O nosso colaborador Professor Jorge Vital de Brito Moreira vem prestigiar este blog, mais uma vez, com sua exegese de um premiado documentário realizado nos Estados Unidos. Vamos ler com atenção a sua análise:
"Dirigido por Judith Ehrlich e Rick Goldsmith o filme documentário The Most Dangerous Man in America: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers é narrado em primeira pessoa pelo próprio Daniel Ellsberg quatro décadas depois do sucedido. O filme está baseado no livro Secrets: A Memoir of Vietnam and the Pentagon Papers (2002) Segredos: memória do Vietnã e os documentos do Pentágono de autoria do próprio Daniel Ellsberg. O livro e o filme contam a história de uma conversão político ideológica.
Uma das grandes qualidades do documentário é poder mostrar e provar que a história oficial de USA e do seu imperialismo é construída sistematicamente a base de mentiras, enganos e falsificações fornecidas pelas autoridades governamentais para manipular ao público nacional e internacional.
Atualmente, é quase sempre através de excelentes documentários que podemos tomar conhecimento da verdadeira história do império de USA; é quase sempre através desta história não oficial (que grande parte dos cidadãos estadunidenses ignoram) exibida por artistas e escritores rebeldes (ou revolucionários) que o grande público tem tido a oportunidade de ser realmente informado do inimaginável abuso de poder que existe por detrás das (des)informações propagadas pelos aparatos ideológicos do Estado (a escola, a igreja, os partidos políticos, os jornais, os meios de comunicação) estadunidense.
Para todos aqueles que desejam ir ao cinema não somente para se distrair mas para tomar conhecimento do que está realmente acontecendo atrás da fachada e da ilusão de que USA é uma sociedade formada politicamente por uma “democracia representativa” que defende a “liberdade de expressão”, eu sugeriria: tratem de assistir urgentemente ao documentário.
Seguindo a pista dos documentários retóricos (realizados pelo diretor Michael Moore em Bowling for Columbine, Fahrenheit 9/11, Capitalism: A Love Story), o filme de Judith Ehrlich e Rick Goldsmith obteve três prêmios internacionais fora de USA e a nomeação para o Oscar de melhor documentário. O filme nos oferece uma oportunidade única de poder acompanhar as principais imagens (em fotos, entrevistas, documentários) dos extraordinários acontecimentos que mudaram a historia dos Estados Unidos da America na década de 1970.
Em 1971, Daniel Ellsberg, um alto estrategista militar que trabalhava para o Pentágono e a Rand Corporation, vazou para o jornal New York Times, Washington Post e outros diários de USA umas 7000 paginas dos documentos do Pentágono (the Pentagon Papers). Para que o leitor faça uma idéia da importância da função de Daniel para o processo de toma de decisões do governo estadunidense, basta com mencionar, por agora, que ele foi assessor do Secretário da Defesa Robert McNamara (governos de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson) e do famigerado Secretário de Estado Henry Kissinger (governo de Richard Nixon).
Decepcionado e indignado com a conduta imoral dos seus chefes e dos cinco presidentes dos USA na guerra do Vietnã, Daniel começou a acreditar que a revelação daqueles documentos secretos (top secret)- que registrava a infame historia da guerra- era crucial para parar a guerra em Indochina. Por isso, ele decidiu comunicar ao povo estadunidense as mentiras, os enganos e as manipulações que os governos de seu país estavam utilizando para dar continuidade a seus crimes de guerra no extremo oriente.
Inúmeras entrevistas, curta metragens e fotografias realizadas naquela época com Daniel Ellsberg (com seus colaboradores e seus inimigos) para a televisão, o cinema, o radio e os jornais de USA não somente fazem parte integral do riquíssimo registro visual-auditivo do filme, mas contribuem ativamente para a gestação da forma e do estilo do documentário. Assim, o filme mostra diretamente as imagens, os nomes e as atuações daqueles extraordinários seres humanos que mesmo enfrentando as ameaças do governo (a perda do emprego, a prisão e a separação da família) seguiram a honradez de suas consciências e lutaram ao lado de Daniel para publicar os documentos secretos (o relatório encomendado por McNamara).
Naturalmente, Daniel não podia fazer tudo sozinho, por isso teve que confiar na solidariedade e na ajuda de amigos, familiares e colaboradores que estavam radicalmente conscientes da necessidade fundamental de realizar aquela tarefa extremamente perigosa
Entre os colaboradores de Daniel, nessa epopéia redentora se encontravam sua segunda esposa Patricia, o historiador Howard Zinn, Noan Chomsky e muitos outros indivíduos cujas presenças e nomes aparecem legendados no documentário. Logicamente que entre os opositores e inimigos de Daniel se encontravam os funcionários governamentais, os militares, os agentes do FBI e da CIA, que trabalharam para o presidente Richard Nixon e seu conselheiro Henry Kissinger: todos eles eram inimigos e fizeram tudo a seu alcance para destruir a carreira e a vida de Daniel e seus colaboradores. Felizmente, não conseguiram prolongar a campanha de perseguição e infâmias, e a verdade, saiu, neste caso, vencedora
As primeiras cenas do documentário são formadas por planos de detalhes e mostram o movimento bilateral de uma luz que varia do verde ao negro sobre um mapa do sudeste asiático, acompanhado do som de uma maquina fotocopiadora. Logo, sob o fundo negro, começa a aparecer os créditos, para depois surgir outro plano de detalhe mostrando o lado direito de um rosto (e de um olho fixo) banhados pela luz esverdeada da fotocopiadora. Outro plano de detalhe (o terceiro) mostra a mão de um individuo rodando um mostrador de um cofre e sugere que ele está inteirado do segredo do cofre e da confidencialidade (“top secret”) dos documentos fotocopiados. A propriedade dessa seqüência de imagens está no fato de mostrar ao espectador, desde o principio, a notável função da fotocopiadora para detonar os acontecimentos que formam o tema central da vida de Daniel e do filme. Assim, as primeiras cenas da abertura funcionam também para colocar o espectador dentro do clima de extrema tensão, de suspense e do perigo iminente que existia para o individuo que estava operando a fotocopiadora.
Em seguida, sobre as imagens de documentos confidenciais “top secret”, surge a voz (40 anos depois) do próprio Daniel Ellsberg que daqui pra diante será o protagonista do filme e da trilha sonora do documentário. A voz, segura e serena de Daniel em 2009, evoca cenas do passado para explicar porque tomou uma decisão tão perigosa porém transcendental para mudar a historia contemporânea: informar ao publico estadunidense das mentiras e manipulações das autoridades do governo de USA sobre a Guerra do Vietnã. Sem nenhuma sombra de duvida, foi a decisão e a coragem de Daniel Ellsberg (uma consciência que deveria servir de exemplo a todos os funcionários governamentais) de fotocopiar estes documentos secretos e entregá-los ao New York Times, ao Washington Post e a outros para a sua publicação. Esta se revelou determinante no solo para terminar com a guerra do Vietnã como para provocar o impeachment do presidente republicano Richard Nixon.
Entre as imagens dos poderosos inimigos de Daniel, vemos a Mister Richard Nixon discursando para o povo estadunidense. Nele, ouvimos Nixon dizer: “Devemos perder o péssimo costume de chamar de herói aqueles que roubam documentos do governo para publicar nos grandes médios de comunicação.” Adiante, também entenderemos o título do documentário quando escutamos a voz do famigerado Secretário Henry Kissinger dizer que “Daniel Ellsberg é o homem mais perigoso na America”.
O filme também coloca a disposição do espectador o som das gravações em fita das conversas do Presidente Nixon (quando se reunia com a sua equipe de colaboradores), o que nos permite testemunhar o lado monstruoso e criminal do poder: durante uma reunião com Henry Kissinger escutamos a voz de Nixon falar arrogantemente para Henry: “- I don’t give a damn about the lives of theVietnamese.” (Me vale um caralho a vida dos vietnamitas)
Henry replica com uma voz impassível: “- I am only concerned about civilians because I don’t want the world mobilize against you as a butcher.” (Eu só estou preocupado porque eu não quero que o mundo se mobilize contra você como carniceiro)
Em outras das fitas gravadas, escutamos, com escalofrios no corpo, Nixon revelar para Kissinger que está considerando usar seu poder para lançar bombas atômicas contra o povo do Vietnã.
Felizmente, a publicação dos documentos desmoralizou completamente a administração do Presidente Richard Nixon e Henry Kissinger. Como sabemos, a guerra do Vietnã foi finalizada 9 meses depois da resignação de Mister Richard Nixon. A guerra deixou um saldo terrifico de aproximadamente dois milhões de vietnamitas assassinados e 58.000 americanos mortos em Indochina.
Sem dúvida: assistindo a este documentário o receptor estará melhor capacitado para imaginar concretamente as semelhanças e as equivalências não somente entre a política terrorista do governo de Richard Nixon e a dos governos que lhe antecederam (Harry S. Truman, Dwight D. Eisenhower, John F. Kennedy, Lyndon B. Johnson) como também a dos governos que lhe sucederam (Ronald Reagan, George Bush, Bill Clinton, George W. Bush e Barak Obama).
Em resumo, por detrás da máscara dos discursos “democráticos” oficiais dos presidentes de USA; do discurso de seus funcionários, deputados, senadores e de seus militares, podemos comprovar que o abuso de poder continua impune em USA, pois continuam os injustificados crimes de guerra (a tortura, os assassinatos, etc.) contra a população civil do Iraque, do Afeganistão e do Paquistão e o documentário é um poderoso instrumento para nos ajudar a compreender a necessidade de duvidar de toda e qualquer afirmação (que proceda das instancias de poder constituído); a compreender a necessidade de lutar contra a manipulação de nossas consciências e contra a alienação social e política a que estamos submetidos.
Por último, convém notar o impressionante paralelismo entre a história de Daniel Ellsberg e a de Julian Assange de WikiLeaks; entre a gigantesca campanha de difamação construída pela administração de Richard Nixon para destruir Daniel Ellsberg e a da administração de Barak Obama para destruir Julian Assange. O próprio Daniel Ellsberg, usando o seu prestigio e a sua honradez, tem estado (aos 79 anos de idade) em jornais e em programas de TV não somente para defender o trabalho de Julian Assange e de WikiLeaks como também para denunciar o processo de difamação que estão usando contra Assange e já usaram, no passado, contra ele próprio."
Jorge Vital de Brito Moreira é baiano e estudou Ciências Sociais na UFBa. Fez estudos de pós-graduação em Sociologia (México) e Literatura (USA) onde recebeu o titulo de doutor (Ph.d) com uma tese sobre o escritor Antonio Callado.
Em USA, tem ensinado na University of California San Diego (La Joya), University of Minnesota, Washinton University, Lawrence University e University of Wisconsin.
Tem publicado ensaios (sobre diferentes escritores brasileiros e latinoamericanos) e é autor-colaborador do livro Notable Twenty Century Latin America Women (2001)
Em 2007, publicou na Bahia o livro Memorial da Ilha e Outras Ficcões romance e contos).
Atualmente escreve artigos e ensaios para o destacado diário www.rebelion.org de grande circulação em Espanha e América Latina.