Raul Moreira, jornalista, cineasta, acionista falido do J. P. Morgan, enviou, para seus amigos, uma mensagem comentando o filme de José Walter Pinto Lima que se encontra em cartaz em circuito nacional: Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões. Apesar de não ter solicitada a devida permissão, tomo a liberdade de publicá-lo. Tem a verve do autor. Há um texto também de minha pena que publiquei no Terra Magazine (http://terramagazine.terra.com.br/blogdoandresetaro/blog/2012/08/14/299/) Ainda que não seja um conselheirista, Moreira conheceu bem toda a trajetória do filme nos intervalos de seu hobby mais intenso: fazer a macarronada de toda sexta do já tradicional regabofe da Praia dos Livros.
Por dever vos faço saber que encontra-se em
cartaz nos cinemas da Cidade da Bahia Antônio Conselheiro – O taumaturgo dos
sertões, peripécia de José Walter Pinto Lima, também artista plástico e
organizador do Cine Futuro.
Independentemente de suas qualidades e misérias
estéticas, já é mérito o fato do filme ganhar as salas de cinema de Salvador e
de muitas capitais brasileiras, levando-se em conta não apenas a linguagem
contracorrente da obra em questão, mas, também, as velhas dificuldades de
distribuição.
Conheço Lima há muito e, de cátedra, vos digo que
trata-se de sujeito tenaz. Chego a pensar, até, que teria vendido a sua alma ao
diabo, uma vez que, creiam-me, consegue tirar leite de pedra e dar nó em pingo
d'água: pois, produzir, finalizar e evitar que a sua película não fosse parar na
gaveta do esquecimento foram elas.
Cá, vos faço saber que Lima, cria de Walter da
Silveira e glauberiano convicto, nos anos de 1987 saiu sertão afora com o seu
exército de “Brancaleone” a filmar cenas do Conselheiro, tendo na sua
entourage os saudosos Vito Diniz (iluminador), Carlos Petrovich (ator que
deu vida ao Conselheiro) e tantos outros que se foram.
Não sei qual era a estrutura do roteiro e muito
menos se era organizado a ponto de recolher as imagens e as interpretações
justas (vejam vocês!). No entanto, mesmo com toda precaridade, pois, na época,
fazer cinema na Bahia ultrapassava o heroísmo, a espinha dorsal do filme foi
produzida, garantindo-lhe, assim, a sua continuidade.
O diabo é que, quando estava pronto para realizar
as gravações finais, no início dos anos 90, graças ao dinheiro conseguido
através da extinta Embrafilme, eis que o desastrado Plano Collor salpicou água
no brinquedo de Lima. Resultado: quase em depressão, o cineasta jogou a toalha
e, durante anos, os negativos e o som ficaram engavetados, com o detalhe: parte
do material perdeu-se em um incêndio no Rio de Janeiro.
Passaram-se os anos e Lima buscou forças para
reagir, realizando uma série de projetos, entre eles o Cine Futuro ( também
conhecido Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual) e um documentário de
título Um vento sagrado, o qual abordava a vida do zelador de santo
Agenor Miranda da Rocha. O problema é que Lima, como a maioria dos
documentaristas brasileiros, incorreu em um erro clássico: ao não se distanciar
do seu objeto de apreciação, acabou por maculá-lo e, consequentemente, por falta
de força, sua peripécia não vingou.
Então, quase surtado, Lima achou forças para
terminar o seu Conselheiro. Antes, havia captado cenas de uma missa campal nos
anos de 1997, justamente quando se comemorava o centenário do morticínio de
Canudos, in loco, imagens e sons que foram fundamentais para adornar o
seu longa, dando-lhe, inclusive, um caráter documental.
Já a partir de 2008, retomou o projeto, salvando
o salvável, graças, em parte, ao “guardião” do cinema baiano, Roque Araújo, que
preservou parte do material em seu calabouço na Dimas. Depois, Lima gravou novas
cenas, utilizando-se, também, de outros atores, como Bertrand Duarte, Júlio Góes
e Iami Rebuças, tudo em película super 16 e iluminado por Pedro
Semanovschi.
A partir daí o grande desafio era juntar peças
tão díspares de um tabuleiro complexo. Na época, lembro-me bem, houve quem
dissesse para Lima desistir, enfim, para não sacrificar a sua saúde por um
projeto “impossível”. “Mefistofélico”, o cineasta fez das dificuldades e da
incredulidade alheia alimento. Durante noites zanzou de cima para baixo no seu
duplex, na Graça, até juntar as peças do quebra-cabeça e ordená-lo de maneira
tal que o filme ganhasse um sentido.
E o que fez Lima? Se valeu de recursos
computadorizados de animação para as cenas de guerra, deu um tom polifônico aos
momentos que pareciam vazios, pobres, uniformizou a luz e a tonalidade de cores,
criando uma curiosa textura, mas, principalmente, teve coragem de apresentar o
seu “Frankenstein”. O resultado: um filme de outros tempos, ou de tempo algum,
com uma poética surreal encampanada em um ritmo lento, capaz de nos desconcertar
por conta de seu estranhamento, uma obra que retrata um personagem
esquizofrênico e acaba por absolvê-lo, tornando-a, assim, política,
engajada.
Sim, houve quem dissesse com exagero que trata-se
de um filme revolucionário, o que não o é. No entanto, num momento em que parte
do cinema nacional deixou-se levar pelo ritmo frenético das montagens para
agradar ao público acostumado com as produções industriais norte-americanas,
Lima, como o seu Conselheiro, foi de encontro ao mundo e ofereceu-se ao
sacrifício em nome de um ideal.
Raul Moreira