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27 agosto 2011
26 agosto 2011
Homenageado em Poções Tuna Espinheira
O dublê de profeta e cineasta Tuna Espinheira num momento em que posa para a foto quando foi homenageado na Mostra de Poções, recebendo, na ocasião, um quadro pintado por artista da terra. Dos presentes na fotografia, conheço apenas o velho Tuna, Yara, sua esposa, e José Umberto (que aparece de camisa comprida, ao fundo, e calça branca). Espinheira passou a infância em Poções, porque seu pai, juiz de direito, morou lá por muito tempo. Começou o profeta a se entusiasmar pelas imagens em movimento num velho cinema de Poções cuja sessão somente começava quando seu pai chegava, pois autoridade no local.
25 agosto 2011
30 anos sem Glauber
Publicado originariamente na revista eletrônica Terra Magazine em 8 e 16 de agosto de 2011.
Neste aziago mês de agosto, no vindouro dia 22, completa 30 anos (três décadas nada prodigiosas) da morte prematura do grande cineasta baiano Glauber Rocha. Nascido em Vitória da Conquista (interior da Bahia) em 14 de março de 1939, Glauber veio a falecer com apenas 42 anos de idade. Não vou, aqui, falar de sua obra, pois muitos já escreveram sobre ela, inclusive este que vos fala. Mas rememorar alguns encontros que tive com ele em Salvador, Bahia.
Não sou da geração de Glauber, porque vim ao mundo (sem ter sido consultado para isso) em outubro de 1950, 11 anos depois do nascimento do artista. O primeiro impacto glauberiano, por assim dizer, deu-se quando adentrei a sala do majestoso cinema Guarany (aos 14 anos) para ver Deus e o diabo na terra do sol, quando a estupefação tomou conta do adolescente que era. Considero esse filme o maior de toda a história do cinema brasileiro. No documentário O Guarany, de Cláudio Marques, há um depoimento de Orlando Senna sobre a exibição especial do filme para uma plateia de convidados. Terminada a exibição, um silêncio ensurdecedor tomou conta da sala para, minutos depois, desabar um choro convulsivo em quase todos os presentes. Deus e o diabo na terra do sol constituiu uma virada de página, um halo renovador, um sopro de esperança na construção de um cinema nacional autêntico e empenhado em suas raízes.
Colunista diário do jornal soteropolitano Tribuna da Bahia, num tempo em que não havia e-mail, levava, de dois em dois dias, as minhas colunas para entregá-las, em mãos, na redação. Corria o ano de 1976. Outubro. Glauber Rocha estava na Bahia para já ir adiantando a produção de A idade da terra. João Ubaldo Ribeiro, muito amigo de Glauber, era o redator-chefe da Tribuna. Quando ia pegar o elevador, eis que encontro Ubaldo e Glauber também a esperar o ascensor. De repente, Ubaldo me apresenta a Glauber: "Glauber, conhece o nosso crítico de cinema?" Subimos, e, na redação, Ubaldo foi para o seu aquário, enquanto Glauber, em pé, ficou a conversar comigo, a querer saber o motivo de Os condenados, de Zelito Viana, baseado em Oswald de Andrade, não ter, ainda, sido lançado em Salvador. Depois a conversa versou sobre diversos assuntos relacionados ao cinema. Glauber se queixou da crítica que cobrava dele um filme superior a Deus e o diabo. Segundo o cineasta, e aplico aqui a minha memória, um filme é como uma relação amorosa sexual: cada um tem um momento de êxtase diferente.
Enquanto conversava com Glauber na redação da Tribuna da Bahia, João Ubaldo Ribeiro saiu do seu aquário para saber se Glauber tinha comprado um tênis, porque o que usava estava muito gasto. O cineasta de Terra em transe apontou para o pé e mostrou o seu luzidio tênis ao autor de Viva o povo brasileiro. "Comprei na Baixa do Sapateiro" (um comércio, naquela época, considerado de segunda classe).
Dia seguinte, o jornalista Carlos Borges me disse que à tarde, na sala da diretoria da Tribuna, iria fazer uma entrevista com Glauber, e me convidou para participar juntamente com João Ubaldo Ribeiro. Glauber passou a tarde toda falando, e soltava o verbo por confiança em seu amigo Ubaldo. A fita cassete, depois de transcrita para a publicação no dia seguinte, foi-me dada por Borges. É um depoimento impressionante e Glauber, inclusive, faz uma antecipação da morte (da sua?). A fita, emprestei-a para um extra do DVD de Barravento, e o vento sabiamente a levou embora.
Corria o ano de 1978. Junho. Época de Copa do Mundo. Em Salvador, por todo canto da cidade, baianas, em trajes típicos, com seus tabuleiros armados nas ruas e avenidas e praças vendem acarajé, abará, bolinhos de estudante, entre outros quitutes da culinária baiana. Estava na Avenida Sete, perto da Praça da Piedade, comprando um acarajé, quando uma pessoa me pegou pelas costas. "Como vai, rapaz?" Era Glauber Rocha. Perto de onde me encontrava existia, no Largo Dois de julho, o cine Capri, que incendiou em 1980. Ele me perguntou se a sala exibidora estava aberta, porque nos horários dos jogos da Copa geralmente os cinemas fecham. Não soube responder, e ele me disse que ia começar um jogo e queria entrar numa sala para ver qualquer filme. Depois, conversando mais alguma coisa, que não me lembro, avistei sua esposa colombiana que, já adiante, chamava Glauber para sair daquele ponto de acarajé.
Bem, apesar de não ver neste depoimento nada de relevante para contar, considerei, no entanto, os meus encontros com Glauber um acontecimento extraordinário. Embora morando na Bahia, não fui ver as filmagens de A idade da terra. Há um documentário, de Roque Araújo, que tem um arquivo precioso dos bastidores das filmagens do filme, principalmente a briga de Glauber com Valentin Calderon de La Barca, diretor do Museu de Arte Sacra, onde Glauber filmou atrizes e figurantes vestidos de freiras dentro do museu. Quando soube, Calderon foi impedir a continuação da rodagem, e Glauber, enfurecido, o ameaçou.
Glauber Rocha como pessoa não era um homem arrogante, mas um temperamento agitado, que, por vezes, dava a impressão de um adolescente com a febre natural da juventude, apesar de já um indivíduo com quase quarenta anos, quando o conheci. Explosivo, algumas vezes, contudo, revela-se meio sentimental e, noutras, com aquele espírito de lutador indomável. Na conversa, ainda que atencioso, falava o tempo todo e, na sua ânsia oratória, não ouvia bem as perguntas nem deixava ninguém falar.
Um dos melhores livros sobre o autor de O dragão da maldade contra o santo guerreiro é Glauber, esse vulcão, do jornalista João Carlos Teixeira Gomes, amigo dele desde a juventude e mais conhecido como Joca, o Pena de Aço. Além da biografia, Joca faz também uma análise de seus principais filmes.
Em 1986, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, coordenei um seminário que se chamou "5 anos sem Glauber", com a participação de Luiz Carlos Maciel, Joca, Dona Lúcia Rocha, Fernando da Rocha Peres, Racquel Gerber, Jommard Muniz de Britto, Fernando Rocha, Antonio Guerra, entre outros. Naquela época, achava-se que o Brasil estava há muito tempo - vejam só: apenas 5 anos - sem a presença daquele que gostava de jogar vatapá no ventilador. Glauber Rocha, sobre ser um artista como realizador cinematográfico, era, antes de tudo, um agitador, um animador cultural. Que faz muita falta ao Brasil de hoje.
Corria o ano de 1968. A Universidade Federal da Bahia, através de seu departamento cultural, comandado, nesta época, pelo espanhol Valentim Calderón de la Barca, reitorado de Roberto Santos, atendendo a um pedido de Walter da Silveira, implantou um Curso Livre de Cinema, que seria realizado durante o transcorrer de todo o ano citado, duas noites por semana. Guido Araújo, que tinha chegado há pouco da Tchecoslováquia, onde passou mais de dez anos, foi convidado por Walter da Silveira para repartir, com ele, as atividades curriculares. E ficou assim estabelecido: às terças, Walter ministrava História e Estética do Cinema, e às quintas, Guido, com Teoria e Prática do Cinema. O Curso Livre de Cinema foi um acontecimento histórico, porque nunca mais se repetiu, ainda que passados já 43 anos de sua implantação. É verdade que Guido Araújo continuou com o curso durante a primeira metade da década de 70, mas sem a dimensão do de 68.
A alusão ao Curso Livre de Cinema, que faço aqui, tem ligação com Glauber Rocha, nessa segunda parte do artigo que registro trigésimo ano do desaparecimento do vulcão glauberiano. É que, em maio de 1968, precisamente, foi a primeira vez que vi, pessoalmente, Glauber Rocha, porque nos encontros posteriores houve um conhecimento mais pessoal. Estudante ainda secundário, fazia o Clássico no Colégio Estadual da Bahia (o famoso Central, onde Glauber também estudou e realizou, com grande êxito e enorme repercussão, As Jogralescas, teatralização dramática de poesias célebres). Vale dizer que para o ingresso no Curso Livre de Cinema houve uma seleção não restrita aos universitários, mas aberta a quem quisesse participar, contando que passasse no teste.
Com meus 18 anos incompletos, fui aprovado e fiz o curso, obtendo, no seu final, um diploma com o timbre da Universidade Federal da Bahia e assinado pelo reitor.
Em maio, numa de suas aulas, Walter da Silveira disse que na seguinte teria uma grande surpresa. E a surpresa foi ter levado Glauber Rocha para uma conversa sobre o cinema em geral. Lembro-me, como se fosse hoje, desse momento especial. Por tímido, fiquei apenas ouvindo o grande cineasta. Glauber estava, nesta época, filmando na cidade baiana de Milagres, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (chamado no exterior de Antonio das Mortes). Aproveitando sua estadia em Salvador, Walter o chamou. Vestia um casaco de couro marrom, e sua palestra levou quase duas horas. De repente, a cada afirmação, olhava para Dr. Walter (como ele o chamava) e perguntava: "Não é isso, Dr. Walter?" Os alunos fizeram um silêncio sepulcral enquanto Glauber falava.
Pela primeira vez, o cineasta fazia um filme colorido. E a fotografia era do mestre Affonso Beato, que depois viria a trabalhar com nomes importantes do cinema internacional. Queixou-se do governo do Estado (na época a Bahia era governada por Luiz Vianna Filho), que negou o pedido de uma simples Kombi para o transporte do material. Em 1968, o nome de Glauber Rocha já estava consolidado como um grande cineasta. Duas de suas obras-primas, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967) já tinham sido dadas à luz.
Glauber Rocha tinha grande respeito por Walter da Silveira. Considerava-o seu mestre. No dia seguinte à sua morte, ocorrida em novembro de 1970, aos 55 anos de idade, Glauber publicou no já extinto Jornal da Bahia um artigo sobre seu mentor cinematográfico com o título Cinema Liceu, domingo de manhã, onde conta vários episódios entre ele e Walter. Um deles, já contei aqui, acho, foi um tremendo esporro que recebeu do mestre, quando, numa exibição de O encouraçado Potemkin, conversava alto com o amigo do lado. Walter mandou que a sessão se interrompesse e deu o esporro em Glauber. A partir daí, conta este, nunca mais conversou em sala de exibição.
Glauber começou no jornalismo como repórter policial no Jornal da Bahia, matutino que, na segunda metade dos anos 50, provocou uma renovação na imprensa baiana com suas reportagens arrojadas, e também porque reunia os talentos da soterópolis. Jornal jovem com gente jovem e com vontade de mudar o mundo. Os outros jornais de Salvador se destacavam pela mesmice e pelos acentos conservadores, principalmente A Tarde, fundado por Simões Filho, e que tinha sua redação comandada por Jorge Calmon. Glauber, pouco tempo depois da reportagem policial, ficou como titular de uma coluna diária de cinema, que abandonou quando foi filmar, em 1959, Barravento, seu primeiro longa metragem, substituindo Luis Paulino dos Santos. As suas únicas experiências, antes desse filme, estão nos curtas O pátio e Cruz na praça (cujo negativo desapareceu). Há quem diga que Paulino foi retirado da direção por um golpe dado por Glauber com o apoio logístico do produtor do filme, Rex Schindler. Paulino era mais contemplativo, queria fazer um filme sobre as práticas do candomblé. Glauber queria uma obra revolucionária, que mostrasse todo misticismo como um grande obstáculo para a revolução e a revolta popular. O roteiro foi reescrito com José Telles Magalhães.
Barravento, realizado na Praia de Buraquinho, em Salvador, em 1959, somente foi lançado em 1962. Os fragmentos que Glauber tinha em mãos estavam tão confusos que ele os levou a Nelson Pereira dos Santos para ver se o autor de Vidas secas dava alguma solução de continuidade. Embora Glauber não tenha dito, há influências patentes em Barravento dos filmes de Alexandre Robatto, Filho, o pioneiro do cinema baiano, principalmente de seus curtas Xaréu (1954) e Entre o mar e o tendal (1953), ambos sobre a pesca de xaréu nas praias de Salvador, que o progresso foi, paulatinamente, afastando e a destruindo. Mas, para concluir, e voltando ao Curso Livre de Cinema, foi nele que se formou toda uma geração de cineastas ou pessoas ligadas ao cinema: André Luis de Oliveira (Meteorango Kid, o herói intergalático, A lenda de Ubirajara...), José Umberto (Voo interrompido, O anjo negro, Revoada...), José Walter Pinto Lima (Nós, por exemplo, Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão), José Frazão (Akpalô, O mistério do Colégio Brasil...), Geraldo Machado, Jairo Faria Goes, Miguel Bartilotti, Ney Negrão, entre muitos outros que prefiro não citar para não cair no golpe da memória apressada. E pela primeira vez, o Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia foi aberto para a exibição de filmes.
24 agosto 2011
Cinema e circunstância
Para os que nasceram na era do vídeo, e, agora, do disquinho mágico, nada muito surpreendente. Mas para aqueles, como eu, que nasceram em priscas eras, em meados do século passado (1950, para ser mais preciso), com o tempo passando rápido - ó tempo suspende o teu vôo!, implacável, o advento do VHS foi uma surpresa, e a do DVD, com tantos dreyers e bergmans, minnelis e langs, hawks e fellinis, espalhados por aí, quase um assombro. Alguém já disse que foi pelo assombro que o homem começou a filosofar, mas, isto, outra história. Acontece que, antigamente, as imagens em movimento somente eram possíveis de ser contempladas no escurinho das salas exibidoras, havendo, para isso, de se pagar um ingresso. A televisão, naquela época, era muito ruim em termos de imagem. Assim, havia duas características no que diz respeito à psicologia da recepção: a inacessibilidade e a impossibilidade de o espectador intervir na temporalidade. Na primeira, quando dentro do cinema, e sala enorme, com quase dois mil lugares, verdadeiros palácios, a imagem que se via na tela era algo mágico, inacessível. Lembro-me que havia um senhor que vendia fotogramas de filmes na Praça da Piedade (aqui em Salvador), e que também oferecia para compra uma lata que, devidamente furada, continha, em uma de suas extremidades, uma lente de óculos que permitia ver os fotogramas com mais nitidez do que a olho nu.
Se um determinado filme era exibido e, por acaso, estivesse doente ou viajando, retirado de cartaz, podia perdê-lo para sempre, excetuando-se os grandes sucessos que sempre eram recolocados. E, na segunda característica, a impossibilidade de intervenção na temporalidade. Projetado o filme, este se desenrolava na tela - ou no écran, como se dizia então, e ninguém podia pará-lo, retrocedê-lo, avançá-lo, salvo se entrasse na cabine de projeção e, revólver em punho, ameaçasse o operador. Mas a inacessibilidade e a temporalidade se tornaram favas contadas com o surgimento do VHS e do DVD. Há, inclusive, creio, uma perda da aura cinematográfica. Se os disquinhos funcionam como o resgate do cinema, por outro lado, no entanto, perdeu-se a magia do espetáculo, visto em comunhão numa platéia. O indivíduo hoje já nasce vendo imagens em movimento e, por isso, elas se tornaram vulgares.
Quando me contaram que, nos Estados Unidos, inventaram um aparelho pelo qual se podia ver filmes, que ficavam dentro de uma caixinha, não acreditei. Era o vídeo que então estava inventado e restrito ao território de Tio Sam. Precisei, como São Thomé, ver para crer, o que aconteceu em torno da metade dos anos 80, quando comprei o meu primeiro aparelho de VHS, um Sharp, que me deu muito trabalho de sintonizar. E as cópias eram péssimas. Precisou-se esperar que o DVD surgisse para que o cinema recebesse uma punhalada nas costas (na região pulmonar). Mas vou contar uma história.
Corria o ano de 1973. Estava no Rio de Janeiro a passar as férias de julho. O jornal da época era o Jornal do Brasil, com seu excelente Caderno B. Neste, tomei conhecimento que Ladrões de bicicleta ia ser exibido na Cinemateca do Museu de Arte Moderna numa única sessão pela tarde. Conhecia muitos filmes, nesta ocasião pré-vídeo, de ouvi dizer e de leitura, alguns importantes com muitas informações. Era o caso de Ladri di biciclette, de Vittorio De Sica, que nunca tinha visto por falta de oportunidade e, também, porque nunca foi exibido em Salvador durante o meu itinerário existencial (depois passou algumas vezes). Assim, fiquei a postos, esperando o horário, com certa expectativa, expectativa, aliás, que não tenho mais para quase nada. Chovia fino. Entrei na sala da saudosa Cinemateca. Mas, quando saí, um toró se abateu sobre a cidade, que ficou completamente engarrafada. Difícil pegar um táxi. Depois de algum padecimento embaixo da marquise do museu, resolvi ir andando do Flamengo, onde fica esta, até Laranjeiras, onde estava hospedado. Cheguei encharcado e, no outro dia, com febre alta, ameaçado de pneumonia. Mas estava feliz por ter visto Ladri di biciclette. Atualmente, tenho-o em DVD, que fica guardado, parado, quando não o estou a exibi-lo em alguma oficina ou nas aulas da faculdade onde ensino.
Não seria mais possível um sacrifício tal para ver um filme. Tenho um amigo, por exemplo, que ia sempre à Paris para se meter na Cinematheque Française e ficar o dia todo vendo obras clássicas. Hoje tem um home theater chez toi e há anos que não viaja. Viajava somente para ver filmes.
O cinema não mais me emociona como antigamente, esta a verdade, se quiser ser sincero. Gosto mais de ler os grandes romances do século XIX (Machado, Flaubert, Balzac, Jonathan Swift, Stendhal, et caterva) do que está a ver filmes, embora os veja muito, mas muito menos do que antigamente. Estou meio nostálgico, talvez ultrapassado, e gosto de ler o que já li e o que já vi. Despertou-me o desejo de ir ao Rio de Janeiro somente para ver a retrospectiva de Vincente Minnelli (A Bahia, como de hábito, fora de campo se sempre de escanteio), este, sim, ainda capaz de me tirar do ceticismo, da angústia do tempo, e do presente. Afinal de contas, sou também matéria de memória.
E, a copiar palavras de Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas), ponho aqui, tirando dele, o que me parece ser a chamada contemporaneidade (detesto este termo): vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais.
Mas, de repente, o cinema ressuscita: A árvore da vida, Melancolia, Meia noite em Paris, Cópia fiel, Tetro...
21 agosto 2011
Robert Altman: humor ácido e requintado
Em inícios dos anos 70, a comédia americana - que teve seu apogeu nos anos 30, 40 e 50, a Idade de Ouro de Hollywood - dava mostras de esgotamento, principalmente por causa da aposentadoria de alguns de seus próceres, e os que ainda a continuavam não conseguiam renová-la. É neste despertar dos 70 que aparece no panorama internacional uma comédia diferente, satírica, ácida, irreverente: "M.A.S.H.", de Robert Altman. Localizada a ação na Guerra da Coréia, tem uma clara referência à do Vietnã que então se encontra no auge e no clamor dos protestos da sociedade americana. Conta a película a vida de soldados no front bélico, onde dois cirurgiões (Elliot Gould e Donald Sutherland) fazem o diabo para costurar os feridos. Tudo feito na base da anarquia criativa, com um dinamismo estrutural, rapidez de diálogos, que muitos críticos consideram que, neste filme, há uma renovação na comediografia cinematográfica. Sally Kellerman se revela como a oficial séria e ríspida que tem sua cortina devassada quando toma banho numa sequência memorável.
Altman, por "M.A.S.H.", e apenas por este, se torna, logo, um "cult" de uma hora para outra, ainda que já com uma filmografia cujo início se dá muito antes, em 1957, com "Os Delinqüentes" ("The Delinquents") e, neste mesmo ano, "The James Dean Story", um documentário sobre o mito que há poucos anos tinha sido vitima de um acidente automobilístico. Os produtores não gostam de "Os Delinqüentes" e, quanto ao documentário, não o consideram palatável comercialmente. De pires na mão, Altman procura um produtor - naquela época não se usava a famigerada captação de recursos - e, desempregado, custa a arranjar, e mesmo assim na televisão, um emprego como diretor de fitinhas sem importância - que os críticos franceses, dando uma busca nos arquivos televisivos, conseguem encontrar, nestas fitinhas, o "touch altmaniano".
Dez anos se passam até que Altman encontra um produtor com mania de risco, de investir em projetos condenados. E realiza "No Assombroso Mundo da Lua" ("Countdown", 1968), ficção-científica que rende alguns trocados na bilheteria e faz os produtores acreditarem que Altman "era diferente" e, assim, deviam lhe dar uma segunda chance. Esta foi um sucesso, ainda que relativo de público, mas entusiasmado da crítica: "Uma Mulher Diferente" ("That Cold Day in the Park", 1969), um thriller de extremado rigor sobre a solidão de uma mulher (Sandy Dennis) numa grande cidade (Nova York). Filme marcante, com uma mise-en-scène baseada nos acordes musicais e no silêncio. A seguir, o estrondo de "M.A.S.H."
Espera o diretor quarenta e cinco anos para se ver reconhecido como cineasta (nasce em 1925, morre em 2006, aos 81). Após a sátira devastadora sobre o Vietnã travestido de Coréia, os produtores começam a lhe oferecer projetos. Altman, como sempre muito exigente e muito à margem do "sistema" hollywoodiano, procura construir uma carreira de autor. Tem tanta presença a sua assinatura que mesmo quando pega um roteiro alheio, e do qual não gosta, o resultado é sempre um filme de Robert Altman. O que constrói o cineasta após "M.A.S.H."? A resposta vem no mesmo ano: "Voar é com os pássaros" ("Brewster McCloud"), com Bud Cort - o menino que contracena com Ruth Gordon em "Ensina-me a Viver". Fracasso. Humor sofisticado demais. Um garoto tem o desejo de voar como Ícaro. E parte para a ação num aparelho de madeira complicado. Apesar de rejeitado pelo público, é um grande filme, difícil, é verdade, pois de configuração diferente dos padrões de Hollywood. Em seguida, "Quando os Homens São Homens" ("Mc Cabe and Mrs Miller", 1971), com Warren Beatty e Julie Christie, um anti-western, pois sem a essência do gênero, o conflito em movimento. Altman opta pela inação, e, ainda por cima, numa paisagem cheia de neve. Outro fracasso. Mas a crítica recebe os filmes de braços abertos. E os produtores arrancam os cabelos de raiva.
Mostra ser um cineasta temperamental, difícil, incapaz de se dobrar às solicitações de uma platéia convencional. Os filmes seguintes dão ao realizador um passaporte para a rua da amargura. "Imagens" ("Images", 1972), reavaliação do terror como componente do "impulso cinemático", com Suzannah York, e após este, um estudo crítico de gêneros, desmistificando-os como fórmulas: o filme noir em "Um perigoso adeus" ("The long goodbye", 1973), com Elliot Gould, e o thriller com a tônica no gangsterismo em "Renegados até a última rajada" ("Thieves like us", 1974), com Keith Carradine. Desse modo, a revisão de gêneros, que a chamada pós-modernidade se apodera, tem em Altman um precursor.
Um estilo que se caracteriza pela preocupação em desmontar a lógica que precede o discurso cinematográfico, subvertendo, sempre, o diapasão de seu itinerário. A grande arma de Altman é o humor, ácido, por vezes cruel, mas sempre refinado, requintado, um humor para o sorriso interior, mas, quase nunca, para a explosão de gargalhadas - exceto em "M.A.S.H." Sua linguagem se concentra num "texto" e num "subtexto", em tons e subtons. Altman, definitivamente, não pode ser admirado pela horda selvagem multiplexiana, pela patuléia que comanda o espetáculo de horror - que é ir a uma "matinê" numa das salas dos complexos dominantes.
Por causa dos apupos da crítica, um produtor, que não tem medo de negócios arriscados, banca Altman. E, ainda em 1974, faz "Jogando com a sorte" ("Califórnia split"), com Elliot Gould, ator preferido na época, e George Segall, uma viagem altmaniana sobre os deserdados da sorte e a "feérie" da jogatina. Mas até o produtor, que lhe banca os filmes, quis dar o fora, pois o dinheiro investido não retorna a contento. Mas Altman arranjou produção e, num golpe de sorte, acerta em "Nashville" (1976), que muitos consideram sua obra-prima. Retrato da América, o filme se concentra num festival de música country.
Segue outro anti-western, com Paul Newman: "Oeste Selvagem" ("Buffalo Bill and the indians or Sittings Bull's history lesson", 1976), celebrado em Berlim. O sucesso de "Nashville" compensa as perdas internacionais. "Sittings Bull" é outra desmistificação, desta vez do heroísmo de Buffalo Bill, tão cultuado nos Estados Unidos, mostrando-o como um homem de caráter duvidoso e comportamento ambíguo. A paisagem do oeste, selvagem, como diz o título original, e a ausência total de uma "clicheria" não contentam os amantes do gênero.
Um estudo da alma feminina feita com sensibilidade e emoção neste filme que considero um de meus preferidos do realizador de "Assassinato em Godsford Park". Janice Rule, Sissy Spacek e Shelley Duvall estão inexcedíveis como as personagens de "Três mulheres" ("Three Women", 1977), criaturas atormentadas pela angústia do existir e que se debatem no inferno de suas existências. Obra rara e severa, mas difícil de encontrar para uma revisão.
O espaço chegando ao fim e eu, aqui, ainda com Altman na década de 70. Que fazer? É dizer logo que "Cerimônia de casamento" ("A Wedding", 1978), afresco notável sobre os comportamentos hipócritas numa festa de casamento burguesa, é um sucesso. Elenco fabuloso, que inclui Vittorio Gassman e Lillian Gish e Carol Burnett. Nunca a burguesia é tão bem radiografada quanto neste "A Wedding". Grande filme, mas também assinala o começo de sua decadência nos anos 80 cuja reabilitação somente se dá em 1992 com "O Jogador" ("The Player"). Se em 1970 tem início o culto a Altman, 1980 assinala a sua descida ao inferno com "Popeye", com Robin Williams e a magricela Shelley Duvall como Olívia. Os produtores são, literalmente, enganados. Ao invés de um filme para agradar as platéias populares, Altman prefere a caricatura, a desmistificação - como sempre o olhar irônico, o riso que se multifaceta nas entrelinhas. O público quer gargalhar com Williams no papel de Popeye e se depara, sem entender nada, a piada oculta.
Antes deste elabora um filme que particularmente não gosto, "Quinteto" ("Quintet", 1979), com Paul Newman, novamente, e também trazendo de volta Gassman - cujo desempenho em "A Wedding" deixa Altman entusiasmado. "Um Casal Perfeito" ("A Perfect Couple") é simpático, mas sem o brilhantismo habitual. E com o afundamento de "Popeye" as portas se cerram para o realizador. Realiza o que quer, no entanto, nos anos 70, e somente por esta safra o título de grande cineasta já lhe poderia ser dado.
Enfraquecido, sem crédito, Robert Altman desaparece de circulação. Nenhum filme seu estréia mais no circuito. Aos poucos, na década de 80, vai sendo substituído no culto por outros realizadores, como Wim Wenders. A maior parte dos filmes que o diretor de "Godsford Park" faz nesta década nada prodigiosa para ele não foi distribuída no Brasil, como, por exemplo, "Come back to the Five and dime, Jimmy Dean", com Karen Black - que fim levou essa atriz? e Cher, e "Além da terapia" ("Beyond therapy", 1986), com Glenda Jackson e Tom Conti, sátira à psicanálise, ou "Fool for love" (1985), com Sam Shepard e Kim Bassinger. O único Altmam com alguma notoriedade nos 80 é "O exército inútil" ("Streamers", 1983), por causa de prêmio internacional dado a todo o elenco na categoria "melhor ator". Baseado em peca teatral, segue ao pé da letra as torrentes verbais, constituindo-se quase que num teatro filmado desenvolvido em planos-sequências e movimentos de câmera inteligentemente manipulados.
Finalmente, os anos 90 lhe abrem novamente as portas: "O Jogador", "Short Cuts" (este, uma obra-prima), "Prêt À Porter", "Kansas City", "A Fortuna de Cookie", o admirável "O Assassinato em Godsford Park", e "A última noite", seu canto de cisne. A sua narrativa polifônica marca época e influencia uma geração de cineastas, principalmente a encontrada em "Nashville" e "Short Cuts".
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