pontocedecinema.blog.br/blog/para-entender-o-homem-que-nao-dormia-de-edgard-navarro-e-sua-aparente-desarticulacao-narrativa/) O filme, para Meirelles, é desenvolvido em três planos. No primeiro, o da realidade cabal, estrita, que tem a ver com o sonho e seus sonhadores. Os personagens sonham, vivem num mundo onírico, e o que sonham interfere com a realidade circunstancial na qual vivem.  Há, portanto, aqui, um postulado do surrealismo, quando a realidade exterior se bifurca com a realidade interior. Para os surrealistas, a realidade só merece consideração quando aglutina a exterioridade dela e a sua interioridade refletida nos transes, sonhos, alucinações, naquilo que se encontra escondido no inconsciente do homem ou no inconsciente coletivo. O segundo plano está afeito aos comentários sobre a realidade feitos pelos homens que frequentam a barbearia e o boteco da localidade, e, também, pelo contador de histórias que nos envolve em um mundo de sacis pererês e mulas sem cabeça, erguendo, com isso, a ponte para um terceiro plano. O plano do não-lugar fantástico, ancestral, dominado pelo poderoso barão cujo espírito paira entre aqueles sonhadores danados. Para que os sonhadores se libertem, ressalta Meirelles, eles precisam de uma prova de fogo. E ela se dará em um ritual de resgate simbólico do tesouro enterrado pelo barão.

O argumento, tirado do blog do filme, diz o seguinte: "Cinco pessoas de uma cidadezinha são acometidas pelo mesmo pesadelo: um homem sinistro e seu tesouro enterrado. Com a chegada de um peregrino, o vilarejo é arrebatado da rotina medíocre e os personagens lançados num vórtice de acontecimentos insólitos. A verdade de cada um será então trazida à luz, libertando-os do jogo perverso das hipocrisias, medos e doenças, compelindo-os a assumir as rédeas de seus destinos e reescreverem suas vidas."

A fabulação de Navarro, portanto, é muito rica. E ele soube transformá-la convincentemente nas imagens em movimento. Se a fragmentação da narrativa pode confundir e por causa do hábito dos espectadores atrelados e acostumados ao modelo de narrativa griffithiana, com começo, meio, fim, estruturado de acordo com a lei de progressão dramático, do in crescendo. O homem que não dormia, porém, não teria a presença fílmica que tem se não fosse a direção de arte de Moacyr Gramacho, a fotografia de Oliveira, e a interpretação excelente dos atores, em especial Bertrand Duarte, como o padre recolhido o filme inteiro em suas dúvidas interiores (enquanto não está a ler Monteiro Lobato) e, que, de repente, explode no final. Além de Duarte (que já virou ator internacional com Dawson - Ilha 10, de Miguel Littin), Evelin Buchegguer (a mulher), Mariana Freire (Madalena), Fernando Neves (Coronel Abílio, um ator de grande presença cênica, que trabalhou em Eu me lembro como o pai intransigente), Ramon Vane (Pra Frente Brasil), Fábio Vidal (Vado), Harildo Dêda (talvez o maior ator baiano vivo numa ponta no final, quando se aproxima do padre - aqui, uma piada típica de Navarro), Nélia Carvalho (Dona Cora, uma senhora atriz, que faz a empregada dedicada no filme anterior), Fernando Fulco (o cego velho em impressionante caracterização - usando lentes de contatos azuis, está assombroso), Bertho Filho (o cego jovem), Julio Goes, como o sacristão, entre outros, a destacar, nestes, o peregrino interpretado por Luis Paulino dos Santos, que não é outro senão o cineasta que deu início às filmagens de Barravento e que, depois, sofreu um golpe na cintura dado por Rex Schindler e Glauber Rocha, ficando, este, como o autor do filme. Mas Paulino realizou outros filmes, entre eles, Mar Corrente, desconhecido e esquecido filme brasileiro com Paulo Autran. O preparador do elenco foi o talentoso Marcondes Dourado. E a produção de Sylvia Abreu (Truque).

O homem que não dormia foge dos padrões do cinema brasileiro atual e se posiciona como uma obra singular.

13 maio 2012

"Intriga Internacional": obra de mestre


Filme-síntese de Alfred Hitchcock, obra-prima (se é possível que um autor tenha mais de uma), Intriga internacional (North by Northwest), lançado nos Estados Unidos em 17 de julho de 1959, vai completar 53 anos de existência.
Realizado entre Um corpo que cai (Vertigo, 1958) e Psicose (Psycho, 1960), North by Northwest é, a rigor, a narrativa de uma iniciação onde o herói é uma criatura de ficção - Roger Thornhill/Cary Grant - que se revolta contra um destino imposto pelas circunstâncias e luta contra uma encenação que lhe é determinada e da qual procura escapar.
Desde a abertura dos créditos, com as linhas que se cruzam, para a emergência de edifícios, um magnífico e inovador projeto de Saul Bass, com a partitura dissonante de Bernard Herrmann, a mise-en-scène se insinua, a abastecer o espectador com um trato raro das possibilidades expressivas da arte do filme.
Fonte de inspiração para a maioria dos thrillers dos anos 60 (inclusive os primeiros filmes de James Bond, o agente secreto 007, que, segundo François Truffaut, não existiriam sem o advento de North by Northwest), Intriga internacional é uma obra de gênio e sintetiza toda a primeira fase americana de Hitchcock, assim como Os 39 degraus (The thirty-nine steps,1935) pode ser visto como uma súmula de seus primeiros filmes ingleses.
Roger Thornhil é um americano típico de meia-idade que faz parte da maioria que caracteriza a sociedade de consumo estadunidense. Na opinião de Noel Simsolo, exegeta da obra hitchcockiana com tese de doutorado na Sorbonne sobre o autor, Roger não é totalmente adulto, desenvolveu-se por preguiça, não tem uma personalidade marcante, não tem alma. As forças dos espiões e, indiretamente, da polícia, fazem com que se transforme em um outro: Kaplan, bode expiatório, criação fictícia das forças do serviço secreto. Por causa dessa identificação, como observa Simsolo, Thornhill terá o seu calvário, o que o levará à união com Eve - a possibilidade de uma vida real para ele.
Na primeira parte do filme, Thornill é vítima dos outros e encontra Eve/Eva Marie Saint, agente duplo, mas não consegue perceber a realidade na qual se encontra envolvido. Intriga internacional é brilhante como idéia e como execução, porque puro cinema, pura mise-en-scène e, como narrativa de um itinerário, de um percurso, é, também, uma luta contra a encenação à qual o personagem é forçado a combatê-la. Hitchcock, com seu gênio, com a sua astúcia, com a sua inteligência, não estaria a fazer, neste filme admirável, uma reflexão sobre o próprio espetáculo cinematográfico?
A partir do meio, Roger abandona o combate impossível contra a representação (caça e a morte em questão) para se refugiar junto à polícia e aceita uma encenação tendente a salvá-lo e a fazer com que mereça Eve. No último terço do filme, Roger, ainda segundo Simsolo, recusa as consequências da representação que aceitou, e segue seu impulso, age sozinho e merece não apenas viver como ganhar Eve.
(A minha admiração por Intriga Internacional é enorme. O impacto inicial se deu quando o vi pela primeira vez nos anos 60, algum tempo depois de seu lançamento. A partir daí, anos sem o ver, com o filme apenas na memória, quando, em 1977, houve o seu relançamento em cópia nova. A constatação de sua grandeza não apenas se ratificou como aumentou muito, porque já um pouco mais afinado com a expressão cinematográfica. O tempo passou. Nos anos 80, North by Northwest é lançado em VHS, mas antes o tinha revisto em cópia espúria dublada na televisão. O seu lançamento em DVD restituiu a sua majestade. Comprei-o imediatamente e sempre o revejo. Pelo menos três vezes por ano. É quase uma terapia.)
Intriga internacional assombra o cinéfilo, e é uma lição fecunda de cinema, de "mise-en-scène". Atestado do que disseram Claude Chabrol e Erich Rohmer no livro que escreveram sobre o mestre, Le cinema selon Hitchcock (que nunca saiu em tradução no Brasil): "Em Hitchcock, o conteúdo é a forma". Hitchcock, porém, se, atualmente, pode ser considerado uma unanimidade da crítica especializada, nas décadas de 40 e 50, no entanto, não era visto como um autor, mas como um habilidoso mestre do suspense. Foi preciso esperar a sua consagração pela revista francesa Cahiers du Cinema, que lhe descobriu as potencialidades expressivas como um dos maiores autores do cinema de todos os tempos. Por todo o respeito que tenho, por exemplo, em relação ao ensaísta baiano Walter da Silveira, em seu livro - uma belíssima reflexão sobre a arte cinematográfica, Fronteiras do cinema, não soube, porém, no ensaio As vertigens de Alfred Hitchcock, compreender a sua importância e a sua essência.
Mas como escreveu Truufaut: "Porque domina os elementos de um filme e impõe idéias pessoais em todas as etapas da direção, Alfred Hitchcock possui de fato um estilo, e todos reconhecerão que é um dos três ou quatro diretores em atividade que conseguimos identificar só de assistir a poucos minutos de qualquer filme seu".
O mestre, ao perceber que o vilão não poderia estar concentrado somente na figura de James Mason, um ator de finesse insuperável, decidiu reparti-lo em três. Assim, há uma trindade na personificação da vilania: o próprio Mason (Vandamme), Martin Landau (Leonard) e um outro com cara sempre zangada e com um físico de origem germânica. No DVD que se encontra disponível, o roteirista genial Ernest Lehman comenta o filme cena por cena.
Mas, e a pedir a ajuda da exegese de Noel Simsolo (que está no livro Alfred Hitchcock, de Noel Simsolo, editado da Distribuidora Record na coleção "Grandes Cineastas", tradução de Wilson Cunha do original publicado em Paris, 1969, pela Seghers), que se veja aqui a beleza dos significados que podem ser extraídos desta obra-prima: "O tema do filme, meditação sobre a vertigem de criar e amar uma obra de arte, explode no início da segunda parte, quando Thornill dialoga com o chefe dos espiões (James Mason). Conversa sobre o papel do objeto de arte ou sobre as possibilidades da alma. Diálogo em que aceitamos Eve como uma obra de arte, meio de transição entre o sonho e a realidade, entre o corpo e o espírito, entre a passividade e o movimento, entre as trevas e a luz, a ignorância e o conhecimento. No fim do filme, o plano de um trem entrando em um túnel marca a posse sexual de Eve por Thornill e a posse da vida e do filme por esta personagem de ficção. North by Northwest, portanto, é o negativo de Vertigo.
Duas seqüências, pelo menos, são antológicas: a do teco-teco que persegue, em amplo espaço aberto, num campo de trigo, Roger Thornill, e a da fuga do casal pelos Montes Rushmore. Nesta última, há notória influência de Eisenstein, principalmente no que se refere à disposição, dentro do plano, dos volumes e da arte de significar pelo espaço cinematográfico. Hitchcock disse certa vez em uma entrevista a Le Monde logo após o lançamento de North by Nortwest em Paris: "Faço o máximo para ligar o décor à ação. Em North by Nortwest, situei a perseguição nos Montes Rushmore onde estão esculpidos os rostos dos presidentes dos Estados Unidos. Parece-me interessante mostrar a silhueta e a figura dos atores tão pequenos contra os grandes narizes e orelhas dos presidentes. Eu gostaria de ter filmado todas as cenas lá, mas não me permitiram. Pensei mesmo em fazer com que Cary Grant entrasse pelas narinas de Abraham Lincoln, mas é claro que isto era impossível".
E mais: "Minha lógica é uma lógica de mórmon. Vocês conhecem os mórmons? Quando as crianças fazem uma pergunta difícil, eles respondem: 'Vá brincar, menino'. Existe algo de mais importante do que a lógica, é a imaginação. Se pensamos primeiramente na lógica, não podemos imaginar mais nada. Frequentemente, trabalhando com meu roteirista, eu lhe dou uma idéia: 'Mas isto é possível!'. A idéia é boa, apesar de ela ir contra a lógica. A lógica deve ser jogada pela janela".