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30 junho 2011

Revista CineCachoeira e o rosto do cinema brasileiro

A nova edição da revista eletrônica CineCachoeira, editada pelo pessoal da Universidade Federal do Recôncavo, do seu curso de cinema, já se encontra no ar. O grande homenageado é o ator baiano Antonio Pitanga, que, segundo os editores, é o rosto do cinema brasileiro. Pitanga, que começou sua carreira nos filmes baianos dos anos 60, do chamado Ciclo Baiano de Cinema, dá uma entrevista exclusiva e reveladora. Ele é também retratado com a competência peculiar que distingue os textos da Professora Maria do Socorro Carvalho em Três vezes Pitanga no Cinema Baiano. Há muito o que se ler na revista, que se caracteriza pelo rigor de suas pesquisas e pelas análises abrangentes. Olney São Paulo também é objeto de uma pesquisa, além de um texto sobre O homoerotismo segundo Glauber, de Guilherme Sarmiento, A cor no cinema e Cidade Baixa, de Emerson Dias etc. O melhor a fazer é acessar logo a revista para ter uma leitura substancial. Recomendo-a sem hesitação: http://www.ufrb.edu.br/cinecachoeira/

Fellini Amarcord

Filme-síntese de Fellini, Amarcord é uma festa, súmula de sua estilística como realizador de obras cinematográficas. Realizado em 1973, mas somente lançado no Brasil dois anos depois, em 1975, nunca mais o autor de La dolce vita alcançaria o mesmo nível, a mesma altura como criador. Amarcord é o ponto máximo na carreira de Fellini. Se não o melhor, mas o mais querido, embora, a rigor, seu melhor filme, para mim, seja Oito e meio (Otto e mezzo). Há, no itinerário felliniano pós-Amarcord, uma redundância de suas constantes temáticas e estilísticas. Mas faz parte de um autor completo de obras cinematográficas como ele. Há quem disse que, na verdade, um verdadeiro autor tem, na sua filmografia, apenas uma obra, sendo as singulares apenas variações sobre um mesmo tema. Na trajetória desse artista único, a primeira fase é a mais despojada -mas, nem por isso, menos bela (Io sceicco biano, I vitelloni, La strada, Le notti di Cabiria, Il bidone). A página da virada, por assim dizer, é La dolce vita (1960), discurso moral sobre a sociedade de sua época, que prenunciaria a decadência contemporânea. E Oito e meio a explosão da estrutura narrativa em função de um tempo mais psicológico do que cronológico. Creio que o cinema não foi mais o mesmo depois de Oito e meio.

29 junho 2011

"Redenção", de Roberto Pires, primeiro longa baiano


Continuando a homenagem pela passagem dos 10 anos do falecimento de Roberto Pires, o comentário de hoje é sobre Redenção.

Primeiro longa metragem realizado na Bahia, Redenção, de Roberto Pires, cuja cópia foi restaurada e exibida no Espaço Unibanco Glauber Rocha ano passado, teve uma gestação difícil, pois os trabalhos de filmagem, iniciados em 1956, somente se concluíram em 1958, para, em seguida, entrar no processo de pós-produção, para ser lançado em noite de gala, de black-tie, como na época se exigia, em abril de 1959, no majestoso cinema Guarany.

A única cópia existente do filme, depositada no DIMAS, departamento de audiovisual da Fundação Cultural do Estado da Bahia, tinha uma ou duas latas com o celulóide desintegrado pela ferrugem, o que significa dizer, queRedenção não podia mais ser recuperada. Mas, de repente, e não mais que de repente, como gostava de dizer Vinicius de Morais, um exibidor do Recife comunica a Petrus Pires, filho de Roberto e principal coordenador do resgate de sua memória, que tem uma cópia de Redenção em 16 mm. O filme estava salvo, mas seria necessário um grande restauro, o que foi feito.

Redenção, num gesto pioneiro, por insistência de Roberto Pires, fora realizado com uma lente anamórfica, CinemaScope, que Pires fabricou na ótica do pai, porque, naquela época, antes das filmagens, ficara estupefato com a extensão da tela de O manto sagrado (The robe), o primeiro filme da indústria. cinematográfica em CinemaScope. Ele e Oscar Santana foram à cabine de projeção do Guarany para conseguir um fotograma do filme e, a partir daí, Pires inventou uma lente anamórfica à qual chamou Igluscope em homenagem ao nome de sua empresa (Iglu Filmes). Entre os significados da palavra redenção (segundo Aurélio): ajuda ou recurso capaz de livrar ou salvar alguém de situação aflitiva ou perigosa

Se Redenção é uma tentativa um tanto tosca de thriller, tem, porém, a dimensão do pioneirismo. É a partir do filme que vários cineastas baianos ficaram convencidos de que o fazer cinema na Bahia podia ser uma realidade. Inclusive Glauber Rocha, que, durante as filmagens, fizera algumas críticas pelos jornais e pelas emissoras de rádio, considerando a temática superficial de ouvir dizer, quando Redenção bateu na tela do Guarany (foi lançado simultaneamente com o cinema Tupy), e constatando a afluência impressionante do público, Glauber exultou. Redenção, portanto, funcionou como uma espécie de mola propulsora para o surgimento do Ciclo Baiano de Cinema.

A dificuldade de se encontrar uma sinopse do filme se estendeu por muitas décadas para os pesquisadores do cinema baiano que não tiveram a oportunidade de ver Redenção na época de seu lançamento. Assim, e considerando esse aspecto, damos aqui um apanhado geral de sua história, mas alertando aos leitores que há spoiler. Quem não quiser saber, na esperança de ver ainda o filme, que pule o próximo parágrafo.

Dois amigos (Geraldo D'El Rey e Braga Neto), com problemas financeiros, recebem a estranha visita de um homem portador de um grande chapéu preto, cujo automóvel, no qual estava a viajar, quebrara no meio do caminho. Ele solicita o favor de passar a noite na casa deles. No outro dia, os dois partem para a cidade numa caminhonete, deixando o visitante na casa. Numa mesa de jogo, um deles lê a notícia num jornal que há, na cidade, um louco estuprador de mulheres. Apesar do desinteresse de Geraldo, Braga Neto se preocupa. Geraldo vai namorar numa bela praia deserta com Maria Caldas, e lhe pede um empréstimo. Que ela consegue e, querendo logo dar a notícia alvissareira ao namorado, vai sozinha à casa da praia, onde se encontra o sinistro personagem. Ao chegar, não encontra os dois, mas, apenas, o estranho visitante, que tenta estrangulá-la, mas sem êxito, porque um tiro o atinge pelas costas. Os dois amigos, desconfiados, decidem voltar da cidade. E há, para quem pegar o assassino, um prêmio lotérico. Tiro que é efetuado por um dos dois companheiros, mas logo após o homicida estuprador ser atingido, um corte nos leva ao asfalto, quando o corpo é carregado para ser deixado na praia.  A tentativa de fazer suspense é rala: quem teria matado o visitante: Braga Neto ou Geraldo D'El Rey? O primeiro começa a ter pesadelos e crise de consciência, sentindo-se culpado da ação. Os dois brigam. Há também um personagem, o frentista do posto de gasolina, onde sempre eles colocavam gasolina. Este frentista, na noite em que o corpo é levado para a praia, vê a caminhonete passar. O que não estava no programa da dupla, no entanto, acontece: o corpo é achado e, com ele, a chave da casa dos dois. Entra em cena Milton Gaúcho, como o comissário de polícia, que, avisado pelo frentista, vai até a casa de Braga Neto e Geraldo D'El Rey, e, após uma negativa, os dois confessam, mas são liberados, porque, na verdade, agiram em defesa da mulher. Mas, para azar da dupla, o prêmio vai para o frentista. O último plano mostra Maria Caldas chegando à casa praieira. Desce do carro. E uma tomada mostra os três na varanda. Caldas beija Geraldo e entram, enquanto Braga permanece pensativo, e ainda, talvez, amargurado.

Há defeitos estruturais na narrativa de Redenção: a ausência de um timing mais dinâmico, de um, por assim dizer, dínamo propulsor da narrativa, apesar do cuidado de Roberto Pires na composição dos enquadramentos e nos cortes dramáticos.  O gosto de Roberto Pires pelo gênero policial está, aqui, bem explícito. Trata-se, na verdade, de um exercício de thriller, e, por conseqüência, de cinema. Realizado nos primórdios do Cinema Novo, quando as trombetas do movimento já se anunciavam retumbantes – pelo menos do ponto de vista de escritos e manifestos, Redenção não pode ser considerada uma obra cinemanovista. A visão crítica deve ser feita dentro dos parâmetros de um filme de gênero. Não se trata de uma obra de propósitos significantes, com firulas simbólicas para a interpretação de ensaístas dos sub-textos. Pires mostra ser uma promessa de bom artesão, que sabe contar uma história, desenvolver uma fábula dentro, apenas, de seus limites fabulísticos. Redenção conseguiu ser filmado e ter sua afirmação como espetáculo cinematográfico bem recebido pelo público baiano por ser o primeiro filme feito na Bahia, quando se pensava que seria impossível se desenvolver uma obra cinematográfica numa cidade sem nenhum equipamento, com os negativos sendo levados de avião para que, depois de revelados, pudessem ser apreciados para dar continuidade ao projeto. Neste caso, Glauber Rocha tem razão, como escreve em seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro: “Se o cinema baiano não existisse, Roberto Pires o teria inventado.”

O plano inicial apresenta Roberto Pires como um motorista que leva um estranho passageiro, o suposto psicopata, que usa um enorme chapéu preto. Mas o carro enguiça, levando o passageiro a seguir a pé a sua viagem. Neste momento, a câmera avança em travelling pela estrada e, sob a partitura de Gnatalli, surgem os créditos. Na mesa de jogo, quando se tem notícia de um psicopata à solta na cidade, vários homens se reúnem ao redor dela. Um deles, ainda muito jovem, Oscar Santana. Em outro momento, Roberto Pires tenta experimentar a passagem do tempo, utilizando-se de um ligeiro travelling sobre a mesa em que Geraldo toma café à noite. Uma fusão faz com que o plano seguinte se abra com a câmera em travelling inverso, quando a luz do dia se estabelece na casa. Os rudimentos da linguagem cinematográfica são acionados em função da eficácia dramática, mas a falta de recursos, e, também, a falta de experiência, não conseguem fazer de Redenção um filme vibrante. A sua visão, porém, 52 anos depois de realizado dá uma sensação de prazer pela constatação de uma simpática tentativa de se fazer um filme de longa metragem a partir praticamente do nada.

Segundo os créditos de abertura de Redenção, o Conselho de Administração do filme foi constituído por Élio Moreno Lima, Roberto Pires e Oscar Santana. Os recursos para a produção vieram de Élio Moreno Lima, de Ilhéus, que aceitou a empreitada temerária de fazer um filme de longa metragem na Bahia. A empresa produtora, Iglu Filmes, tem esse nome por causa de um bar que existia na Praça da Sé, onde os principais responsáveis se reuniam. O dono do estabelecimento, encantado com as conversas, que a ele pareciam utópicas, fez amizade com o grupo. Hélio Silva, que já tinha iluminado o clássico Rio quarenta graus, de Nelson Pereira dos Santos, semente do Cinema Novo, é o iluminador de Redenção, mas o cameraram, Oscar Santana, que teria, a seguir, uma carreira exitosa, como empresário cinematográfico e cineasta. A partitura musical foi solicitada ao maestro Alexandre Gnatalli – para se ter uma idéia do cuidado com a música funcionando com criação da atmosfera. A maioria dos filmes baianos posteriores é musicado pelo grande Remo Usai. A montagem é de Mario del Rio.

No elenco, Geraldo H. D’El Rey (depois tirou o H), o Manoel Vaqueiro de Deus e o diabo na terra do sol, que Pires e Santana conheceram vendendo camisas e roupas masculinas na loja Milisan do Edifício Sulacap; Braga Neto (que virou produtor de alguns filmes baianos e tem, inacabado, um longa:O rio das almas perdidas); Maria Caldas (que abandonou o cinema); Fred Jr, Milton Gaúcho (ator emblemático do cinema baiano, tendo participado de quase todos os seus filmes, que faz, aqui, o comissário de polícia); Alberto Baretto, Norman F. Moura, Jackson O. Lemos, Raimundo Andrade, José de Matos, Costa Junior, Rodi Luchesi, Jorge Cravo, Orlando Rego (funcionário do Banco do Brasil e apaixonado por cinema, única pessoa que tinha um aparelho de revelação de negativos); Oscar Santana, Leonor de Barros, Elio Moreno Lima, Waldemar Brito, Roberto Pires, Kulaus-Kulaus, Jorge Ernesto. Tempo de projeção: 61 minutos.

28 junho 2011

"Tocaia no asfalto", de Roberto Pires


Continuando a homenagem a Roberto Pires pela passagem dos 10 anos de sua morte, uma comentário sobre um de seus melhores trabalhos: Tocaia no asfalto.
A cópia de Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, que se encontrava em vias de extinção no seu negativo original, conseguiu ser totalmente restaurada. É um feito e tanto para a preservação da memória do cinema baiano. Considero este o melhor filme, até hoje, entre as mais de duas dezenas de longas metragens realizados na Bahia. Depois dele, na minha opinião, vem A grande feira, do mesmo Pires, que foi homenageado no ano em curso pela passagem dos 50 anos de seu primeiro longa e primeiro do cinema baiano: Redenção, de 1959.
Thriller genuinamente baiano realizado em 1962, que aborda o relacionamento dos políticos com a criminalidade e as idiossincrasias da personalidade de um pistoleiro de aluguel, Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, produzido logo após A grande feira, é um filme que pode ser visto em dois planos: no plano de sua narrativa e no plano de sua fábula (história). No primeiro, destaca-se sobremaneira a artesania de Pires, o domínio pelo qual articula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Seu trabalho, nesse particular, é de ourivesaria e, aqui, em Tocaia no asfalto, tem-se um exemplo onde a narrativa suplanta a fábula, ainda que os dois planos sempre devam ser observados em processo de simbiose.
Realizado em plena efervescência do chamado 'Ciclo Baiano de Cinema' - 1959-1963, Tocaia no asfalto, atesta o seu vigor e a sua atualidade temática. Duas seqüências podem ser consideradas antológicas e das melhores do cinema brasileiro: a tentativa de assassinato frustrada na Igreja de São Francisco, e a do cemitério do Campo Santo. Pires demonstra o seu apuro, o seu sentido de cinema, o timing raro, um faro, por assim dizer, para pensar cinematograficamente o estabelecimento da mise-en-scène como fator de impacto e de emoção.
Ainda que uma obra formatada nos moldes de uma linguagem clássica -o que não lhe tira de modo nenhum a qualidade, que se fundamenta na chave narrativa da progressão dramática griffithiana, há, no entanto, uma sequência que, sem se ter medo de errar, poder-se-ia chamá-la de eisensteiniana. É aquela na qual Roberto Ferreira tenta se ver livre dos presos num caminhão e tenta intimidá-los com um revólver, ocasionando uma fuga em pleno movimento do veículo, quando vem a morrer o irmão do personagem interpretado por Agildo Ribeiro. A rapidez, com que são expostos os rostos embrutecidos dos pobres diabos que estão no caminhão, tem um ritmo que se assemelha a um touch buscado na concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Esta seqüência é um flash-back, quando Agildo Ribeiro, dançando, sente-se mal e começa a ter pesadelos retroativos.
Assim, Tocaia no asfalto se sobressai pela narrativa impactante que está a serviço do argumento, mas que predomina sobre este. Que versa sobre um pistoleiro contratado para matar um político corrupto (Milton Gaúcho), que, chegando do interior, vai morar num prostíbulo e se apaixona por uma mulher (Arassary de Oliveira). Enquanto isso, um jovem político bem intencionado (Geraldo D'El Rey) pretende instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as falcatruas do grupo do político que está na mira do assassino. Mas as reviravoltas do argumento determinam uma contra-ordem e o pistoleiro, na iminência de matar, é avisado que não mais precisa cumprir o trabalho. Apesar de um matador profissional, tem, porém, seus códigos de honra e prefere ir até o fim naquilo para o qual fora incumbido. Não lembra Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro?
Tocaia no asfalto se desenrola em dois ambientes: o ambiente burguês da casa do político, abrangendo as festas, os colóquios e o namoro de sua filha (Angela Bonatti) com o jovem e promissor parlamentar, e o ambiente pobre do prostíbulo comandado com mão de ferro por Jurema Penna e, no qual, o pistoleiro é hospedado, vindo a conhecer uma prostituta pela qual se apaixona. A latere, alguns personagens, como o policial interpretado por Adriano Lisboa, que circula entre os dois ambientes, Antonio Pitanga, outro matador, contratado, desta vez, para matar o outro. Pires, em alguns momentos, através da montagem paralela, tenta mostrar os acontecimentos em perspectiva de simultaneísmo, quando, por exemplo, Agildo e Arassary conversam no Farol de Itapoã.
Notável realizador, Roberto Pires, responsável pelo primeiro longa feito aqui, Redenção (1956-59), pelo seu extremado domínio formal da linguagem, poderia ter ido longe se trabalhasse no exterior, mas as injunções mercadológicas de um cinema caótico, como o brasileiro, determinaram-lhe, por vezes, um recesso forçado. Mas filmes como A grande feira e Tocaia no asfalto bastam para se ter um cineasta.
Não se pode deixar de registrar a funcionalidade da partitura de Remo Usai - que soa como um grito trágico na seqüência final do trem, o bom argumento de Rex Schindler - também produtor, associado a David Singer, e a fotografia de Hélio Silva. E uma pergunta que não se quer calar: por que, com todos os recursos existentes hoje, o cinema baiano não consegue fazer algo parecido com Tocaia no asfalto?

27 junho 2011

Coquetel de cinema à la carte


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Dez anos sem Roberto Pires

Cliquem na imagem para vê-la mais nítida e maior.


Se o cinema na Bahia não existisse, Roberto Pires o teria inventado, escreveu Glauber Rocha em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (Civilização Brasileira, 1963), uma reavaliação histórica do processo de criação na cinematografia nacional, um livro importante que provocou polêmicas na época – e que foi, recentemente, reeditado com prefácio de Ismail Xavier. Nesta publicação, Glauber considera Limite um mito a ser desmistificado, apesar de o filme não ter sido, em 1963, ainda restaurado, diz que O Cangaceiro é um produto falso feito na paisagem paulista, com um décor descaracterizado e uma estrutura narrativa westerniana, entre outros pontos provocativos e que exerciam uma espécie de dessacralização de dogmas estabelecidos. Humberto Mauro é coroado como o patrono do cinema brasileiro, o cineasta que plantou as raízes e colheu os frutos com seus filmes autênticos e enraizados.


Mas se está, aqui, pegando um atalho e saindo da estrada, porque ela, a estrada, é Roberto Pires, o realizador de Redenção, o primeiro longa metragem feito na Bahia, com lente anamórfica (cinemascope) inventada por ele na ótica de seu pai. Redenção sobre ser uma obra de pioneiro, de desbravador, tem uma singular importância para a eclosão do Ciclo Bahiano de Cinema que viria a seguir. O filme é um exemplo, uma espécie de prova da possibilidade da existência de um cinema nestas plagas. Quem viu a avant-première, em black-tie, no cine Guarany, em 1959, não esquece o entusiasmo de todos. É vendo Redenção que Glauber Rocha sente que, de fato, seria possível se desenvolver, aqui, uma indústria cinematográfica. Encontrando, por acaso, Rex Schindler, no escritório de Leão Rosemberg, Glauber inicia uma amizade com Rex que vem a resultar no projeto do cinema baiano.
Redenção, no entanto, não pode ser incluso dentro dos postulados cinemanovistas, pois um thriller, um policial com acentos amadorísticos. Mas, como acontece com a projeção de 1895 – data do nascimento do cinema – da chegada do trem dos Irmãos Lumière, apenas o fato de se ver, na tela, imagens de pessoas participando de uma história em movimento, o filme se torna uma lenda. O orgulho é imenso, e, naquela época, aquele que participa, numa pontinha, do filme de Roberto Pires, faz questão de dizer: “Eu trabalhei em Redenção.
Roberto Pires o filma nos finais de semana e o roteiro, imaginado e pré-visualizado em 1955, tem suas filmagens iniciadas no ano seguinte. A equipe técnica, trabalhando nos dias úteis em outras atividades para sobreviver, só se encontra disponível aos sábados e domingos. Assim, a fita é rodada a prestações até que um ilheense apaixonado por cinema, Élio Moreno de Lima, decide aplicar mais recursos, injetar mais verbas para o aceleramento da produção que, afinal, só fica pronta em 1959. Pires, um inventor e um artesão que se forma na intuição, vendo filmes policiais americanos, sem freqüentar o Clube de Cinema de Walter da Silveira, consegue, e não se sabe a que custos, finalizá-la, lançando-a com sucesso surpreendente no mercado soteropolitano.
Rex Schindler e Braga Neto, após o êxito de bilheteria do filme estreante de Pires, resolvem bancar Barravento, de Glauber Rocha, dando início ao que se chama a ‘Escola Bahiana de Cinema’. Glauber, crítico de cinema do então recém-fundado Jornal da Bahia, entra no meio das filmagens de Barravento, remodelando o roteiro e o idealizando à sua imagem e semelhança. Schindler, Glauber, Braga Neto e outros têm um projeto para a instalação de uma indústria de filmes – Glauber como mentor intelectual da turma. Dá-se início às filmagens de A Grande Feira (1961), com argumento de Rex, roteiro deste e de Pires e com direção do último. A artesania, que Pires demonstra na construção da mise-en-scène, habilita-o como cineasta neste drama sobre a Feira de Água de Meninos com acentos cordelísticos e brechtinianos. Sucesso estrondoso em Salvador, anima os produtores a partir para Tocaia no Asfalto (1962), que seria dirigido – segundo o esquema de rodízio estipulado – por Glauber, mas este, já detonando o Cinema Novo no SDJB – o célebre Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim – e preparando, no Rio, a produção de Deus e o Diabo na Terra do Sol, indica Roberto Pires. Tocaia no Asfalto tem um tema atual, pois trata da corrupção, da tentativa de se instalar uma CPI a fim de apura-la e do pistoleirismo. A sua estrutura narrativa é de um thriller, bem ao gosto de seu diretor, e há momentos de puro cinema: a perseguição de Agildo Ribeiro, o pistoleiro, para matar um político no interior da Igreja de São Francisco e o tiroteio no cemitério do Campo Santo.
O que se denomina de ‘Escola Bahiana de Cinema’ se restringe aos filmes idealizados pelo grupo de Rex, Glauber, Pires e Braga Neto, entre outros – Barravento, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, mas, nesta época, de imenso burburinho, a Bahia vive o cinema, com produtores do sul e até do estrangeiro (O Santo Módico, de Jacques Viot), além de outros baianos que conseguem se estabelecer com produções de outras empresas – como a Winston Carvalho que banca O Caipora, de Oscar Santana; como a Tapira de Palma Netto, que tenta dar uma resposta ao problema feirante através de um outro filme, Sol Sobre a Lama, que é dirigido pelo carioca Alex Viany, mas produção genuinamente baiana; como Ciro de Carvalho Leite, que financia O Grito da Terra, de Olney São Paulo, em Feira de Santana. O Ciclo Bahiano de Cinema’ reúne todos os filmes que são realizados na Bahia entre 1959 e 1963, inclusive os da ‘Escola…
Roberto Pires é muito ligado a Iglu Filmes – que tem este nome por causa de um bar na Praça da Sé, onde os cineastas costumam se reunir. Faz-se, neste período, até atualidades como A Bahia na Tela, um cine-jornal cuja estampa é o cartão postal do Elevador Lacerda.
Pires tem um sentido, diga-se assim, intuitivo da construção de uma mise-en-scène, tem, aliás, como poucos brasileiros, um faro excepcional para trabalhar com o específico fílmico, com a linguagem cinematográfica. Se Redenção é um rascunho, A Grande Feira e Tocaia no Asfalto são exemplos significativos da artesania do cineasta, de sua posta em cena. Ainda que seguindo os cânones de uma estrutura narrativa clássica – e, de certa forma, acadêmica, Pires possui o que muitos não têm: o engenho e a arte de saber se articular por meio de elementos puramente cinematográficos. Seus melhores filmes (‘Feira’, ‘Tocaia’) mostram um realizador em plena consciência de seu ofício. Mas é um cineasta que precisa do apoio de um argumento e de um roteiro sólidos. É, nesse ponto, mais um executor do que um autor, um artesão que sabe com maestria desenvolver um argumento alheio. E de artesãos como Pires é que o cinema brasileiro precisa para conquistar o mercado, envolver o público, cativar o cinéfilo.
Com a derrocada do Ciclo Bahiano de Cinema – o velho problema de distribuição, Pires vai tentar a vida no Rio de Janeiro e realiza, em 1963, Crime no Sacopã, filme que, desaparecido, precisa, urgentemente, de uma revisão. Montando filmes alheios para sustentar a família, enquanto aguarda o próximo longa, o cineasta, em 1967, realiza um policial na medida certa do seu talento: A Máscara da Traição, com Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo, então atores globais em alta. O filme conta a execução de um grande assalto aos cofres do estádio do Maracanã em dia de jogo decisivo.
Convidado por produtor americano para realizar um thriller à brasileira, recusa o convite e indica Alberto Pieralisi, que dirige Missão Matar, com Tarcísio Meira na pele de um James Bond dos trópicos. Uma experiência em 16mm, para posterior ampliação em 35mm e exibição nos cinemas, é um fracasso em 1970: Em Busca do Su$exo, com Cláudio Marzo, Eulina Rosa, Sílvio Lamenha. Filmado no Rio, aproveita atores globais, mas não se vê, neste filme, o metteur-en-scène tão proclamado. A seguir um ostracismo de dez anos até que arranja produção, monta um estúdio na Boca do Rio e se aplica numa science-fiction: Abrigo Nuclear. Para dar certo, no entanto, precisaria de uma infra-estrutura que Pires não consegue arranjar. O resultado é outro fracasso. Anos depois, faz, em Goiânia e Brasília, um filme sobre o acidente do césio, que recebe elogios, mas não consegue a circulação merecida.
Assistente de Glauber Rocha em A Idade da Terra, participa também de Di Cavalcanti. O seu grande momento, todavia, se encontra nos anos 60. Esperava-se, de Pires, um nova longa: Nasce o Sol a 2 de Julho, cujo argumento é de Rex Schindler.
O maior cineasta baiano, Roberto Pires. Claro, há Glauber Rocha, mas este é universal e não se compara. Separa.
Pires morre por causa de um câncer contraído durante as filmagens do filme sobre o césio. Tinha já dado início a alguns planos de Nasce o sol a 2 de Julho, que Schindler sonha em completar, mas, porque filme de época, tem orçamento alto, tornando-se, assim, inexeqüível e inviável.

26 junho 2011

Peido também é cultura


Bom, este artigo, que já saiu neste blog ano passado, mas que resolvo republicá-lo, é de autoria do saudoso escritor Moacyr Scliar registrado em domingo, dia 9 de março de 2008, no Mais! da Folha de S.Paulo. Não resisto em transcrevê-lo. Em homenagem ao talento de Scliar. Aqui vai:

"A notícia, na Folha do último dia 28, era pequena, mas chamativa: uma funcionária, demitida por "exceder-se em flatulência" no local de trabalho, venceu demanda judicial interposta na 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Os magistrados decidiram pela readmissão da empregada e pelo pagamento de R$ 10 mil por danos morais.

Atrás desse curioso episódio está longa história, que se baseia numa função fisiológica absolutamente normal, mas nem por isso menos perturbadora. Flatulência é a emissão de gases intestinais, uma coisa que poderia passar despercebida, como é a expiração.

Mas essa, em geral, não é ruidosa -a não ser quando a pessoa ronca, o que não raro é fonte de conflito entre marido e mulher- e é sem odor, a não ser quando há mau hálito, o que sempre resulta em constrangimento. Já no flato, existe uma complexa mistura de gases, alguns dos quais, os compostos sulfurosos, principalmente, produzem aquele característico odor, que há milênios ofende narinas.

Ah, sim, e o ruído. A última linha de "O Inferno", de Dante, parte da "Divina Comédia" [editora 34], diz "Ed elli avea del cul fatto trombetta"/ "E ele usou o traseiro como trombeta", o que pode parecer um exagero, mas traduz a indignação das pessoas.

Não só Dante se entregou ao exercício dessa forma de escatologia literária. Na clássica comédia "As Nuvens" [ed. 34], de Aristófanes [comediógrafo grego do século 5º a.C. que se celebrizou pela irreverência], há um diálogo no qual Sócrates sustenta que, quando as nuvens colidem, se produz um forte ruído, ou seja, o trovão.Para explicar o fenômeno, compara-as com o homem que, tendo comido muito, produz gases. E pergunta: "Se o ventre humano, que é relativamente pequeno, faz tanto barulho, como não o farão as nuvens, que são muito maiores?"
Nas "Mil e uma Noites" [ed. Globo], lemos a história de um homem que, tendo soltado gases durante a cerimônia de seu próprio casamento, não vê outra solução senão fugir para o exterior. Em "Gargântua e Pantagruel" [ed. Itatiaia], Rabelais assim descreve a ressurreição de Epistémon: "De repente Epistémon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois soltou um grande peido. Ao que disse Panurge: "Agora está certamente curado'".

Em "Contos de Cantuária" [T.A. Queiroz], de Geoffrey Chaucer, autor inglês do século 14, o flato é usado como agressão. O conquistador Absolom está tentando roubar um beijo da trêfega Alison, mulher do carpinteiro Nicholas. Na escura noite, sem quase nada enxergar, aproxima-se da janela da casa e, sussurrando, pede que a mulher diga onde está. Mas é Nicholas que responde -soltando, pela janela, um agressivo flato.Em "Molloy" [ed. Globo], de Samuel Backett, há uma certa condescendência para com os gases: "Trezentos e quinze peidos em 19 horas, uma média de 16 peidos por hora. Não é demais. Quatro peidos a cada 15 minutos. É nada". A mesma tolerância mostrou o imperador romano Claudius, que assinou lei permitindo a emissão de gases em banquetes, mas fê-lo movido por supostas razões de saúde: acreditava-se à época que reter os gases era prejudicial para o organismo.

De maneira geral, soltar um flato era falta grave. Edward de Vere, duque de Oxford, teve o azar de fazê-lo (coisa que Freud explicaria) no exato momento em que prestava juramento de lealdade à depois cinematográfica rainha Elizabeth 1ª.

Tão envergonhado ficou que se impôs um exílio de sete anos. Quando de seu retorno à corte, Elizabeth teria dito, para consolá-lo: "Meu senhor, para dizer a verdade, já esqueci aquele flato".Aliás, em termos da associação nobreza-flatulência, o duque não ficaria sozinho. Segundo nos conta Jô Soares, em "O Xangô de Baker Street" [Cia. das Letras], dom Pedro 2º soltava gases em pleno palácio, o que, aliás, no julgamento mencionado, foi usado como argumento pelo juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros.

A pessoa pode reter os gases, mas será que consegue emiti-los voluntariamente?Em "A Terra", de Émile Zola, há um personagem que consegue fazê-lo e ganha apostas com sua habilidade. Houve um contemporâneo do escritor que conseguia fazê-lo e se tornou famoso por isso: Joseph Pujol (1857-1945), autodenominado Le Pétomane (O Peidômano).

O marselhês Pujol tinha um extraordinário controle de seus músculos abdominais e do esfíncter anal, o que lhe permitia façanhas assombrosas. Exibindo-se no célebre Moulin Rouge, para audiências que incluíam Edward, príncipe de Gales, e Sigmund Freud, conseguia tocar flauta por meio de um tubo de borracha inserido em seu ânus, emitindo também os sons do hino nacional e de melodias por ele compostas.

A história de Pujol inspirou pelo menos dois filmes -o britânico "Le Petomane", de 1979, com Leonard Rossiter, e o italiano "Il Petomane", de 1983, com Ugo Tognazzi-, o musical "The Fartiste" -premiado como melhor do ano em 2006, no festival internacional Fringe, em Nova York-, vários artigos e livros, incluindo o best-seller "Quem Comeu meu Queijo?", de Jim Dawson, uma abrangente história da flatulência.Uma história que, como se constata, mostra aspectos curiosos e surpreendentes da relação humana com o corpo, particularmente no que se refere ao componente gasoso deste."