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06 junho 2009

Mostra imperdível de Marguerite Duras

A Sala Walter da Silveira, desde que Adolfo Gomes, profundo conhecedor de cinema, assumiu o controle de sua programação, tem se revelado uma verdadeira cinemateca graças à parceria que faz com embaixadas e consulados. A rigor, é a única sala verdadeiramente alternativa da cidade, porque o Circuito Baiano de há muito abandonou o seu projeto inicial de filmes especiais, quando de sua época de ouro, quando a Perini (loja de delicatessens) ainda não tinha engolido a Sala de Arte do Bahiano. A mostra dedicada a Marguerite Duras (autora do roteiro de Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, e, depois, diretora de muitos filmes) é uma oportunidade única e raríssima de se ver algumas preciosidades realizadas por ela através das imagens em movimento. O texto abaixo é de Adolfo Gomes:
" Muita gente não sabe que a francesa Marguerite Duras - autora de “O amante”, “O deslumbramento”, “Uma barragem contra o Pacífico” e “Moderato Cantabile”, falecida em 1996 - também “escrevia” suas histórias com câmera e microfones. A autora realizou filmes durante as décadas de 60, 70 e 80 que representam ainda hoje, passados mais de 30 ou 40 anos, realizações de grande ousadia e inventividade de linguagem. Em 1980, em número duplo totalmente dedicado a Duras da famosa revista francesa Cahiers du Cinéma, ela define o cinema que faz: é um "outro cinema", não aquele que "conta seus espectadores aos quilos", em que as pessoas vão para perder-se, para esquecer do mundo lá fora e ser engolidas pelo filme; seu cinema é feito com a participação do espectador, que precisa então estar totalmente presente – em corpo e espírito – para criar o filme junto com a autora.É um cinema que inventa uma relação totalmente nova entre o "áudio" e o "visual". Sons e imagens não apenas se confirmam numa narrativa, mas criam situações de disjunção, com relações inusitadas cujo sentido cabe ao espectador solucionar.As imagens de Duras são de intensa beleza fotográfica, e investigam os espaços como num documentário. No áudio, a presença marcante de vozes, da voz de Marguerite com sua entonação precisa e pausada. A atual mostra, complementada por uma palestra do curador do evento, professor Maurício Ayer, no dia 6/06, às 15h30, na Sala Walter da Silveira, pretende não apenas refletir sobre essa produção tão pouco conhecida no Brasil, como contemplar as relações entre cinema e literatura e o processo em si da criação artística em diferentes formas de expressão.
Em cartaz de 5 a 11 de junho, a Mostra “Marguerite Duras: Escrever Imagens” se insere no contexto das atividades audiovisuais do Ano da França no Brasil, facultando ao público que acompanhar a mostra e participar da palestra a oportunidade de se dar conta de como a cada filme a artista realizava uma proeza de invenção. Com recursos técnicos mínimos, ela foi capaz de ir sempre mais longe no trabalho com a dramaturgia, na ideia de seus filmes, e pisou onde ninguém tinha estado antes. Quem imaginaria um filme em que vemos a diretora e o ator lendo um roteiro, transformando a leitura no seu evento central, e que consegue – além de romper toda fronteira entre ficção e documentário – criar toda uma atmosfera ritualística que faz do filme uma experiência absolutamente singular?"


Apoio: Cinemateca da Embaixada da França no Rio de Janeiro e Klaxon Cultura Audiovisual
Ingresso: R$ 4,00 (Estudantes e maiores de 60 anos pagam meia-entrada)
Formato: 35mm

Programação
Dia 5/06
17h30
Destruir, disse ela (Détruire, dit-elle, Fra,1969) Duração:90 min, p&b
Direção: Marguerite Duras
Duração:90 min
Elenco: Atores: Nicole Hiss, Catherine Sellers, Michael Lonsdale e Henri Garcin.
Censura 14 anos
Sinopse - Dois homens se encontram e conversam todos os dias num hotel de campo. Um deles, Max Thor, que está “em vias de se tornar um escritor”, observa Elizabeth Alione, uma mulher que se recupera de um aborto, e todos os dias se deita ao sol no gramado, com um livro que nunca lê. Quando Alissa, a esposa de Thor, chega ao hotel, encontra Stein e inicia com ele uma relação adúltera, consentida pelo marido. O grupo aproxima-se de Elizabeth, e ela vive simultaneamente atração e pavor por Alissa, que quer levá-la à floresta, onde os limites e convenções sociais estão suspensos. A loucura se infiltra nos diálogos, que passam a insinuar sentidos compreensíveis apenas aos personagens, mas inacessíveis ao espectador, criando uma atmosfera de angústia, em que a qualquer momento algo terrível pode acontecer.
O filme é uma resposta direta de Marguerite Duras às experiências vividas em Maio de 1968. Questionada sobre ser esta uma obra política, ela respondeu: “[Michel] Foucault acha que sim”. Entende-se então que a política aqui é aquela que o filósofo francês apresenta como micropolítica, esses vetores de poder e resistência que atravessam os corpos, a incorporação da loucura pela razão, a ruína dos valores morais, a ética do desejo. Duras descreve os eventos de maio em Paris como uma loucura coletiva, que se traduz nesse desejo de destruição, e a iminência de que o mundo, a cultura, o cinema, tudo venha abaixo: “o amor corria pelas ruas”, “não sabemos pra onde vamos, mas vamos”.

20hO homem atlântico (L’homme atlantique, Fra, 1981)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 42 min
Voz: Marguerite Duras
Ator: Yann Andréa
Censura: 14 anos
Sinopse - A voz de Marguerite Duras fala a alguém, indica-lhe como num roteiro os gestos que deve cumprir, e assim quando percebe, fez-se o cinema. Diante de nossos olhos, a tela negra. Duras busca acessar aquilo que chama de “voz interior da leitura”, e evidenciar diante dos nossos olhos algo que é anterior à própria visão de um filme: sua criação interna, a imaginação antes da imagem.
Cerca de dois terços da duração do filme se passam com a tela negra, entrecortada por inserções de planos gravados na casa de Duras, na Normandia, diante do mar. Essas imagens, com simples mas ardilosos jogos de espelho ou o movimento perpétuo das ondas no mar.
Trata-se, portanto, de uma das obras mais radicais de Marguerite Duras em sua desconstrução do cinema. É quase uma instalação audiovisual que invade a sala de projeção, sua tela, um limite além do qual não é possível ultrapassar sem eliminar completamente o cinema do cinema.

Dia 6/06
17h30As crianças (Les enfants, Fra,1984)
Direção: Marguerite Duras, Jean Mascolo, Jean-Marc TurineDuração: 90 min.
Elenco: Axel Bougosslavsky, Daniel Gélin, Tatiana Moukhine, Martine Chevalier e André Dussollier.
Censura: 14 anos
Sinopse - Ernesto é um menino, filho de imigrantes (mãe russa e pai italiano), que mora num subúrbio pobre de Paris. Seu desenvolvimento incomum (aos 12 anos tem o aspecto de um homem de 40) a princípio não chama a atenção. Ele encontra um livro com um furo redondo no meio e, sem nunca ter aprendido, o lê – é a história de reis judeus. Um dia diz a seus pais que não voltará à escola, pois ali “ensinam coisas que ele não sabe”. Temendo as penas legais por não manter o filho na escola, os pais vão conversar com o diretor, que ainda não havia notado o tamanho incomum de Ernesto. A fala do diretor é precisa: “nenhuma criança quer ir à escola, elas são forçadas”. Ao conversar com Ernesto, no entanto, surpreende-se, não consegue convencê-lo com seus argumentos, e se torna quase um discípulo dele.
Ernesto desenvolve então seu método peculiar para saber as coisas. Ele espera na saída dos colégios para ouvir o que dizem os estudantes. Algum tempo depois: ele sabe. Esgotado o conhecimento escolar, começa a explorar as saídas de universidades, até que um dia ele consegue completar o conhecimento acumulado pela humanidade. Torna-se famoso, e um jornalista o procura, para ouvir o que ele, que tudo sabe, tem a dizer. Ele então cita o Eclesiastes: “Tudo é vaidade de vaidade” e sumariamente sentencia sobre as coisas do mundo: “Não vale a pena”.

20hDestruir, disse ela (Détruire, dit-elle, Fra,1969) Duração:90 min, p&b
Direção: Marguerite Duras
Duração:90 min
Elenco: Atores: Nicole Hiss, Catherine Sellers, Michael Lonsdale e Henri Garcin.

Dia 7/06
17h30
Césarée (Fra,1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração:11 min
Voz: Marguerite Duras

Aurélia Steiner – Melbourne (Fra,1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 35 min.
Voz: Marguerite Duras
Censura 14 anos

Aurélia Steiner - Vancouver (Fra, 1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 48 min
Voz: Marguerite Duras

As mãos negativas (Les mains négatives, Fra,1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 18 min
Voz: Marguerite Duras

Sinopse - Estes quatro curtas-metragens foram realizados com “sobras” das filmagens realizadas para Le navire Night e Agatha ou les lectures illimités. Cada um deles define um território audiovisual próprio, embora todos mantenham uma característica estruturante comum: a disjunção da imagem e do som, este caracterizado pela voz recitativa da própria Marguerite Duras. Se as imagens resultam da exploração quase documental de espaços cotidianos, a palavra enunciada pela voz estabelece um contato com uma outra dimensão temporal, o mito narrado a atritar com a banalidade da paisagem urbana ou litorânea.
Em Césarée, vemos as estátuas do jardim das Tuilerias, diante do palácio do Louvre, em Paris. A voz de Marguerite Duras entoa a história, ou uma espécie de recitativo em alusão à história do amor impossível do imperador romano e da rainha dos judeus.
O povo judeu é, de fato, uma presença constante nos livros e filmes de Marguerite Duras. Em primeiro lugar, é o povo da palavra, das sagradas escrituras, do Velho Testamento, que Duras considera como o “Texto dos textos”. Em segundo lugar, é o povo do sofrimento, de uma dor sagrada que o torna digno de um respeito quase religioso. Se em Césarée os judeus são situados no tempo de opressão pelo Império Romano, Aurélia Steiner (Melbourne) (1979) e Aurélia Steiner (Vancouver) (1979) têm lugar no tempo contemporâneo, do holocausto imposto pelos nazistas aos judeus.
Aurélia Steiner é uma menina judia que nasce num campo de concentração. A mãe morre no parto, o pai, ao ser pego roubando um prato de sopa para sua filha. Aurélia Steiner será então o símbolo da marca deixada pelo holocausto na pele de cada judeu, que se dispersa pelo mundo antes, durante e após a guerra. Duras escreveu três textos intitulados Aurélia Steiner, acompanhados dos nomes de três cidades: Melbourne, Vancouver e Paris – e com os dois primeiros produziu filmes.
Aurélia Steiner (Melbourne) é constituído basicamente de travellings capturados ao longo do rio Sena, em Paris. Os ritmos da geometria das pontes, as texturas da luz nas águas e planos da catedral de Notre-Dame criam uma série de jogos visuais.
As mãos negativas resulta de uma "reação química" entre o impacto da beleza de sua fotografia, a força e delicadeza de sua poesia e a crueza rústica de sua música. O que vemos na tela é uma Paris filmada quase sem luz, no alvorecer, em que um azul negro banha as ruas e calçadas e é perfurado apenas pelo fogo vermelho dos semáforos.


20h
As crianças (Les enfants, Fra,1984)
Direção: Marguerite Duras, Jean Mascolo, Jean-Marc TurineDuração: 90 min.
Elenco: Axel Bougosslavsky, Daniel Gélin, Tatiana Moukhine, Martine Chevalier e André Dussollier.
Censura: 14 anos

Dia 8/06
17h30
Césarée (Fra,1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração:11 min
Voz: Marguerite Duras
Censura: 14 anos

Aurélia Steiner – Melbourne (Fra,1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 35 min.
Voz: Marguerite Duras
Censura 14 anos

Aurélia Steiner - Vancouver (Fra, 1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 48 min
Voz: Marguerite Duras
Censura: 14 anos

As mãos negativas (Les mains négatives, Fra,1979)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 18 min
Voz: Marguerite Duras
Censura: 14 anos

Sinopse - Estes quatro curtas-metragens foram realizados com “sobras” das filmagens realizadas para Le navire Night e Agatha ou les lectures illimités. Cada um deles define um território audiovisual próprio, embora todos mantenham uma característica estruturante comum: a disjunção da imagem e do som, este caracterizado pela voz recitativa da própria Marguerite Duras. Se as imagens resultam da exploração quase documental de espaços cotidianos, a palavra enunciada pela voz estabelece um contato com uma outra dimensão temporal, o mito narrado a atritar com a banalidade da paisagem urbana ou litorânea.
Em Césarée, vemos as estátuas do jardim das Tuilerias, diante do palácio do Louvre, em Paris. A voz de Marguerite Duras entoa a história, ou uma espécie de recitativo em alusão à história do amor impossível do imperador romano e da rainha dos judeus.
O povo judeu é, de fato, uma presença constante nos livros e filmes de Marguerite Duras. Em primeiro lugar, é o povo da palavra, das sagradas escrituras, do Velho Testamento, que Duras considera como o “Texto dos textos”. Em segundo lugar, é o povo do sofrimento, de uma dor sagrada que o torna digno de um respeito quase religioso. Se em Césarée os judeus são situados no tempo de opressão pelo Império Romano, Aurélia Steiner (Melbourne) (1979) e Aurélia Steiner (Vancouver) (1979) têm lugar no tempo contemporâneo, do holocausto imposto pelos nazistas aos judeus.
Aurélia Steiner é uma menina judia que nasce num campo de concentração. A mãe morre no parto, o pai, ao ser pego roubando um prato de sopa para sua filha. Aurélia Steiner será então o símbolo da marca deixada pelo holocausto na pele de cada judeu, que se dispersa pelo mundo antes, durante e após a guerra. Duras escreveu três textos intitulados Aurélia Steiner, acompanhados dos nomes de três cidades: Melbourne, Vancouver e Paris – e com os dois primeiros produziu filmes.
Aurélia Steiner (Melbourne) é constituído basicamente de travellings capturados ao longo do rio Sena, em Paris. Os ritmos da geometria das pontes, as texturas da luz nas águas e planos da catedral de Notre-Dame criam uma série de jogos visuais.
As mãos negativas resulta de uma "reação química" entre o impacto da beleza de sua fotografia, a força e delicadeza de sua poesia e a crueza rústica de sua música. O que vemos na tela é uma Paris filmada quase sem luz, no alvorecer, em que um azul negro banha as ruas e calçadas e é perfurado apenas pelo fogo vermelho dos semáforos.

20h
India Song (Fra, 1974) Duração: 120 min
Direção: Marguerite Duras
Duração: 120 min.
Elenco: Delphine Seyrig, Michael Lonsdale, Claude Mann e Didier Flamand
Censura: 14 anos
Sinopse - “É a história de um amor, vivido nas Índias, nos anos 30, numa cidade superpopulosa às margens do Ganges. Dois dias dessa história de amor são evocados. A estação é a da monção de verão. Quatro Vozes – sem rosto – falam dessa história. As pessoas às vezes dizem que minha obra é feita como a música é feita. Se eu posso ter uma opinião, eu acho que é verdade. Pelo menos para India Song é verdade”. (Marguerite Duras)

Dia 9/06
17h30
Agatha ou as leituras ilimitadas (Agatha ou les lectures illimitées, Fra, 1981)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 90 min.
Vozes: Marguerite Duras e Yann Adréa
Elenco: Bulle Ogier e Yann Andréa
Censura: 14 anos
Sinopse - Um homem e uma mulher, irmão e irmã, rememoram os momentos de seu amor incestuoso, antes de se separarem definitivamente. “Tudo é tão confuso”, diz ela, “sim, acho que vou embora devido à força desse amor tão terrível que temos um pelo outro” (Agatha, p. 11). No diálogo, vemos construir-se o filme de um passado irrecuperável, que se faz presente pela palavra.
O incesto é também uma forma de amor que Marguerite afirma ter vivido. Ela estava na França quando seu irmão, que permanecera na Indochina com a mãe, morreu durante a guerra, por falta de medicamentos. O desespero com que recebeu a notícia – ela conta que batia a cabeça contra a parede, queria se matar – a convenceu de que havia amado seu irmão. A partir dessa experiência, ela reflete que “o incesto é a coincidência entre o amor e o laço de parentesco. Todo amor, na realidade, busca recuperar esse laço fundamental”.

20h
India Song (Fra, 1974) Duração: 120 min
Direção: Marguerite Duras
Duração: 120 min.
Elenco: Delphine Seyrig, Michael Lonsdale, Claude Mann e Didier Flamand
Censura: 14 anos

Dia 10/06
17h30
O homem atlântico (L’homme atlantique, Fra, 1981)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 42 min
Voz: Marguerite Duras
Ator: Yann Andréa
Censura: 14 anos

Dia 11/06
17h30
As crianças (Les enfants, Fra,1984)
Direção: Marguerite Duras, Jean Mascolo, Jean-Marc TurineDuração: 90 min.
Elenco: Axel Bougosslavsky, Daniel Gélin, Tatiana Moukhine, Martine Chevalier e André Dussollier.
Censura: 14 anos

20h
Agatha ou as leituras ilimitadas (Agatha ou les lectures illimitées, Fra, 1981)
Direção: Marguerite Duras
Duração: 90 min.
Vozes: Marguerite Duras e Yann Adréa
Elenco: Bulle Ogier e Yann Andréa
Censura: 14 anos

04 junho 2009

A montagem intelectual ou ideológica


A Montagem Intelectual ou Ideológica: operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".

Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito. Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas (Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação harmoniosa.

A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos acontecimentos diversos. A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).- os operários diante do patrão- os manifestantes diante do oficial de polícia- o patrão com a caneta na mão- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba.

A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um, rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política (em Outubro).

O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith, argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo. Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e, incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico. Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque, segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C, porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia, unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve ( Strike ), quando Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é uma metáfora. Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.

Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Os melhores anos de nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica, dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro plano - o close up - tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos restrita. Tem-se, como exemplo, as faces enrugadas e pavorosas de David Bowie em Fome de Viver/The Hunger, 1983, de Tony Scott, com Catherine Deneuve e Susan Sarandon.

02 junho 2009

Ouçam-me no Podcast K7 de El Mirdad




O blog do espinhento Emmanuel Mirdad é muito bom e tive a honra, semana passada, de ser o entrevistado desta terça no seu já consagrado podcast K7. Para ouvir as minhas bobagens costumeiras, o leitor deste blog deve se dirigir para o seguinte endereço: EL Mirdad - Farpa e Psicodelia (http://elmirdad.blogspot.com/). Mirdad, poeta, jornalista, tem, porém, um grande defeito: não gostou de O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962), de John Ford, quando o viu em fita cassete em 2001. O que me chocou sobremaneira, mas, sempre que o encontro, promete-me vê-lo novamente para "tentar gostar". Assim se define esta figura que considero ímpar: "Emmanuel Mirdad, soteropolitano espinhento de 1980. Poeta, produtor cultural, compositor, jornalista, escritor, articulador, dublê de cantor e sangue no olho."

01 junho 2009

Tuna Espinheira: bravo guerreiro do cinema baiano

O problema do cinema brasileiro, entre outros, encontra-se no tripé produção/distribuição/exibição. Se os realizadores sulinos encontram guarida nas salas dos complexos, porque formam, na produção, parceria com as multinacionais, os filmes baianos vivem, é preciso dizer, da caridade dos exibidores. Basta ressaltar que o premiado Eu me lembro, de Edgard Navarro, ainda que exibido em várias capitais, teve lançamento meio de escanteio. O exemplo de Cascalho, de Tuna Espinheira, é bem claro nesse sentido. Seu autor esteve recentemente em Feira de Santana a fim de apresentá-lo na universidade feirense e debatê-lo com um grupo de professores e intelectuais.
Noutros tempos, existia a Embrafilme que distribuia bem os filmes brasileiros, ainda que houvesse uma lei de obrigatoriedade. Collor, de uma canetada, fè-la desmorronar-se, a exemplo do Concine e da Fundação Cinema Brasileiro. Lembro-me que ia todas as semanas, quando tinha uma coluna diária no jornal baiano Tribuna da Bahia, ao escritório da Embrafilme comandado, aqui, por Nivaldo Mello Lima. Quase todos os lançamentos eram divulgados e muitos dos diretores e atrizes dos filmes vinham à Bahia prestigiá-los. Mas não quero me alongar muito neste post para dar lugar ao relato de bravo Tuna Espinheira, um lutador na aventura que é se fazer cinema na Bahia. Abrindo as necessárias e devidas aspas:

"Estive, neste 28 de maio, a convite dos professores da UEFS, Aleilton Fonseca e Francisco Lima, no Seminário de Literatura e Diversidade Cultural, para exibir e debater meu filme, CASCALHO, com professores e alunos da Pós-Graduação. As conversações, num ambiente descontraído, reforçaram a importância do dialogo franco entre o Diretor da obra e o público assistente, mesmo tendo sido com um grupo selecionado e de nível elevado. Só ter observado o interesse pelo cinema tupiniquim e os porquês dos motivos que trafegam de forma clandestina no mercado. ( Estou me referindo aqui aos filmes de baixo orçamento que não adotam o besterol, o voyerismo, a violência gratuita, e outros condimentos eleitos por aquelas fitas dirigidas a macacas(os) de auditórios).

Sou contra qualquer tipo de censura e intrépido defensor da diversidade. Os espetáculos tipo Trio Elétrico que arrasta todo mundo, sempre existiram e sempre existirão, o que preocupa é a proibição, mesmo velada, de filmes culturais que respeitam e tratam o público com seres de sensibilidade, vidas inteligentes.

Com todos os prós e contras, posso dizer, parafraseando Darcy Ribeiro, em licença poética, a EMBRAFILME caiu mais pelos seus acertos do que pelos seus erros. Um dos seus acertos que pode ser lembrado muito justamente como uma época de ouro do cinema brasileiro, foi a atuação da sua distribuidora, cujos benditos tentáculos atingiam o maior pedaço do continente brasileiro. Nesta época, a maioria dos filmes tinha acesso a uma finalização condigna, cartazes, traileres e, principalmente, oportunidade de adentrar no escurinho do cinema, seu habitat natural, através da rede de distribuição de filmes, (da EMBRAFILME) com a ajuda das suas subsidiarias, situadas em pontos estratégicos país afora.
O cinema brasileiro podia ter alguma respiração no tempo da Distribuidora da Embrafilme. É claro, cada macaco no seu galho, não estou falando de conquista de público, não se pode pegar espectadores a dente de cachorro, na vida, como no mercado, o filme vale quanto pesa. Mas a chance de baixar na luminosidade da tela grande, seja para qualquer número de pessoas que fossem frequentadoras dos cinemas já era uma glória. Filme sem público, na prateleira, por falta de uma política cultural que permanece omissa, é no mínimo um cadáver insepulto. É de arrepiar quando se sabe que as próprias associações de classe fazem ouvidos de mercador para este problema. Mais uma vez temos de fazer a diferença entre o cinema Daslú e o outro Daspú, este o de baixo orçamento. O chamado “Cinemão”, (DASLÚ), cujo jogo de cintura é grilar a parte do leão das famigeradas “Lei de Incentivo”, não está nem aí para o assunto distribuição, contam naturalmente com as distribuidoras estrangeiras. E assim caminha a humanidade.

Para não perder o mote deste texto que foi minha estada gratificante na UEFS, devo dizer que participar deste tipo de encontro é contribuir para que o filme (CASCALHO) permaneça vivo como merece. Adorei ter ido a Feira de Santana, terra do meu saudoso amigo/irmão, Olney São Paulo"

31 maio 2009

Dos "lugares" da fábula e das estruturas da narrativa


Os lugares narrativos da fábula
Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. As estruturas da narrativa têm a ver com a organização do discurso enquanto que os lugares narrativos da fábula se referem às modalidades em que a história está representada dentro das coordenadas espácio-temporais do texto fílmico. Aparentemente, na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. À primeira vista, e a grosso modo, pensa-se que todo filme conta uma história diferente. Daí vem a necessidade de se aplacar esta impressão de multiplicidade – uma ilusão! – através de um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador.

(1) A viagem. É o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (Det sjunde inseglet, 57), de Ingmar Bergman, onde os encontros reveladores efetuados pelo cavaleiro Antonius Block durante a sua viagem de regresso da cruzada levam-no, gradualmente, a descobrir o valor da solidariedade humana e, com isso, a superar a condição de crise que o afeta. Os dois meninos que procuram o pai na Alemanha em Paisagem sobre a neblina, do grego Theo Angelopoulos, percorrem, na viagem de busca, estações e, com elas, descobrem o mundo com a presenciação da dor e do sofrimento e da solidão. Do mesmo modo, em O soldado azul (Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71), de Ralph Nelson, a necessidade de atravessar o território índio em companhia de uma mulher branca permite ao protagonista descobrir os valores de uma civilização antes considerada inferior e compreender que os verdadeiros selvagens são, afinal, os soldados do seu regimento enviados para arrasar a aldeia dos peles-vermelhas.

Variante do topos é o motivo da fuga que, sendo semelhante ao precedente, se distingue dele por uma maior funcionalidade crítica. A fuga pode ser devida a razões externas (necessidade de afastar-se de uma situação de perigo ou, então, de perseguir de modo aventuroso aquilo que é proibido pela legalidade) ou a razões interiores de natureza existencial (intolerância de uma dada condição humana e procura de uma vida melhor). Em O viajante (Voyager, 93), de Volker Scholoendorff, o protagonista interpretado por Sam Shepard foge da vida por meio de viagens aéreas tomadas ao acaso, vivendo uma trajetória permeada de aeroportos.O exemplo bem típico do primeiro caso – fuga devida a razões externas – é o de O fugitivo (I’m a fugitive from a chain gang, 1932), de Mervyn Le Roy, que mostra um inocente que foge e é encarcerado numa prisão e que, fugindo desta novamente, tem de continuar errando pela noite como um perseguido sem nenhuma perspectiva de retorno a uma vida normal. Também em A Louca escapada (The sugarland express, 74), de Steven Speilberg, um casal tem de afrontar as perseguições da polícia para recuperar a criança que lhe foi tirada por infâmia.

No segundo caso – fuga devido a razões internas – insere-se a fuga para um mítico Alasca tentada pelo protagonista inquieto de Five easy pieces (Cada um vive como quer, 1970), de Bob Rafelson, que espera encontrar um modelo de vida alternativa àquele obrigado a seguir e que não considera autêntico. Jack Nicholson é o intérprete que personifica o personagem andarilho em busca de uma identificação bem típica dos anos 60 e corolária do movimento paz e amor.

Existe também, dentro dos assim chamados lugares narrativos da fábula, um outro tipo de fuga chamado de gratuita cuja característica principal está num desejo de afirmação do eu e do desafio às normas sociais. Ainda: a fuga metafísica de causas reais desconhecidas e interpretável como metáfora do destino humano. Na fuga gratuita, o exemplo marcante é encontrado em Corrida contra o destino (Vanishing point, 1970), de Richard Sarafian, uma louca corrida através dos Estados Unidos feita de automóvel pelo personagem, uma fuga que termina pela autodestruição espetacular do homem. Já em No limiar da liberdade (Figures in a landscape, 70), de Joseph Losey, e em Encurralado (Duel, 73), de Steven Spielberg, há, no primeiro, uma fuga planetária – os protagonistas estão envolvidos, sem uma razão visível, e sob a ameaça de um estranho helicóptero numa corrida desenfreada – e, no segundo, uma fuga absurda – um homem foge desesperadamente de um gigantesco caminhão que o persegue pelas estradas.

Há, ainda, outros tipos de fugas como as de Geena Davis e Susan Saradon em Thelma & Louise (idem, 90), de Ridley Scott, ou a empreendida pelo protagonista de Com o passar do tempo (Im lauf der zeit, 76) de Wim Wenders, que, destituído de passado e futuro, percorre a Alemanha exclusivamente imerso na, por assim dizer, dimensão existencial do dasein heideggeriano. Neste caso, a narrativa renuncia a qualquer conotação dramática e limita-se a registrar com um gosto fenomenológico o comportamento do herói seguido nas suas incessantes deslocações espaciais. A fuga, aqui, apresenta a vagabundagem como uma condição normal do protagonista, como resultado de uma opção de vida coerente e consciente. Uma característica, aliás, do cinema wendersiano: Alice nas cidades (Alice in den stadten, 73), Movimento em falso (Falscher bewegung, 75), entre outros. Um outro lugar narrativo – topos – é o que se pode definir por educação sentimental. Se nos topos da viagem o desenvolvimento narrativo se faz no espaço, tem-se, na educação sentimental, um desenrolar-se no tempo.

(2) A educação sentimental. A tomada de consciência opera-se graças a um itinerário que já não é mais horizontal mas vertical, considerando-se que neste topos se se reporta aos fenômenos psicológicos ligados à passagem de uma idade do homem para outra. O arco de tempo analisado pode ser mais ou menos longo consoante a quantidade e a qualidade das experiências narradas pela fábula. Além disso, a educação dos sentimentos pode ser apresentada segundo o seu desenvolvimento real ou, então, ser objeto de reinvocação por parte de quem a protagonizou. Em ambos os casos é contemplada pelo autor numa perspectiva mais ou menos autobiográfica, com a diferença de que, enquanto na primeira hipótese – a do seu desenvolvimento real – há uma pretensa objetividade que tende a fazer desaparecer esta característica autobiográfica, na segunda, a identificação entre o cineasta/autor e o protagonista da ação fica a descoberto. Em Os incompreendidos (Les quatre-cents coups, 59), de François Truffaut, existe uma melancolia eivada de um sentimento patente de nostalgia pela idade das ilusões anterior ao princípio do realismo ligado à dimensão adulta, qualquer que seja o período da vida em que tal princípio se afirma. Já em O mensageiro (The go-between, 71), de Joseph Losey, a reinvocação da passagem traumática do mundo das ilusões para o da realidade é confiada ao protagonista direto dessa dolorosa transição.Este topos – arquétipo no qual se assentam muitos filmes – tem sua origem em Gustave Flaubert. Na primeira versão de A educação sentimental (1845), ainda sob o impacto da experiência amorosa que tivera na adolescência, o jovem Flaubert confere um desenlace feliz à sua paixão, acreditando ainda que, para conquistar a felicidade, bastaria desejá-la com toda a força. Anos mais tarde, ao redigir a segunda versão da obra (1869), já na idade da razão, reconhece o engano de sua mocidade e inicia o livro com uma saudosa evocação de Elisa Schlesinger (a Sra. Arnoux do romance), lembrando, com ternura, até os pormenores de seu vestuário para finalizar com a melancólica despedida de Frédéric Moreau (nome que atribui a si próprio no enredo) à amada impossível.

(3) A investigação. Baseia-se na reconstrução a posteriori de um acontecimento obscuro sobre o qual há que fazer luz. Os instrumentos utilizados podem ser os clássicos da investigação policial ou os mais recentes do inquérito jornalístico ou, se se quiser, cinematográficos. O móbil comum revelador é apreendido por meio de fragmentos soltos que, organizados, propõem o denominador comum. A fábula apresenta-se, aqui, como o lugar da desordem que tende a encontrar a sua explicação unitária para além da aparente casualidade dos acontecimentos descritos. É ao esquema do inquérito policial que obedecem filmes como A marca da maldade (Touch of evil, 58), de Orson Welles e A Besta deve morrer (Que la bête meure, 70), de Claude Chabrol. No filme de Welles, a procura do assassino está animada por um sentimento de legalidade oficial: numa cidade de fronteiras entre os Estados Unidos e o México, instaura-se uma rivalidade entre dois policiais, o americano Quinlan (Welles) e o Vargas (Charlton Heston) num caso de drogas e crimes. No filme de Chabrol, a procura do assassino é movida por um desejo de vingança privada. Inspirados no inquérito jornalístico e no filmado se encontram, respectivamente, O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 61), de Francesco Rosi e O Homem de mármore (Czlowiek z marmur, 79), de Andrzej Wajda, o primeiro procurando fazer luz sobre a morte do bandido siciliano, enquanto o outro se preocupa na reconstituição da verdadeira história de um “herói do trabalho” do período stalinista desaparecido imprevistamente das crônicas do regime.

Ainda há um derradeiro lugar narrativo da fábula: aquele a que se recorre com maior frequência a ponto de não ser quase percebido como tal. O esquema em que o Bem e o Mal são eternamente contrapostos numa estrutura narrativa o mais elementar possível. Tal conflito, na realidade, para além de poder assumir um dos aspectos exteriores até aqui examinados, também pode ser representado de modo linear e segundo uma progressão dramática facilmente previsível pelo espectador. Em tal caso, o bom pode vestir as roupas de uma personagem histórica que tenha realmente existido como Aleksandr Nevsky no filme homônimo (Aleksandr Nevsky, 38), de Serguei Eisenstein, ou ser personificado por um herói lendário como Shane (Os Brutos também amam/Shane, 53), de George Stevens. Em ambas as circunstâncias, os códigos fílmicos procuram exaltar a figura empenhada na benemérita tarefa de destruir o Mal nas suas repetidas encarnações históricas e meta-históricas: a música, os fatos e até a cor fazem uma simpática apologia ao herói e, em contrapartida, exprimem toda a sua reprovação pelo malvado mau.

(4) O elemento deflagrador. Talvez não se possa definir o elemento deflagrador como um lugar narrativo da fábula mas é uma constante e uma presença marcante nos arquétipos da narrativa. Trata-se do elemento que vem de longe e deflagra, com sua aparição, um processo de transformação no meio social no qual se intromete. A chegada de Shane, cavaleiro misterioso, cujo passado é desconhecido, provoca uma metamorfose na localidade, revelando para os seus habitantes e, principalmente, para o menino Joe, sua mãe e seu pai, a família na qual Shane pousa por um tempo, uma força estranha e poderosa capaz de mudar o statu quo. O anjo de Teorema (idem, 67), de Pier Paolo Pasolini, também é, na fábula, um elemento deflagrador da transformação de uma família burguesa italiana que, depois de sua misteriosa aparição, toma rumos inesperados após o contato sexual do anjo com todos os familiares e inclusive a empregada: o pai, desesperado, doa a fábrica aos operários; a mãe, ensandecida, procura, como prostituta em desespero, homens pela rua; o filho se torna um pintor abstrato; a filha entra em estado catatônico, e, por fim, a empregada, saindo da casa onde trabalha, volta às origens numa localidade interiorana onde levita, ascendendo ao céu e transformada em santa.O elemento deflagrador é um arquétipo do qual se valem muitos filmes. Em Férias de amor (Picnic, 54), de Joshua Logan, o personagem interpretado por William Holden, um forasteiro, um estranho, chega a um vilarejo interiorano dos Estados Unidos e provoca, no dia da Festa do Trabalho, quando tem lugar um piquenique, um verdadeiro cataclisma. É a força que vem de fora e causa transtornos na aparente tranquilidade de uma sociedade onde os preconceitos, recônditos, eclodem à menor faísca.

Em A grande feira (1961), o filme baiano de Roberto Pires, um marinheiro sueco (Geraldo D’El Rey) detona uma reviravolta na feira de Água de Meninos ao se relacionar, simultaneamente, com uma burguesa do high society e uma negra pobre moradora da feira e mulher do agitador do local, o temível Chico Diabo (Antônio Pitanga). Também em outro filme baiano, O anjo negro (1972), de José Umberto, um negro anarquista (Mário Gusmão) desestrutura, tal o anjo pasoliniano de Teorema, uma família de ares aristocratas que habita um rico casarão colonial.Existem poucas situações dramáticas originais, pois os arquétipos do gênero fabulístico reduzem a maioria a um número limitado.