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28 dezembro 2013

Jacques Taty

O verdadeiro nome de Jacques Tati é Jacques Tatischeff. Nasceu em 9 de outubro de 1907 na pequena cidade de Le Pecq, Seine-et-Oise (agora Yvelines), França, e vem a desaparecer aos 72 anos, em Paris, em 4 de novembro de 1982. Seu pai, de origem russa, apesar de rude, deu-lhe a conhecer os grandes autores, principalmente os de sua nacionalidade (Dostoievski, Tolstoi, Tchecov...), e sua mãe, francesa, ainda que uma causer instintiva, que fez povoar, com suas histórias, a imaginação do menino Tati, era, no entanto, como habitual na sua época, pessoa dedicada aos serviços do lar. A juventude, passou-a, preocupado com o rugby, do qual se tornou campeão em sua cidade. Os primeiros filmes que viu foram aqueles da estética da arte muda, pois o cinema somente viera a falar a partir de 1927. Mas, desde cedo, encantou-se com os filmes cômicos de Mack Sennett, Harold Lloyd, Max Linder, e, principalmente, de Charles Chaplin. O que mais apreciava, a pantomima, começou a desenvolvê-la ainda em casa diante do espelho.

Aos 26 anos, em 1933, dá-se a conhecer num music-hall repleto de originais números inventados por ele de pantomima esportiva. Do palco pula para o cinema, a princípio como roteirista e como ator em uma série de curtas metragens: Soigne ton gauche (1936), de René Clement (que viria a ser um competente e requisitado diretor do cinema francês - Brinquedo proibido/Jeux interdits) e L'École des facteurs (1947), entre outros. Desempenha, em filmes alheios, vários papéis, entre os quais em Adúltera (Le diable au corps, 1947), de Claude Autant Lara e, em 1949, decide realizar os seus próprios filmes, e o primeiro deles, obra de estréia no longa (antes fizera um curta: L’école des facteurs, 46), é Carrossel da esperança (Jour de fête), uma fantasia sobre as andanças de um carteiro rural. A singularidade de sua poética original já desperta a atenção da crítica especializada.

Tati, neste filme, é François, um carteiro de uma pequena cidade que, muito prestativo, ajuda na montagem de um parque de diversões que inclui um cinema ambulante. Ainda não aparece como Monsieur Hulot com a capa inseparável e o cachimbo sempre presente, que iria personificar a partir de sua segunda obra em diante. Com o cinema ambulante instalado, o curioso carteiro assiste, nele, um documentário sobre o sistema postal mecanizado em funcionamento nos Estados Unidos e fica impressionado. Determinado a aumentar a velocidade da entrega das correspondências, inspira-se no exemplo norte-americano e, com a ajuda de sua bicicleta, consegue imprimir a seu trabalho um ritmo surpreendente. O aumento de velocidade, no entanto, vem a provocar inúmeras confusões e, delas, Tati tira o espírito de sua comédia. Que foi filmada originalmente em película colorida em 1947, mas, com um atraso de dois anos entre a produção e a exibição, foi lançada em Paris em 1949, e em preto-e-branco. Tati, em 1961, desgostoso com o resultado sem as cores, decidiu ele mesmo colori-la à mão. A restauração, contudo, somente aconteceu mais de dez anos depois de sua morte, em 1995, tal como o cineasta a planejara. Jour de fête não tem diálogos, apenas música e efeitos sonoros. No elenco, além de Tati, Guy Decomble, Paul Frankeur, Santa Relli. O roteiro, escrito pelo autor e pelo colaborador Henri Marquet. Carrossel da esperança restaurado chegou a ser exibido em Salvador numa sala alternativa, que ficou às moscas durante a semana de sua projeção.

As férias do Sr. Hulot (Les vacances de Monsieur Hulot, 1953), no entanto, foi o filme que o consagrou. Brilhante sátira do conformismo e da mediocridade dos veranistas franceses, apresenta pela primeira vez o personagem Monsieur Hulot, indivíduo ingênuo e inquietante criado com notável fantasia poética, que se converteu no descendente direto de Max Linder e, sobretudo, de Buster Keaton. Monsieur Hulot vai passar as férias numa pequena praia bretã, onde corteja, de muito longe, uma jovem (Michèlle Rolla). Entre as cenas mais engraçadas, estão aquelas que apresentam Hulot, cachimbo na boca, a dirigir seu carrinho Hamilcar modelo 1924; a sua chegada a uma pensão familiar, que provoca estranhezas; seu quarto sob o teto; a canoa desmontável que se infla no mar; a irrupção de Hulot, de carro, num cemitério, durante um enterro; o baile de máscara onde, fantasiado de corsário, corteja timidamente uma moça; Hulot, perseguido pelos cachorros, refugia-se numa cabana e causa uma explosão de fotos de artifício; o fim melancólico das férias.


Grande Prêmio da Crítica Internacional do Festival de Cannes em 1953, Les vacances de Monsieur Hulot surpreendeu, pela sua singularidade poética, pela maneira original de apresentar com graça as situações cômicas, pela sátira devastadora, os mais importantes críticos que estavam presentes ao evento. André Bazin, considerado um dos mais respeitados exegetas cinematográficos de todos os tempos,  chegou a exclamar: "Trata-se não só da obra cômica mais importante do cinema mundial desde os Irmãos Marx e W. C. Fields, mas de um acontecimento na história do cinema falado."  E Geneviève Agel acrescentou: "Mais tarde, virá a dizer-se antes ou depois de Hulot". O filme, durante os anos 50 e 60, foi presença constante nas programações dos cineclubes pelo Brasil afora e recebeu críticas elogiosas dos grandes ensaístas brasileiros, a exemplo do que escreveu Paulo Emílio Salles Gomes (Suplemento Cultural do Estado de São Paulo), Francisco Luiz de Almedia Salles, Alex Viany, Walter da Silveira, entre outros.

Este último, num ensaio publicado em Fronteiras do cinema (Tempo Brasileiro, 1966), destacou a estética tatiana num trecho de seu copioso escrito sobre o cômico: "Para realçar sua concepção moral sobre os inúteis e os transitórios que se esforçam por uma sobrevivência a que não têm direito, Tati utiliza, ao modo de Chaplin, um mínimo de primeiros planos e de movimentos de câmera: bastam-lhe os planos médios fixos. E tão mordaz se apresenta neste agudo despojamento técnico que, além de não se importar com uma boa continuidade aparente, passando de uma seqüência  para outra com fusões ou cortes que pareceriam primitivos aos menos avisados, ainda insiste, numa ironia quase gratuita num temperamento tão simplificador, em mover a câmera com o ar desajeitado de um automóvel que, mal conduzido, se aproximasse de outro".

(Lembro-me que vi, menino, Meu tio, no já desaparecido cinema Capri, que ficava no Largo 2 de Julho. A impressão do garoto que era foi a de um filme esquisito, com alguns momentos que ficaram para sempre na memória: os cães a vadiar pelo terreno baldio, com tomadas demoradas, a casa funcional mas inoperante e a figura alta, esquisita, de Monsieur Hulot. Na segunda metade dos anos 60, vi Playtime, uma produção de grandes recursos, exibida no Tupy, no formato gigantesco da bitola de 70mm. O impacto de Playtime, neste formato desaparecido, e porque filmado nele, desapareceu das cópias porventura existentes em DVD ou “baixadas da internet”)

Em Mon oncle, Hulot (Jacques Tati, evidentemente) mora num velho apartamento num bairro parisiense tranqüilo, e seu sobrinho (Alain Bécourt), com os pais, os Arpel (J.P. Zola e Adrienne Servantie), numa casa ultra moderna, funcional, cheia de apetrechos mecanizados. Tati realiza, aqui, o contraste entre estes ricos burgueses e um bom rapaz boêmio a quem querem fazer trabalhar numa fábrica.

Há momentos antológicos e memoráveis, que ficam na mente do espectador depois do filme visto. A saída do Sr. Arpel de carro para a fábrica de plástico é plena de engenhosidade na confecção do gag audiovisual. Assim como outras: Hulot a subir para a sua bizarra moradia, e a fazer compras no velho bairro, suas imperícias na fábrica, a tarde passada no jardim geométrico dos Arpel, a chegada da vizinha afetada, etc. Meu tio é uma sátira não ao modernismo, mas aos burgueses que se consideram modernos. “O que me irrita, disse Tati quando do lançamento de Mon oncle, não é o fato de se construírem imóveis novos, que são necessários, mas casernas. Não gosto de ser mobilizado, não gosto de mecanização. Defendi o pequeno bairro, o canto tranqüilo contra as auto-estradas, aeroportos, organização, uma forma de vida moderna, pois não creio que as linhas geométricas tornem as pessoas amáveis. Para mim, deve-se revalorizar a gentileza pela defesa do indivíduo, numa ótica finalmente otimista”.

A preparação para o próximo filme, Playtime, foi longa: sete anos e mais dois de filmagem (1965/67). Trata-se de sua película mais custosa, quase uma superprodução. Nela, há uma profunda observação sobre o comportamento humano e, em particular, de um grupo de turistas americanos que chega ao aeroporto de Orly e se espanta ao verificar que Paris, com seus edifícios e suas ruas, é exatamente igual às suas cidades de origem. Mr. Hulot chega a um novo prédio para tratar de negócios e se deixa extasiar com a complexidade da construção, sendo mesmo envolvido por uma exposição de equipamentos modernos, a que também assistem os turistas. Hulot e os americanos voltam a se encontrar na noite de inauguração da buate Royal Garden, ainda em fase de acabamento. As confusões se sucedem e, de madrugada, no fim da festa, Hulot oferece um presente a uma jovem americana, que parte, então, com os demais turistas de volta a Orly.

Assim narrado, não se pode ter nem sequer uma idéia do que é, na verdade, Playtime, pois puro cinema. Como disse André Bazin, quanto mais fácil seja contar verbalmente um filme, menos cinematográfico ele é, mas quanto mais difícil seja contá-lo verbalmente, mais cinematográfico ele é. Como em As férias do Sr. Hulot, mais porém do que em Carrossel da esperança e Meu tio, Tati ignora as regras do timing e da intensificação dramática. Na primeira das duas grandes seqüências de que se compõe Playtime, o grupo de turistas americanos em Paris toma contato com o labirinto de buildings, se espantando ao ver que a cidade, nas suas linhas e formas, é exatamente igual àquelas que deixaram ao partir. Na segunda parte, todos visitam o Royal Garden, uma buate in que, ao receber os primeiros fregueses em sua noitada inaugural, ainda não está totalmente pronta, com os garçons e maître dando os retoques finais. Aí, novamente, Tati explora às últimas conseqüências as possibilidades da câmera e a sua análise pormenorizada do comportamento humano. A seqüência da buate, que figura entre as mais admiráveis já concebidas em toda a história do cinema, exemplifica o depuramento do burlesco tatiano. O gag dá sempre a impressão de estacionar antes de seu ponto de irrupção – como um gag em suspense ou, mais precisamente, uma decepção do gag. Tati leva a imaginação do espectador à expectativa do riso – e não estaria nisso uma verdadeira invenção?

Em 1971, filma o seu canto de cisne, Trafic, no qual se despede da figura de Monsieur Hulot. Em 74, sem dinheiro, um circus performer chamado Paradise num estranho formato de vídeo-scope. O grande cômico morre pobre e esquecido em 1982.

26 dezembro 2013

O cinema de Joseph Losey

Losey, apesar de sua fleugma, que o faz parecer um britânico nato, nasceu nos Estados Unidos, em Wisconsin, La Crousse, em 1909. Se estivesse vivo -morreu em 1984 – teria a provecta idade de 103 anos. Membro de uma família de ascendência holandesa, quando ingressa nos estudos superiores opta por duas carreiras bastante distintas: medicina e teatro. Logo, porém, a segunda fica no centro de suas preocupações, atuando, como intérprete, em peças alheias e, em 1930, findo seus estudos, dá-se a conhecer como um excelente crítico teatral. Da teoria, todavia, Losey passa, logo, à práxis, funcionando como diretor, metteur-en-scène, em The Living Newspaper (1936), influenciado, nesta ocasião, pelas teorias de Piscator e Bertold Brecht. Do teatro para o cinema, um pulo: em 1937 supervisiona mais de 40 documentários educativos para a Fundação Rockefeller e, realiza curtas autorais, e, trabalhando, para seu sustento, ao mesmo tempo, numa rádio, Losey desponta para a crítica como diretor teatral com a adaptação de Galileu, Galileu, de Bertold Brecht, considerada, até então, a melhor versão no proscênio da peça de Brecht. Após o triunfo de Galileu é que vem o cinema propriamente dito, o cinema ficcional, de longa metragem, com caráter profissional. Dore Schary o convida, em 1948, para dirigirThe boy with green hair (O menino dos cabelos verdes), uma fábula humanista acerca do racismo latente em uma coletividade.O Fugitivo de Santa Maria (The Lawless, 49), seu filme seguinte, insiste sobre o mesmo tema, mas com uma chave realista, pois o primeiro está cheio de metáforas e símbolos na fabulação. O menino dos cabelos verdes e O fugitivo de Santa Maria revelam o cineasta Joseph Losey como um realizador original e singularmente apto para restituir a pulsação lírica de alguns estados de ânimo. Assim, The boy with grenn hair contém o que não nos é dado com freqüência observar – uma mensagem de solidariedade humana, de tolerância, de paz, e The lawless, rodado numa pequena cidade do norte da Califórnia, expõe, através de uma narrativa um tanto descontrolada, a dramática situação desta localidade, quando um dos rapazes do bairro mexicano, tomado de pânico após esmurrar um policial, rouba um carro, foge desesperadamente e é acusado de vários crimes (entre os quais o de tentar violentar uma jovem estudante) no decorrer de sua perseguição. A população mais "respeitável" da cidade, indignada com os acontecimentos, percorre as ruas agredindo a pauladas outros mexicanos e empastela o único jornal da região, cujo editor resolvera defender a causa do fugitivo.
Em 1950, O cúmplice das sombras (The prowler), que significa um passo importante na sua carreira ao transcender um tema melodramático – um policial que seduz a uma mulher depois de assassinar o marido – para realizar um profundo estudo psicológico da condição humana de um personagem, a evidenciar Losey, neste filme, como um seguro realizador no controle da técnica naturalista e uma exatidão extraordinária na apresentação psicológica dos personagens. A seguir, no mesmo ano, M, o maldito, nova versão do célebre filme de Fritz Lang, que lhe permite descobrir outra de suas facetas: a faculdade de uma fusão expressiva entre o cenário e o seu protagonista. A maior parte da história e muitos dos arranjos de câmara são conservados e, quase cena por cena, o filme americano segue o alemão. As modificações principais se referem à época e ao local, com a transferência da ação de 1929 para 1950, e de Dusseldorf para uma cidade não identificada dos Estados Unidos. Em ambos, porém, o cenário é o mesmo: uma cidade agredida e aterrorizada por um psicopata cuja especialidade é matar meninas, após captar-lhes a confiança, sem uma pista a seguir, sem um delator, e que invade diariamente o bas-fond. Depois de M, Losey faz The big night, onde Robert Aldrich aparece como figurante: um dos espectadores da luta de boxe.
Em O homem que o mundo esqueceu (Stranger on prowl), filme que se segue a The big night na filmografia de Joseph Losey, a ação está situada em um porto não identificado, que apenas se sabe, pela insistente focalização de suas ruínas, ter sido duramente atingido pela guerra, num passado próximo. Um estranho percorre as ruas faminto e sem esperanças e, mais tarde, se vê perseguido e encurralado como se fora um animal por ter morto acidentalmente a dona do armazém que ameaçava entregá-lo à polícia ao surpreendê-lo com umpedaço de queijo na mão. Dois anos depois, 1954, O monstro de Londres (The sleeping tiger), com Dirk Bogarde (que mais tarde seria um ator constante do cineasta), com Losey a amargar o exílio forçado (é vítima do estupidez maccartista e taxado de 'comunista', deslocando-se para a Europa), assinando a fita como Victor Hanbury. Um homem em desespero (The intimate stranger, 56), assinado, também com pseudônimo, parece refletir a angústia do exílio. E a partir de A sombra da forca (Time without pity, 57), cuja fotografia é de Freddie Francis (o mesmo de Cabo do medo), o realizador já se sente mais livre para assinar seu próprio nome. Thriller policial britânico, apesar de realizado por um norte-americano, tem a britanicidade necessária para que se não lhe perceba a origem direcional: atmosfera sufocante, rictus narrativo, imagens rápidas, cheias de emoção visual e personagens enfocados oniricamente. Após o que, Losey realiza Por amor também se mata (The gypsy and the gentleman), de 1957, com Melina Mercouri e Patrick MacGoohan. Em 1959, um filme muito acima de sua média, e que muitos críticos consideram um de seus momentos altos: Entrevista com a morte(Blind date), com Hardy Kruger, Stanley Baker. Jovem pintor holandês em Londres leva à sua amante um ramalhete de violetas, mas não a encontra em casa e, de repente, chega a polícia. Há impressão de kafkanismo na narrativa com a tensão se fazendo à custa de um equívoco produzido pela usurpação de identidade da vítima. A direção de Losey se mostra menos preocupada com a trama policial do que com o exame psicológico de dois de seus três personagens centrais. Um filme que marca a presença de um autêntico cineasta.The damned, de 1962, nunca foi exibido nos cinemas brasileiros, restringindo-se a uma histórica exibição na TV Tupi do Rio de Janeiro em março de 1973, com o título de O mundo os condenou. Losey, entretanto, já se encontra, dois anos antes, com alta cotação entre os críticos, principalmente porque The criminal revela um realizador inusitado, estilista admirável. Mas é com Eva que a admiração total a Losey se estabelece de maneira definitiva, e seu nome se inclui, definitivamente, na galeria dos grandes cineastas. Com Jeanne Moreau, Stanley Baker, Virna Lisi, Eva é o ponto mais grave de uma acidentada carreira, pois a fita mais ambiciosa, concebida sem preconceitos e realizada num regime de absoluta liberdade de criação. Talvez seja Eva ainda a resultante dos estímulos recebidos por Losey de um grupo compacto da crítica francesa, que o elegeu um dos seus ídolos, para o seu espanto e estupefação, com o elogio descontrolado de suas obras menores. Um ano antes de O criado, que é de 1963, Eva tem uma narrativa pictoricamente sufocante por causa da poderosa beleza da iluminação de Gianni di Venanzo, um artista da luz.
Obra de mestre, obra-prima, O criado (The servant), com Dirk Bogarde e JamesFox, traduz bem a relação hegeliana do senhor e escravo. É o melhor filme de Losey, um trabalho exemplar, que se encontra, de repente e para surpresa de todos, em DVD. Vi o filme nos bons tempos do Cinema 1 em Copacabana. O criado é representativo desse enfoque de personagens cuja transparência de status social só tem igual na opacidade psicológica. Tony (James Fox), um jovem e sedutor aristocrata britânico, contrata um camareiro, Barrett (Bogarde). Como observou o ensaísta francês Claude Beylie, "A fábula é límpida: herdeiros de um mundo condenado, o escravo torna-se amo e vice-versa. Losey deleita-se com o espetáculo desse processo inexorável de degradação. Aí encontramos aquela 'exigência em perpétuua tensão' de que falava Michel Mourlet a propósito de À sombra daforca."
A seguir, um inédito em território brasileiro: King and country. Depois uma brincadeira satírica em tom descontraído: Modesty Blaise, com Monica Vitti, Terence Stamp, 1966, uma sátira aobondianismo, desta vez colocando, como a heroína, uma mulher, e movido por chave irônica em linguagem de história em quadrinhos. E posteriormente uma quase obra-prima: Estranho acidente (Accident, 67), análise de comportamentos e de idiossincrasias, pintura ácida (como de hábito) de um meio corrompido (desta vez o acadêmico), com, novamente, Bogarde e o Stanley Baker de tantos filmes. O casal Burton reviveria Tennessee Williams em Boom (O homem que veio de longe), que se passa nos interiores do elizabetano palazzo onde tudo é ostentação. Vieram a seguir: Cerimônia secreta (Secret cerimony, 1968). No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 1970), O mensageiro (The gobetween, 71, Palma de Ouro em Cannes), O assassinato de Trotsky, 1973), Casa de bonecas (A doll's house),com Jane Fonda, baseado em Henrik Ibsen, Galileo (74), A inglesa romântica (The romantic englishwoman, 74), Cidadão Klein (76), Don Giovanni.
Em Cerimônia secreta, uma mulher (Mia Farrow, recém chegada de Rosemary's baby) adota uma prostituta (Elizabeth Taylor) como sua mãe. Segundo Losey, Secret cerimony é um filme sobre a terrível necessidade que os seres humanos têm uns dos outros e a incapacidade que todos temos de nos satisfazer." Moral da história: dois ratos caem num balde de leite. Um morre afogado. O outro debate-se a noite inteira e acorda na coalhada.

25 dezembro 2013

Claude Lelouch e o poder da 'mise en scène'


A visão de Esses amores (Ces amours-là, 2010), de Claude Lelouch, filme-síntese desse poeta do cinema, retrospectiva de seu processo de criação cinematográfica ou, talvez (já que o cineasta tem 75 anos), obra de revisão e afirmação de seu poder, imenso, de 'mise-en-scène', nos dá a medida exata de seu talento. A fascinação do espetáculo e, ao mesmo tempo, a explicação de seu fascínio. Um belíssimo filme, um dos melhores dos últimos anos. Que deve ser visto em genuflexório.

Há, por parte da crítica, uma total indiferença diante dos filmes de Claude Lelouch, um certo preconceito em relação a este brilhante realizador do cinema francês. Convidado para participar da mostra internacional paulista há 3 ou 4 anos, foi evitado pela imprensa, e apenas algumas notas insignificantes deram conta de sua importante presença no exitoso evento coordenado por Leon Cakoff. Em um festival ocorrido em Manaus, também não despertou o entusiasmo que merece por parte da imprensa, que lhe foi completamente indiferente, ainda que homenageado. Talvez a explicação para a marginalização do autor de Um homem, uma mulher esteja no fato dele falar mal da nouvelle vague e, apesar do seu público fiel, a chamada intelligentzia o colocou no index. Os críticos brasileiros, que se pautam muitas vezes pela autoridade crítica internacional, passaram a proceder da mesma maneira, determinado-lhe o desprezo e, pior ainda, a indiferença (e a indiferença também é crime, segundo diz William Shakespeare em Hamlet).

O fato é que são poucos os filmes de Lelouch, nas últimas décadas, que tiveram lançamentos bem colocados, e nunca é citado nos círculos mais intelectualizados do pensamento cinematográfico. Considerado um virtuoso, maneirista, superficial, dotado de uma poética do vazio, Lelouch, no entanto, é um talento, um poeta, que sabe, como poucos, envolver o espectador com sua mise-en-scène única e particular. Os filmes de Claude Lelouch sempre me deram conta de estar diante de um artista criador, que emociona, que, como poucos, tem um método de dirigir os atores, deixando-os espontâneos, verdadeiros, convincentes. Um filme de Claude Lelouch, para mim, é um bálsamo capaz de deixar a impressão de se ter contemplado a beleza em movimento, os pequenos gestos significantes, a emoção surpreendida em seu momento exato. Mas, não se pode negar, o que vem a ser considerada crítica cinematográfica oferece, para ele, as opiniões mais deprimentes. E Lelouch é, antes de tudo, um antidepressivo fundamental, que trata dos seus temas, aparentemente superficiais, com o vigor de uma mise-en-scène que os torna envolventes e perfuratrizes na alma do espectador. Ver um Lelouch é sempre um prazer, uma descoberta da vida e do amor.

Parisiense de nascimento, 75 anos (vai fazer em outubro), (30/10/1937), Claude Lelouch chamou a atenção internacional, quando, em 1966, ganhou a cobiçada Palma de Ouro do Festival de Cannes, derrotando realizadores poderosos. Un homme et une femme, se, por um lado, rendeu a Lelouch uma bilheteria assombrosa pelo mundo todo, não se constituiu, porém, numa unanimidade crítica. Já começou aí a inveja de outros cineastas pretensiosos e menos dotados, que deram início à difamação de Lelouch como cineasta menor. A partitura envolvente de Francis Lai, a técnica de improvisação na direção dos atores, o realizador como seu próprio cameraman com notável segurança, a fotografia deslumbrante, a poesia que emana de sua articulação da linguagem, a mise-en-scène que transforma objetos em novos significantes determinaram a Un homme et une femme um estrondoso sucesso, uma fascinação irresistível. E além da Palma, o diretor também conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de muitos outros prêmios em festivais internacionais.

Vale repetir que, no cinema, assim como na literatura, e em outras artes, o que importa não é o tema em si, mas a maneira com que ele é tratado pelos procedimentos cinematográficos. Em Um homem, uma mulher, Lelouch filma o romance de um piloto de corridas automobilísticas (Jean-Louis Trintgnant) e uma continuísta de cinema (Anouk Aimée). Os dois, viúvos, têm filhos, e o encontro inicial se dá na escola onde estes estudam. O relacionamento amoroso se desenvolve pela perspectiva de uma segunda chance e é marcado por lembranças (vindas em flash-backs). O diretor mistura imagens coloridas com imagens em preto e branco e o roteiro, bastante fragmentado, influenciou uma geração de publicitários. Destaque para a presença de Pierre Barouh, que canta "O samba da benção", de Baden Powell e Vinicius de Morais. Barouh, no filme, é visto nas recordações da mulher (fora o seu primeiro marido e morre num acidente de filmagem). Pode ser visto facilmente em DVD.

Antes de Un homme et une femme, Lelouch já tinha feito dois ou três longas sem expressão e alguns curtas, mas é neste que se inicia, realmente, como cineasta e desponta no cenário internacional. Logo a seguir dirigiu um dos episódios de Loin de Vietnam (1967), ao lado de monstros sagrados do cinema (que dirigiram os outros, a exemplo de Jori Ivens, Jean-Luc Godard, William Klein, Alain Resnais, Chris Marker, e Agnès Varda), que ficou inédito no Brasil. No mesmo ano, tentou reeditar o sucesso de Un homme, une femme com Viver por viver (Vivre pour vivre), com Yves Montand, Annie Girardot, a belíssima Candice Bergen, que representou a França no Festival de Mar Del Prata de 68, onde conquistou o prêmio de melhor atriz para Annie Girardot. Montand, aqui, um ator charmant, é um repórter de televisão cujo casamento com Girardot se encontra estagnado e vem a conhecer, numa viagem a Quênia, Candice Bergen, pela qual se apaixona. Estão presentes a dinâmica característica da mise-em-scène lelouchiana, a espontaneidade dos intérpretes e a poesia flutuante de suas imagens.

A seguir, Lelouch realizou A vida, o amor e a morte (La vie, l'amour, la mort, 1969), drama contra a pena de morte que representou a França no II Festival Internacional do Filme do Rio (organizado por Antonio Moniz Viana, o único evento cinematográfico verdadeiramente internacional que o Brasil já teve em sua história), em 69, conquistando o prêmio de melhor ator para Amidou. Que interpreta François Toledo, acusado de ter assassinado prostitutas. Condenado à pena de morte, ao caminhar para a guilhotina, lembra-se sua vida pregressa. A primeira imagem de La vie, l'amour, la mort é a da morte violenta de um touro, e o último plano é da morte violenta de um homem, sob a lâmina afiada da guilhotina (faz lembrar os excelentes Quero viver! (I want to life), de Robert Wise, e Não matarás, de Kieslowski). Filme arrematado com final agônico e de forte emoção. Será que os detratores contumazes de Claude Lelouch viram este filme?

Depois deste, Lelouch filma O homem que eu amo, com Belmondo e Girardot, Um homem como poucos (Le voyou, 1970), que considero sua obra-prima e uma das obras-primas do cinema francês em todos os tempos, e a deliciosa sátira políticaA aventura é uma aventura. Mas fica para a próxima coluna na terça vindoura estes e o resto da filmografia desse artista singular.

Em 1969, O homem que eu amo (L'homme qui me plait), com Jean-Paul Belmondo e Annie Girardot, procura repetir a fórmula estabelecida em filmes anteriores. Trata-se, evidentemente, de um love story, e Belmondo, numa cena dentro de um jatinho, repete, em mímica, para uma Girardot apaixonada, os tiques de Michel Poiccard, o seu personagem de Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, filme que detona a Nouvelle Vague e está a completar, neste ano em curso, o seu cinquentenário.

A obra-prima de Lelouch, contudo, é Um homem como poucos (Le voyou, 1970), filme que se perdeu no esquecimento coletivo e que necessitaria de uma urgente revisão para reavaliá-lo em sua dimensão certa. Thriller que sucede a L'homme qui me plait, Le voyou, desde a apresentação dos créditos, uma sequência musical de delirante movimentação cênica, já desperta o entusiasmo do espectador. Radiografia de certos podres das grandes organizações financeiras, assim como do cultivo do sensacionalismo pela imprensa e pela publicidade, Um homem como poucos é um filme engenhosamente construído. Jean-Louis Trintgnant faz um advogado que trapaceia com o banqueiro interpretado por Charles Denner (em seu melhor papel e numa performance inexcedível) o rapto do filho deste a fim de obterem do banco a recompensa.

Mas Trintgnant, ao invés de repartir a grana conforme a combinação inicial, devolve o menino e esconde o dinheiro. Achando-se traído, Denner o denuncia, e Trintgnant é condenado a doze anos de prisão, mas cinco anos depois consegue se evadir do cárcere e vem a conhecer uma mulher, Danièle Delorme, pela qual se enamora, e, através de seu cúmplice personificado pelo ator Charles Gerard, remete o dinheiro para ficar bem guardado na Suíça. Seu objetivo é se vingar de Denner, que acaba preso pela polícia. Trintgnant e seu sócio partem, então, para Nova York, alegando viagem para Montreal, onde a polícia os aguarda. O mau tempo, porém, desvia a rota do avião para Montreal. Neste final, Trintgnant recebe a notícia pela voz da aeromoça e um close up, mostrando todo a sua apreensão, fecha o filme.

Pierre Uytterhoeven é quem assina todos os roteiros dos filmes de Lelouch, mas se desconfia que se trata de um pseudônimo do próprio diretor. Lelouch sempre pilota a sua câmera e, como de hábito, aqui em Um homem como poucos, a música é de Francis Lai (que ao lado de Michel Legrand e George Delerue é um dos maiores partituristas do cinema francês). O filme como que propõe a questão: comparado a essa gente que vive da exploração da ingenuidade popular culturalmente desamparada, o voyou desta obra de Lelouch não chega a ser umméchant. A seguir, o diretor realizou Smic, smac, smoc, que ficou inédito no Brasil e não foi distribuído comercialmente, e que tem o premiado Amidou (ator lelouchiano por excelência e Catherine Allégret). Em 1971, uma sátira política que se constituiu num de seus maiores sucessos: A aventura é uma aventura(L'aventure c'est l'aventure), co-produção entre a França e a Itália, é uma aventura de humor crítico cuja inspiração o realizador atribui a Os três mosqueteiros e aos Pieds Nickelés - famosa história em quadrinhos francesa. Cinco criminosos (os franceses Lino Ventura, Jacques Brel e Charles Denner, os italianos Charles Gerard presença constante nessa fase lelouchiana, Aldo Maccione), certos e confiantes de que as clássicas fontes de sustento do submundo estão exauridas (os bancos estão vazios, as prostitutas se rebelam - a idéia e o roteiro são do realizador), decidem atualizar-se, adotando a técnica empresarial do neocapitalismo e, sobretudo, dando cobertura ideológica às suas atividades. Começam sequestrando Johnny Halliday e fazem o mesmo com um embaixador suíço e um general latino-americano, obtendo sempre altos resgates. A última de suas vítimas consegue entregá-los à justiça. Processados, condenados e finalmente salvos pelo clamor público - que vê neles paladinos da "contestação", os cinco se recolhem à África, onde são recebidos como heróis. Postos a serviço dos corruptos governantes locais, não renunciam, contudo, à mais sensacional de suas proezas: o sequestro do papa, por cujo resgate exigem e obtêm um franco por cabeça de todos os católicos do mundo.

Comédia dramática de fundo policial, A dama e o gangster (1973) é o filme imediatamente posterior a L'aventure c'est l'aventure. Ainda que não seja um de seus melhores, La bonne année, título original, fascina pela segurança da narração e por um cuidadoso registro de surpresas sem que a partitura entre em ação. A música, que seria a música do filme, é cantada numa boite, mas todo o desenrolar das reviravoltas com suspense a tem ausente. Também, aqui, em La bonne année, o uso das imagens em preto e branco e a cores revela a constante lelouchiano de significar por meio do cromático.

Em dezembro de 1973, o diretor de uma prisão dá liberdade condicional a Lino Ventura, ladrão de jóias, na esperança de, por seu intermédio, apanhar Charles Gerard, seu cúmplice no roubo de uma joalheria Van Cleef seis anos antes. Conseguindo iludir a polícia, Ventura (ator clássico da tradição cinematográfica francesa), se prepara para celebrar o ano novo com a bela Françoise Fabian, sua antiga amante, mas, ao chegar ao apartamento desta só encontra seu atual companheiro. A desilusão toma conta dele. Esgueirando-se sem ser visto, vai-se a lembrar dos lances do roubo (o filme quase todo é em flash-back, excetuando-se o momento presente no princípio e no final), da separação (quando foi preso) e da promessa que Françoise lhe fizera de esperar por ele.

Em 1974, um filme fascinante: Toda uma vida (Toute une vie), afresco sobre o cinema, o tempo que passa, a vida e o amor. E vejam que achado: o começo do filme é em preto e branco e seu estilo vai variando de acordo com a evolução da técnica cinematográfica; nas seqüências finais é em Technicolor. Um interlúdio de 20 minutos em que o casal no avião imagina o nosso mundo no fim do século foi eliminado pelo diretor nas cópias de exportação.

Marthe Keller e André Dussolier (um dos atores preferidos de Alain Resnais) sentam-se lado a lado num avião e apaixonam-se à primeira vista. Cada qual passou por várias situações dramáticas. Keller já tentara o suicídio, casara-se e se divorciara, tentando, depois, revolucionar os métodos de trabalho na indústria do seu falecido pai. Dussolier vivera de expedientes, estivera preso, sofrera um desastre ao sair da cadeia, aprendera a técnica fotográfica, fizera filmes pornográficos e comerciais e planejara realizar um filme que cobriria o espaço de tempo entre 1900 e o ano 2000.

Marriage (1975) parece que não foi lançado no Brasil. O gato e a rainha (Le chat et les souris, 1975), comédia com Jean Pierre Aumont, Serge Reggiani, Michèle Morgan, não foi visto por este comentarista. Mas a filmografia de Lelouch não pára por aqui.

Em meados dos anos 70, o fôlego de Lelouch se arrefece para ressurgir mais forte nos 80 (Retratos da vida/Les uns et les autres, 1981) e nos 90 (com o admirável Os miseráveis, 1993, versão livre, e totalmente lelouchiana do livro homônimo do célebre Victor Hugo), além de Tem dias de lua cheia.

Em 1976, Se tivesse que refazer tudo... (Si c'était à refaire), melodrama que marca o retorno da atriz Anouk Aimée (de Um homem, uma mulher), e assinala o primeiro trabalho de Catherine Deneuve com o diretor, trata, como sempre, do amor ("L'amour toujours l'amour"). O argumento gira em torno de uma presidiária, Deneuve, que, condenada aos 19 anos pelo assassinato de um banqueiro, sai da cadeia aos 35. Que fazer para recomeçar a vida? Ansiosa para encontrar o filho que somente veio a conhecer na prisão, Deneuve une-se, então, a uma antiga companheira de cárcere, Aimée, mas, para sua surpresa, vem a saber que o filho é amante da amiga. E se torna uma estranha entre eles.

Nada a acrescentar de especial a Si c'était à refaire, além da sempre competência formal do autor e do brilho de suas imagens. No elenco, além das citadas, os atores de sempre, como Charles Denner (que teria atuação marcante em O homem que amava as mulheres, de François Truffaut), Francis Hustler, Jean-Pierre Kalfon. A música, como de hábito, quem a assina é Francis Lai, e há uma canção de autoria de Pierre Barouh. Lançado em 1977 no Rio de Janeiro, o filme passou em brancas nuvens com a indiferença habitual da crítica, que sempre gostou de massacrar o cineasta.

Outro homem, outra mulher (Une autre homme, une autre chanche, 1977) é um Lelouch bem menor, um melodrama sentimental em ambiente de western e falado em inglês e francês. A tendência crítica, no entanto, de acusar o cineasta pela repetição não tem correspondência com a verdade do artista, pois todo autor, na verdade, se repete, constituindo-se seus filmes singulares como variações sobre um mesmo tema (Bergman, Fellini...).

Co-produção com capital francês e americano, Un autre homme, une autre chanche tem seu início em 1870, quando a França está em guerra com a Prússia. Os contratempos advindos do conflito bélico forçam Geneviève Bujold a fugir com o namorado (Franços Huster) para os Estados Unidos. Entrementes, na América, o veterinário interpretado por James Caan vê sua mulher violentada por um bandido que rouba seu bracelete índio. Caan, perdida a esposa, embarca, com o filho pequeno, para o sul. Passa-se um tempo e este se matricula no mesmo colégio no qual estuda o filho de Bujold e não se precisa dizer que vai nascer, entre Caan e Bujold (que está viúva), um relacionamento amoroso

Por uma dessas incompreensíveis injunções do mercado exibidor, a maioria dos filmes de Lelouch não foi importada no Brasil, e muitos permanecem inéditos. A considerar, também, sua extensa filmografia, vai-se aqui citar en passant alguns títulos para uma concentração maior naqueles que são considerados os mais brilhantes das duas últimas décadas - e não se quer, também, entrar numa quarta parte sobre o autor.

Robert e Robert (1978), com Charles Denner (sempre ele) e Jacques Villoret, é inédito em território brasileiro, assim como Edith et Marcel (1983), Vive la vie(1984), com Michel Piccoli e Charlotte Rampling, Attention bandits (1987), La belle histoire (1992), Hommes, femmes, mode d'emploi (1996), Hasards et coincidences (1998), entre outros menos notáveis.

Foram mal lançados, quase escondidos: Brindemos a nós dois (À nous deux), com Catherine Deneuve e Jacques Dutroc, Ir, voltar (Partir, revenir, 1983), com Annie Girardot e Jean-Louis Trintgnant, Um homem, uma mulher - vinte anos depois (Un homme, une femme, vingts ans déja, 1986), Itinerário de um aventureiro (L'enfant gâté, 1988), com Jean-Paul Belmondo, Amantes & Infiéis(...And now ladies and gentlement, 2002), com Jeremy Irons, Claudia Cardinale, entre poucos.

Em Les uns et les autres, Lelouch retoma, de certa forma, a idéia - base de outro de seus melhores filmes - Toda uma Vida (1974): uma história que passa por várias gerações e que tem alguns personagens-base. Em Toute une vie é a personagem interpretada por Marthe Keller que conduz os fatos. Aqui, é a sensibilidade artística de quatro famílias de Moscou, Paris, Berlim e Nova Iorque. Elas são unidas por uma linguagem comum - a música. Enfrentam as tragédias da II Guerra Mundial e do após-guerra. E se reúnem, num final apoteótico, em Paris, num concerto de gala aos pés da Torre Eiffel, em benefício da Unicef e da Cruz Vermelha, quando o coreógrafo Maurício Bejart coloca em cena todo seu imenso talento, para uma longa seqüência de verdadeiro delírio visual. Por causa desta sequência apoteótica, quando um dançarino executa o Bolero de Ravel, o filme, nos Estados Unidos, veio a se chamar Bolero. A partitura vem assinada por Francis Lai e Michel Legrand.

A palavra mais certa para definir Tem dias de lua cheia (Il y a des jours...et des lunes, 1992) é que é um filme simplesmente encantador. O dia de mudança no horário de verão altera o comportamento de várias pessoas numa cidade interiorana da França. Situações insólitas e inusitadas passam a acontecer: um crime sem um móvel visível, casais que se desentendem. A narrativa, que compreende um grande número de personagens envolvidos em várias situações, é de natureza polifônica. No elenco, Gerard Lanvin, a grande Annie Girardot (inesquecível como a Nádia de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti), François Hustler, Philippe Leotard. A poesia reina em todo o seu desenrolar. A poesia e a música que abraçam este filme singular.

Leitura original de Os miseráveis, famosa obra de Victor Hugo, numa versão completamente livre e adaptada a outros tempos, o filme é um delírio na composição de sua estrutura narrativa, de sua mise-en-scène. Belmondo faz um ex-pugilista analfabeto que ajuda uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e vem a encontrar paralelos significativos entre a sua vida e a do personagem do escritor francês. A rigor, não se trata propriamente de uma adaptação, mas o livro é tomado como marca referencial. Les miserables apresenta o comportamento dos franceses durante a guerra, a perda de valores morais provocada pela opressão em suas diversas formas, e a idéia de que a História é um ciclo que se repete de tempos em tempos. Além de Belmondo, tem-se novamente Annie Girardot.

Entre seus últimos filmes, um episódio (segmento: França) de uma obra coletiva sobre o 11 de setembro dirigida por vários cineastas, A coragem de amar (Le courage d'aimer, 2005) e Crimes de autor (Roman de gare, 2007). E este deslumbrante Ces amours-là, que sintetiza sua obra.

22 dezembro 2013

Bye, bye, Birdie!

A existência em DVD de Adeus, amor (Bye bye Birdie, 1963), comédia romântica musicada de George Sidney, provocou a nostalgia deste comentarista e uma viagem ao passado, quando o cinema americano, ainda que com certa ingenuidade, tinha, além de engenho e arte, graça e envolvimento, fazendo do espectador um verdadeiro cúmplice do espetáculo. Este comentarista adquiriu o DVD de Bye bye Birdie e passou duas belas horas a contemplá-lo. Muitos poderiam achar neste filme um teor narrativo já gasto, preocupados que se encontram com a desconstrução de tudo. É bem de ver que um filme narrativo clássico, se bem feito, se realizado com talento, pode ser até melhor do que muitos outros que procura mostrar que aqueles os fazem são cineastas, são autores. O filme para ser bom precisa, antes de mais nada, de talento. E George Sidney o tem para dar e vender.

Visto em meados dos anos 60, no antigo cinema Liceu da rua Saldanha da Gama,  Adeus amor (Bye bye Birdie, 1963), com exceção de uma rápida aparição na televisão (no Cineclube da Globo, quando passava filmes no original e com legendas em português), desapareceu de circulação até a sua chegada em DVD distribuído pela Columbia. É um musical anacrônico, quando o gênero já dava sinais de exaustão (o último musical clássico, na acepção da palavra, foi Gigi, em 1958, de Vincente Minnelli), mas muito inventivo e divertido. Após este, o gênero, que dominou Hollywood por décadas, ainda apareceu em grandes produções, a exemplo de Amor sublime amor (West Side Story, 61), A noviça rebelde (The sound of music, 1965), ambos de Robert Wise, Positivamente Millie, de George Roy Hill, entre poucos outros, até entrar em profunda decadência com o fiasco de Holly Dolly!, de Gene Kelly, em 1970.

O diretor George Sidney é um especialista do gênero e tem pleno domínio dos recursos do espetáculo musical, considerando ter feito alguns Ziegfeld Follies, Os três mosqueteiros, com Gene Kelly, filme de aventura todo cantado e dançado, O barco das ilusões (Show boat), Dá-me um beijo (Kiss me Kate), Meus dois carinhos ('Pal Joey), Amor a toda velocidade ('Viva Las Vegas, 1964), o melhor filme de Elvis Presley, e A moedinha do amor (Hal a sixpence, em 1967, que assinala o encerramento de um carreira que começou em 1937). Além do capa/espada coreográfico, um dos melhores filmes de aventura de todos os tempos: Scaramouche, com Stewart Granger.

Visão satírica do advento dos ídolos do rock e a consequente histeria provocada em seus fãs, Bye bye Birdie tem um personagem cantor que remete a Elvis Presley (o filme é de 1963, e este estava ainda no auge da carreira). Visão também irônica do american way of life, mas o que encanta sobremaneira no filme é a excelência de alguns números musicais, a suavidade com que Sydney trata o tema, a engenhosidade do argumento e, principalmente, a graça e a beleza de Ann-Margret, que depois ficaria cativa do diretor em filmes como Amor a toda velocidade, entre outros. Sydney também investe na contemplação da 'cultura pop' então emergente e que causou uma devastação no cenário musical tradicional.

Conrad Birdie (Jessie Pearson) é um cantor de rock, um super star, que, convocado para o exército, causa revolta em seus fãs, que realizam intensas passeatas em Washington (É bom lembrar que o mesmo, nos anos 50, aconteceu com Elvis Presley, que serviu o exército para desgosto de seus admiradores e, quando voltou, trabalhou em Saudades de um pracinha). Albert F. Peterson (Dick Van Dyke) é um empresário musical que está quase em falência. Mas, com a notícia da convocação de Birdie, sua noiva, Rose De Leon (Janet Leigh), combinando com Ed Sullivan, famoso 'show man' americano que aparece como ele mesmo (himself), tem a ideia de escolher uma adolescente do interior para ser beijada por Birdie na sua despedida antes de partir. Birdie cantaria, então, uma música de Pearson, que venderia, em conta pequena, mais de um milhão de discos, salvando-o assim da falência.


Sullivan aceita o acordo e Birdie é levado à cidadezinha onde mora Kim McAffe, e a sua chegada chama a atenção de todo o lugar, com discursos, inclusive o do prefeito. Birdie desencadeia uma verdadeira polvorosa. Kim e suas colegas exultam, menos o noivo dela, Hugo (Bobby Rydell), que, ciumento do astro, acaba consentindo, ainda que contrariado. O número de Birdie aconteceria no show televisivo de Sullivan coast to coast, sucedendo a um balé russo. Mas os empresários deste revelam que a apresentação vai consumir todo o tempo do programa, ficando Birdie para o fim e sem poder cantar a música de Peterson (objetivo de todas as tratativas de Rose para tirar o noivo da falência, possibilitando uma vendagem da gravação de sua música pelo astro pop). Mas tudo se resolve segundo o figuro, graças aos esforços de Rose, vivida por uma Janet Leigh a todo vapor. A sequência em que dança para o comitê soviético, na tentativa de enganá-lo, foi cortada da versão que passou nos cinemas, mas aqui, no DVD, está integral. A partitura musical é do consagrado Charles Strouse (Annie), e quem escreveu as canções, Lee Adams.

A melhor seqüência de Bye bye Birdie é a do café/boite, quando Anne-Margret mostra todo o seu imenso sex-appeal além de seus atributos como dançarina e cantora. Há, também, aqui, uma erupção de seu lado sensual, escondido no resto do filme, mas que se revela à toda velocidade neste momento. Um desafio lançado por ela em direção a Hugo, seu namorado, que também faz emergir de seu ar juvenil um sentimento de maturidade. O momento em que Dick Van Dyke encontra Janet Leigh no jardim, aborrecida, e tenta fazê-la alegre, é desenvolvido com a naturalidade estilizada de Sydney e, também, pela performance de Van Dyke. A rigor, quase todas as sequências musicais são boas, bem dirigidas, com um sentido exato de inspiração, contenção e, se for o caso, explosão.

18 dezembro 2013

Carl Dreyer: sensibilidade e ascese

A palavra (Ordet, 1954), de Carl Theodor Dreyer
Há quarenta e cinco anos morria em Copenhague (Dinamarca) Carl Theodor Dreyer (1889/1968), um dos maiores realizadores cinematográficos de todos os tempos, cujos filmes vieram a influenciar toda uma geração de cineastas, principalmente os nórdicos, a exemplo de Ingmar Bergman, assim como o contemporâneo e polêmico Lars Von Trier (Dançando no escuro, Ondas do destino, Dogville, Os idiotas...). Seus filmes principais já foram lançados em DVD e se constituem em obras fundamentais para o conhecimento não somente de um autor excepcional, mas, também, e principalmente, de um cinema particular, sublime, e extremamente expressivo na sua singularidade. Não se pode entender o cinema contemporâneo sem as bases referenciais do pretérito. E Dreyer, neste sentido, por artista criador, situa-se no Olímpio dos diretores da chamada sétima arte.

O ensaísta baiano Walter da Silveira, quando enviou para a antiga revista Filme/Cultura, em 1968, a relação de seus dez maiores filmes, colocou La passion de Jeanne D’Arc em primeiro lugar. O crítico tinha verdadeira adoração pelo cineasta dinamarquês. Dreyer morreu, no entanto, sem alcançar o seu tão sonhado projeto, o de filmar a vida de Jesus Cristo. Sobre Gertrud, o último filme, escreveu Jean-Luc Godard no Cahiers du Cinema: “Gertrud iguala em loucura e beleza as últimas obras de Beethoven”. É preciso dizer, portanto, que o DVD está a funcionar como um resgate do grande cinema. Mas vamos ver aqui alguma coisa sobre A palavra (Ordet).

Seguindo o estilo de Dies Irae – planos-sequências e recitações, lentos movimentos de câmera e intercalação de breves close ups, A palavra (Ordet) representa a plenitude de Carl Theodor Dreyer no tocante à harmonia da complexidade, a ascese de sua dinâmica espiritual e artística e à sabedoria da realização. Como em La passion de Jeanne D’Arc (1928) e Dies Irae, encontramos temas iniciais que se colocam em prosseguimento, como, por exemplo, em Ordet, uma acusação da intolerância e o orgulho dos exclusivistas da verdade. A morte constitui o vértice dramático, mas, também, aqui, Dreyer adota uma clara postura na ordem do sobrenatural. Com uma sinceridade conseqüente, Dreyer conduz o filme até o milagre, o qual só é possível, em seu caso, como consequência de um ato de fé total, puro, sensível e compartilhado. Desta forma, o realizador dinamarquês se situa acima de seu tempo e do lugar: a morte precede naturalmente o milagre, e este determina a reconciliação consciente e coletiva. Ordet se desenrola como uma sinfonia de sensibilidade e de austeridade, em que o orgulho sectário de Morten e Peter se harmoniza com a despreocupação religiosa de Mikkel, o despertar amoroso de Anders, o sossegado intimismo de Ingers e a loucura de Johannes, cujas récitas proféticas salmodiam o filme, levando-o com grande fluidez até a cena final, a do milagre. Neste momento, Johannes recupera toda a sua lucidez, a plena razão, e, a falar com a menina, sua sobrinha, com o apoio desta, tem força suficiente para conseguir a ressurreição desejada.

Em uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a indiferença só pode representar sintoma de incultura (como alguns, que se dizem entendidos de cinema, e que assistiram ao DVD de Ordet, e viram nela uma obra acadêmica e ultrapassada, pessoas, aliás, que costumam frequentar com a assiduidade das bestas as salas do circuito Bahiano) e, desde logo, de ausência total de sensibilidade artística. Ordet, monumento agora disponível em disco, se baseia na obra homônima de Kaj Munk, pastor protestante assassinado pelas tropas de Hitler que ocuparam seu país, e que, desafiando-as, ao proclamar certas verdades do púlpito de sua igreja, foi logo morto.

A ação de Ordet se localiza num povoado dinamarquês. O velho Morten Borgen (Henrik Malberg) e seus filhos Mikkel (Emil Haas Christensens) e Andrés (Cay Kristiansen) buscam o terceiro filho de Borgen, Johannes (Preben Rye), que em sua loucura afirma ser Jesus Cristo. Inger (Birgitte Federspiel), esposa de Mikkel e que está grávida, tenta consolá-los. Enquanto Borgen discute com seu vizinho Peter (Ejner Federspiel), pertencente a uma seita religiosa distinta, Inger sofre uma urgente intervenção médica. O caçula dos Borgen quer se casar com a filha de Peter, mas este reage e não aceita, obrigando o velho a ir discutir com ele. Enquanto ele conversa com o outro, o recém-nascido de Inger morre e esta não tarda em seguir-lhe, morte, aliás, que havia sido profetizada por Johannes. Durante os preparativos do funeral, Mikker não pode conter a sua dor, quando aparece Johannes, lúcido, a lhe reprovar sua falta de fé. E, através de sua intervenção, Inger volta à vida.

A temática de Dreyer se centra no ser humano como sujeito de valores absolutos. O homem é observado psicologicamente e a sua dignidade defendida frente a toda intolerância, coação física ou moral. Através da tolerância, da bondade e do sofrimento, chega à ideia abstrata do amor e da pureza espiritual, assim como, no âmbito religioso, à fé, e no metafísico, às relações do homem com Deus. Sua técnica narrativa, influenciada em suas origens pela escola cinematográfica alemã, expressionista, e pelos principais criadores do cinema soviético, adquire caracteres próprios e inconfundíveis a partir de La passion de Jeanne D’Arc. Mediante o uso de diversos elementos, em especial os movimentos lentos de câmera, serenidade expositiva, grande direção dos atores, iluminação difusa umas vezes e contrastada em outras, utilização do silêncio como valor dramático, e progressiva dramatização da ação interna, passa, imperceptivelmente, do físico ao moral, do cotidiano ao existencial ou metafísico. Para Dreyer, o estilo é a incorporação da alma do artista à obra do criador, isto é, sua personalidade. Segundo o criador de Ordet, sem estilo não há obra de arte.

P.S:Carl Theodor Dreyer nasceu em Copenhague (Dinamarca) em 1889 e  veio a falecer nesta mesma cidade em 1968, quando já tinha captado todos os recursos para o sonho de sua vida: filmar a trajetória de Cristo na Terra. Morreu com 79 anos. Gertrud, seu canto de cisne, rodado em 1964, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven, despreza qualquer influência do cinema que lhe era contemporâneo: anti esnobe, lento, seco, direto, tendo a palavra como veio condutor.

16 dezembro 2013

O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão/Veredas

O jornalista e cinéfilo Dimas Oliveira, o cineasta Tuna Espinheira, Juraci Dórea e outro da equipe.
Terça, dia 17, às 21 horas, numa das salas dos confortáveis cinemas recém-inaugurados do Shopping Barra, a avant-première do mais novo filme de Tuna Espinheira: O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão/Veredas. O texto abaixo tem como escrevinhador o próprio Tuna, velho de guerra.

"Era uma vez o sertão que virou museu a céu aberto, ao sol, a chuva, ao tempo, ao vento... tudo se fez precisamente assim, quando o artista, Juraci Dórea, teve a ideia do Projeto Terra e  arrumou seu matulão para cair no mundo, fazendo às vezes do pregador bíblico, João Batista, adentrando as veredas do sertão baiano, descortinando suas icônicas esculturas, de madeiras vestidas de couro, com uma linguagem contemporânea, desconhecida naqueles ermos, bradando no deserto.  Logo/logo, viriam as exposições itinerantes, ciganas, de quadros de pintura, de porte razoável de tamanho, com motivos populares, viriam a alegar as retinas cansadas dos viventes da região. Um festão em cada lugar por onde passava. E assim foi que, estas semeaduras de arte, em léguas tiranas , no agreste, através de documentações fotográficas, chegaram à mídia, escrita, falada, televisada, chamou a atenção, de um público vário, por todo canto, principalmente, os críticos das artes plásticas, entre eles Frederico Morais, o que tornou visível aquela épica,  emblemática e indômita forma do fazer arte em dialogo interativo com um mundo invisível. E deu-se que, o trabalho do artista ganhou botas de sete léguas e asas de albatroz, e, invertendo a normalidade do processo, saiu do assombroso museu a Deus dará, para os espaços emblemáticos das Bienais, São Paulo, Veneza, Cuba... e as inúmeras exposições, Brasil afora e além fronteiras... E o Sertão virou mar...

Nosso projeto de um filme/documentário, assim foi em busca de contar esta estória cuja gênese é o distante 1982, tempo abissal, sobretudo para encontrar vestígios das esculturas pioneiras, urdidas como arte efêmera, sobretudo as esculturas, construídas com madeiras e vestidas com o couro, expostas ao tempo, sujeita aos predadores naturais ( o couro é precioso e de grande utilidade naqueles meios), o que justificava a sua morte anunciada. Juraci Dórea embarcou nesta canoa, foi um dos mais indômitos membros da equipe, botou a mão na massa, além de personagem desta estória, em imagem em movimento, agiu, todo o tempo como cúmplice do nosso fazer. Plantamos, de Feira de Santana, passando por Monte Santo e Canudos, quatro novas e enormes esculturas, conversamos com muita gente sertaneja... À mercê do calor da hora, fomos colhendo material... O possível e impossível para contar a saga deste estranhíssimo Projeto Terra, catando, aqui e açula, o combustível necessário para que La Nave Vá... E ela foi..
e-mail: tuna.dandrea@gmail.com 

15 dezembro 2013

Dupla homenagem: Alexandre e Sílvio Robatto

Pioneiro do cinema baiano, Alexandre Robatto, Filho, começa a fazer filmes, nos anos 30, com uma câmera de 8mm, registrando os ainda incipientes sistema de abastecimento d'água da cidade de Salvador.Antes dele, tem-se notícias de alguns nomes como os de Diomedes Gramacho, José Dias da Costa, mas cujos filmes desapareceram - conta-se que Gramacho, desesperado com um incêndio em seu laboratório, jogou todo o seu trabalho nas águas da Bahia de Todos os Santos. Alexandre Robatto, Filho, desenvolveu melhor o seu pendor cinematográfico, quando partiu para a bitola de 16mm nos anos 40, e se dedicou ao registro documentário (A guerra das boiadas talvez seja o exemplo mais acabado desta fase). Vale ressaltar, que o trabalho cinematográfico feito por Robatto é um trabalho de aventura e heroísmo, considerando que na Bahia não existiam laboratórios que pudessem revelar os filmes, nem mesas de montagem, equipamentos para mixagem, enfim, nada: tudo tinha que ser feito, fora as filmagens, no Rio de Janeiro. É na década de 50 que realizou seus filmes esteticamente mais elaborados, a exemplo de Entre o mar e o tendal (1953), Xaréu e Vadiação (1955).

Robatto registrou acontecimentos e eventos marcantes da velha província da Bahia, a exemplo de Quatro séculos em desfile, quando da comemoração gigantesca dos 400 anos da fundação da cidade em 1949, um desfile monumental que se não tivesse sido filmado pelas lentes do cineasta ficaria apenas na memória de alguns sobreviventes ou nos arquivos empoeirados dos jornais. Chianca di Garcia, já uma celebridade, foi o organizador geral da manifestação cívica. Também no mesmo ano, na ocasião em que os restos mortais de Ruy Barbosa vieram do Rio para serem alojados no então recém-inaugurado Fórum, que dá nome ao ilustre jurista, o desfile que acompanhou o carro está retido nas imagens de A volta de Ruy.

Os refrigerantes Fratelli Vitta produziram O regresso de Marta Rocha, em 1955, quando da volta à Bahia da formosa baiana que não conseguiu o pódio de Miss Universo por causa de "uma polegada a mais", como fala célebre música popular. Robatto, neste documentário precioso, mostra desde a chegada de Marta, num acanhado aeroporto provinciano, a sua passagem em carro aberto pelas ruas do centro histórico, uma festa em sua homenagem no Clube Bahiano de Tênis, e uma visita à fábrica de refrigerantes patrocinadora, que, além destes, fabricava também cristais da melhor qualidade e que eram, inclusive, exportados.

Seu filho, Sílvio Robatto sempre o acompanhou no itinerário da captação das imagens em movimento e é autor de alguns curtas, entre os quais, Igreja.

Dentista por profissão, o cinema era um hobby, que se tornou, com o passar do tempo, em importante referência para a história do cinema baiano. Não seria exagero dizer que Barravento (1959/1962), primeiro filme de Glauber Rocha no longa metragem, tem uma certa influência da estética robattiana.

Entre os dias 17 e 21 de dezembro, realiza-se, no Teatro Vila Velha, a Mostra Alexandre e Sílvio Robatto, com uma exposição de fotos e o lançamento de Sílvio Robatto, um homem feliz, escrito por Symona Gropper, além da exibição de dois filmes de Robatto e o documentário Os filmes que eu não fiz, de Petrus Pires. 

14 dezembro 2013

Lançamento de livros no Centro dos Correios

Os escritores Samarone Lima, Wellington de Melo, Plácido Villanova e Bernardo Almeida lançam seus livros, dia 18 de dezembro, quarta, no Centro Cultural Correios. A conferir.

11 dezembro 2013

"O Nono Mandamento", de Richard Quine

Há melodramas e melodramas. Muitos beiram ao dramalhão, ao apelo excessivo aos sentimentos, outros são refinados, sofisticados, chegam a nos causar estesia, como podem servir de exemplos os melodramas de Vincente Minnelli, Douglas Sirk, entre outros. Richard Quine, príncipe da sofisticação e da elegância, é um realizador notável, quer nas comédias, quer nos melodramas - Sortilégio do amor, Como matar sua esposa, Aconteceu num apartamento, Quando Paris alucina... Em O nono mandamento (Strangers when we meet, 1960), vídeo que está aqui na página, um arquiteto casado (Kirk Douglas) apaixona-se pela vizinha também do mesmo estado civil. Além dos dois principais, Barbara Rush e Walter Matthau, Ernie Kovacs. Partitura de excelência de George Dunning.

10 dezembro 2013

"Nasce uma estrela" reinventa o CinemaScope

A Warner lançou, já há alguma tempo (e parece que está esgotado), no mercado um DVD duplo contendo a versão restaurada de Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1955), de George Cukor, com interpretações inexcedíveis de Judy Garland e James Mason. Quando do lançamento do filme nos anos 50, a Warner, por achar excessivo um musical com três horas de duração, cortou 27 minutos, desfigurando, com isso, esta obra-prima. Há pouco mais de dez anos, um abnegado pesquisador do American Film Institut pediu ajuda à Academia de Artes e Ciências de Hollywood a fim de que esta solicitasse à Warner uma permissão para que o pesquisador desse uma busca nos depósitos da companhia. Atendido ao pedido, este começou a procurar e acabou por encontrar os 27 minutos cortados. Estragados, precisou restaurá-los, ficando três minutos apenas em fotos fixas pela impossibilidade de revivê-los no celulóide. Esse DVD duplo, portanto. é uma preciosidade, pois o resgate de um filme extraordinário, que assinala a maior interpretação de Judy Garland no cinema. Ela, na época, estava profundamente depressiva - sempre dependendo de álcool e barbitúricos e, para conseguir trabalhar no filme, fez um esforço enorme para se livrar das drogas. Tem um desempenho maravilhoso como Vicky Lester, a cantora que, descoberta por Norman Mailer (James Mason, soberbo), ator famoso de Hollywwod, e que se apaixona por ela, ascende ao estrelato enquanto Mailer, derrotado pelo alcoolismo, vê a sua decadência. Enquanto ela sobe, ele cai. É a segunda versão - e a melhor - dessa história - a primeira, dos anos 30, foi feita por William Wellman, com qualidades inegáveis já que este diretor era um especialista, mas a terceira, de Frank Pierson, com Barbra Streisand, de 1975, é um lixo. 

O cinemascope, que a Fox introduzira em 1953 em O Manto Sagrado (The Robe), mas que já havia sido inventado pelo francês Henri Chrétien há algumas décadas, não tinha ainda sido utilizado com um propósito estético e linguístico determinado até que Cukor fizesse Nasce uma Estrela. O cineasta revolucionou o cinemascope e mostrou uma utilização extraordinária de sua amplitude retangular em função do tecido dramatúrgico. O que pode ser verificado no número no qual Garland conta a sua trajetória - um dos maiores e melhores da história do cinema, que dura 18 minutos e foi, na versão anterior, cortado pela Warner, mas que na cópia do DVD está completamente restaurado. É preciso, porém, que a versão do DVD contemple toda a extensão da tela anamórfica, ou, então, seja formatado. Tudo em A Star is Born é uma promoção do encantamento, da beleza, apesar do tom trágico do final. É um filme sobre a mise-en-scène e, também, sobre o drama do alcoolismo, que se estende, aqui, para o drama da própria condição humana. 

Por pensar em Nasce uma estrela, há filmes que podem ser vistos em DVD sem perder, por assim dizer, a sua 'aura'. E outros que, no disquinho, são maltratados, perdem a sua integridade, havendo interferência no espaço da totalidade de seus enquadramentos. A experiência de se estar numa sala escura, e de ver um filme na tela grande, é fundamental. Quando se assiste ao DVD, há, no processo de comunicação entre a emissão e a recepção, 'ruídos indesejáveis - a pequenez da tela, pessoas que passam, o telefone que toca, um familiar que pergunta, que fala etc. No 'texto' imagético propriamente dito, há os problemas da diminuição e da preparação psicológica daquele que vê o vídeo. Numa sala escura, o espectador prepara-se para ela. É verdade que existem os aficionados mais atentos - como este comentarista - que, por respeito à obra cinematográfica e porque acha que toda atenção é pouca, não assistem ao vídeo em sala de estar familiar, reservando-se para a calada da noite, quando todos estão nos braços de Morfeu. E podem ficar, sozinhos, a fruir o espetáculo. Mas como se ia dizendo, há filmes que satisfazem em vídeo e outros que são destruídos. Exemplos: filmes realizados em planos fechados e que se passam em interiores podem ser vistos em vídeo. Já obras que exploram grandes espaços, têm muitos planos gerais e de conjunto são prejudicadas na fita magnética. E existe o problema do filme originariamente filmado em cinemascope. Como sentir 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, na pequenez do aparelho doméstico? É simplesmente impossível. Neste caso, tem-se, apenas, uma idéia do filme. 


Se não fosse pelo aparelho de DVD, o cinema do pretérito somente poderia ser visto em cinematecas. E como aqui na Bahia não existem estas, o baiano ficaria a ver navios. Se, por um lado, a visão de um filme em digital não se pode comparar à sua contemplação na sala escura de um cinema, por outro, o cinéfilo tem a oportunidade de ver em  DVD - em alguns casos - quase toda a obra de um realizador importante, de estudá-la, de repetir as cenas, as seqüências, etc. Há, no mercado, quase três dezenas de fitas de Alfred Hitchcock. A nova geração, sem o advento do vídeo, estaria condenada a desconhecer grandes e imprescindíveis clássicos do cinema. Além do DVD, uma perspectiva se abre com as televisões a cabo e por assinatura que possuem canais especializados em filmes bons e importantes, funcionando como verdadeiras cinematecas. Já passou o tempo em que se faziam sacrifícios memoráveis para se ver um filme por acaso perdido no circuito.