Seguidores

15 março 2008

O mistério de "Barravento"



A observar o que está a acontecer a Revoada, de José Umberto, talvez seja preciso reescrever a história do cinema baiano no capítulo concernente às filmagens de Barravento. Pelo que se sabe, Luis Paulino dos Santos, que dirigia o filme na praia de Buraquinho em Salvador, estava a atrasar o cronograma porque, apaixonado por uma bela atriz, deixava-se levar pela sua beleza a insistir em intensos close ups nela. Diante da pachorra do andamento da rodagem, o produtor Rex Schindler interviu, dando a Glauber Rocha a direção de Barravento, aflito que estava o jovem crítico do Jornal da Bahia para estrear no longa metragem (anteriormente tinha feito dois curtas: O pátio e Cruz na Praça). Luis Paulino ficou com fama de negligente e o bom produtor deu um golpe pela integridade do filme baiano. Mas o que realmente aconteceu? Será mesmo que Paulino, pessoa séria, não poderia ter sido consultado no sentido de apressar as filmagens? Foi mesmo preciso o golpe de Rex/Glauber? Interessante uma pesquisa nesse sentido para o esclarecimento da verdade, pois a história é sempre contada pelos vencedores.

Segundo fontes fidedignas, Rex Schindler (que sempre me pareceu pessoa de lhano trato) já montou Revoada à revelia de seu autor, José Umberto, e está pronto para entregar o filme ao Ministério da Cultura.

Realiza-se em Salvador, no foyer do Teatro Castro Alves, ampla exposição do acervo glauberiano, com exibições na Sala do MAM e palestras na Biblioteca Central. Glauber, se vivo, completaria, ano que vem, 70 anos (nasceu em 1939). Como o tempo passa! Mas por que a homenagem neste ano? Não teria sido mais prudente a concentração de esforços para a comemoração quando da passagem das sete décadas glauberianas. Há angu neste caroço?
Na imagem, Glauber conversa com o grande Roberto Rossellini.

13 março 2008

A revoada continua



Agrava-se a situação de Revoada, de José Umberto. O produtor Rex Schindler levou-o à montagem sem que o seu autor, Umberto, pudesse ver qualquer coisa. E já se encontra prestes a entregá-lo, assim desfigurado, ao Ministério da Cultura para cumprir as cláusulas do contrato. O fato é que o produtor não tinha esse direito, o de fazer a montagem ao gosto de seus propósitos mercadológicos sem atender as observações do autor, que o queria montado de maneira completamente oposta. O imbloglio, como se vê, continua a todo vapor. Recuperará José Umberto o direito de montar o seu filme à sua maneira? Haverá uma cópia pirata de Revoada a seguir as intenções do autor? Tudo é mistério. Mas o caso está na Justiça. Umberto crê nela. Na Justiça dos homens.
A imagem mostra o ator baiano Nelito Reis (que no teatro fez o papel de Raul Seixas em montagem dirigida por Deolindo Checcucci.

Terrence Malick no princípio



Cineasta bissexto, Terrence Malick, o diretor de Terra de Ninguém (Badlands), realizou, em quase quatro décadas, apenas alguns filmes: este de estréia, em 1973, o aclamado Cinzas no Paraíso (Days of heaven), que no lançamento do DVD virou Dias no Paraíso, em 1978, e desapareceu, para ressurgir, redivivo, vinte anos depois, em 1998, em Atrás da linha vermelha (The thin red line).Seu quarto e derradeiro opus não vi. Caso raro na história do cinema, um realizador tão interrompido, de imensos hiatos entre um filme e outro, principalmente a se considerar um cineasta da envergadura de Malick, que possui aquilo que François Truffaut tanto prezava num diretor de cinema: visão de mundo e estilo particular, uma maneira própria de expressão pelas imagens em movimento.

A sua obra-prima continua sendo Days of heaven, mas Terra de Ninguém já aponta para um cineasta maduro, com domínio formal de seus recursos expressivos e um olhar abrangente sobre a chamada América Profunda. É um filme, Terra de Ninguém, que faz parte de uma fase rica do cinema americano após o declínio do império dos grandes estúdios, quando surgiram obras independentes e com uma visão muito ácida do american way of life (Sem Destino, de Fonda e Hooper, Cada um Vive Como Quer, de Bob Rafelson, etc). A partir dos meados da década de 70, Hollywood, em crise profunda (mas uma crise que oferecia oportunidade para criações mais independentes e criativas, antes que independente se tornasse, como agora, apenas uma marca), foi salva por Spielberg, que, com sua varinha mágica, em Tubarão (Jaws), e seguintes, fez retornar o grande público ao cinema.
Outro salvador da indústria cinematográfica, Georges Lucas, que, com suas guerras estelares, estabeleceu um novo alento para os espetáculos hollywoodianos. Mas se, por um lado, Lucas instituiu a febre dos efeitos especiais, salvando a indústria, por outro, ele e Spielberg também são responsáveis pela infantilização temática que predomina no cinema contemporâneo.

O problema reside na influência que exerceram nos executivos, que estabeleceram um padrão de pasteurização para os filmes oriundos da indústria cultural hollywoodiana. Se Lucas, como realizador, é péssimo, o mesmo não pode se dizer de Spielberg, que tem alguns filmes notáveis. Mas obras mais independentes como Terra de Ninguém e Cada um Vive Como Quer foram saindo do mapa.
Terra de ninguém projeta Sissy Spacek (que anos depois viria a ter impressionante desempenho em Carrie, a Estranha, de Brian DePalma, e, logo depois, ganhou um Oscar por O destino Mudou sua Vida), e, também, Martin Sheen (que viraria um astro após o atormentado personagem de Apocalypse now, de Coppola).

Órfã de mãe, a solitária Holly (Spacek) vive com o pai (Warren Oates) numa cidadezinha do interior americano. Sua solidão, porém, de repente, desaparece, quando conhece, por acaso, um lixeiro, Kit (Martin Shenn), enamorando-se dele. Quando o pai dela tenta impedi-la de fugir com ele, Kit o mata e, depois de forjar um suicídio, incendeia o barracão. Os dois passam a viver na floresta, subsistindo por meio de roubos e assassinatos para escapar de seus perseguidores. O relacionamento do casal, no entanto, no itinerário da fuga, vai se deteriorando. O diretor se baseou em recortes de jornais que abordavam fatos reais ocorridos em Kansas em 1958.

Malick mostra com vigor personalidades doentias decorrentes do meio social asfixiante em que vivem. Retrato de recônditos habitacionais dos Estados Unidos, onde o viver não oferece perspectivas, mas, também, uma reflexão sobre a necessidade do amor em meio à solidão, Terra de Ninguém possui uma estrutura narrativa plena de momentos fortes nos quais a câmara de Malick integra, com singular propriedade, o homem à paisagem. Seus planos gerais, principalmente os do deserto, são verdadeiros quadros pictóricos. Neste particular, alguns créditos são devidos à captação da luz do fotográfo Tak Fujimoto.

Dias de Paraíso (Days of heaven, 1978), de Terrence Malick, que foi lançado comercialmente nos cinemas com o título de Cinzas no Paraíso, é o segundo filme do diretor, e considerado a sua obra-prima, realizado cinco anos depois de Terra de ninguém (Badlands, 1973), sua fita de estréia. Obra de rara beleza, com paisagens deslumbrantes em planos gerais que se assemelham a quadros pictóricos, tem uma narrativa cujo registro é evocativo (a narradora é a irmã do personagem principal, Richard Gere, uma adolescente de 16 anos).

Malick se caracteriza por uma narrativa elíptica, que, com isso, evita a emergência do sentimentalismo, sempre o seu desenrolar com um tom seco, cortante, a provocar, no máximo, emoções mudas. Days of Heaven é um filme sobre a esperança e a alegria de viver que foram reprimidas no coração daquela que narra. E a impressão que deixa é a de que, pelo tom evocativo, o que ela narra é um pretérito que já se desmanchou no seu presente, deixando, porém, as suas marcas. É uma história, portanto, de uma busca pela colocação no mundo. Findos os dias de paraíso, o que resta é a amargura, a falta de perspectiva, e o futuro desconhecido.

Com um cenário de infortúnios quase bíblicos: praga de gafanhotos, assassinatos, Days of Heaven é uma obra singular dentro do panorama do cinema americano da década de 70. Poucas vezes um realizador captou tão bem a paisagem do Texas, com a imensidão de seus espaços, os seus trigais. Cada enquadramento de Malick se assemelha, como disse, a uma pintura, tal a disposição dos homens e dos objetos no quadro.

O cineasta é também um detalhista pela procura em dar densidade à ambientação, quer no exterior (os planos de detalhes dos gafanhotos, dos diversos animais que habitam a paisagem), quer no interior (os objetos da casa, dispostos no enquadramento como uma espécie de natureza morta – uma jarra com uma bebida vermelha e dois copos numa bandeja, etc). Mas o filme não teria a sua beleza tão pungente não fossem os diretores de fotografia Nestor Almendros (cubano que depois desse filme se firmaria como um dos melhores iluminadores do cinema) e Haskell Wexler (que teve sua participação diminuída por questões de briga com o estúdio, mas iluminou metade do filme), dois artistas da luz, que se preocuparam em registrar quase todos os planos ou ao amanhecer ou ao anoitecer, com o objetivo de dar ao filme uma coloração de fogo. A partitura musical de Ennio Morricone é outro ponto alto com uma trilha que produz a sensação de saudade, de melancolia.
A ação transcorre durante os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Richard Gere (em um dos seus primeiros papéis – virou celebridade quatro anos depois em A Força do Destino, de Taylor Hackford) vive perambulando à procura de emprego com sua amante (Brooke Adams), e sua irmã adolescente (a excelente Linda Manz). Empregado como foguista em Chicago, tem um desentendimento com seu chefe e o mata. Resta-lhe fugir, ir para o Texas, onde se emprega numa plantação de trigo em época de colheita, cujo proprietário (Sam Shepard, ainda bem jovem, dramaturgo famoso, que se casou com Jessica Lange) se apaixona pela sua mulher.

Vindo a saber que o fazendeiro tem apenas um ano de vida, convence a companheira a se casar com ele para, depois, herdar o seu dinheiro. Mas não estava nos planos deles que ela viesse a se apaixonar pelo marido. A praga de gafanhotos é como uma premonição do desastre que se avizinha, com os realinhamentos emocionais que se refletem na personalidade da narradora.

Roger Ebert, famoso crítico americano, observou: Cinzas no Paraíso é, antes de qualquer coisa, um dos mais belos filmes jamais realizados. A proposta de Malick não é contar um melodrama, mas uma história sobre esforços inúteis. Seu tom é elegíaco. Ele evoca a solidão e a beleza das ilimitadas pradarias texanas. Na primeira hora do filme, há raríssimas cenas interiores. Os trabalhadores rurais acampam sob as estrelas e trabalham no campo. O filme coloca os humanos num quadro cheio de detalhes naturais: o céu, rios, campos, cavalos, faisões, coelhos.”
Você pode encontrar estes dois filmes na Casa de Cinema (Shopping Rio Vermelho, rua Odilon Santos). Fale com Roberto Midlej. Ou pelo telefone 33344409

12 março 2008

De 2 filmes desaparecidos


Estou à procura de um filme que vi adolescente e que, na época, muito gostei. Trata-se de O vento não sabe ler (The wind cannot read, 1958), de Ralph Thomas, com Dirk Bogarde e Yoko Tani, Donald Pleasence. Aos olhos de um jovem, uma obra de grande beleza e sensibilidade. É verdade que a revisão pode corresponder a uma decepção, como acontece com tantos filmes que os tinha como belos e, passados os anos, verifiquei-os sem o entusiasmo de tempos idos.


Há filmes fugidios que, uma vez lançados, nunca mais são reapresentados. É o caso de O vento não sabe ler, que nunca mais passou em lugar nenhum e acredito que não haja, dele, cópia em DVD. Um outro filme que me causou boa impressão, entre tantos, A estranha morte de Belle (La mort de Belle, 1961), de Edouardo Molinaro, com roteiro baseado em Georges Simenon, com Jean Dessaily (que trabalhou em Um só pecado/Le peau douce, de François Truffaut). Filme francês que encantou pelo seu mistério - não o mistério em si da trama, mas o mistério atmosférico, climático, por assim dizer, ou, talvez, o mistério de sua mise-en-scène). Também visto há quase cinquenta anos, a lembrança vai, aqui, de memória. Quem interpreta a personagem título é a bela canadense Alexandre Stewart.

11 março 2008

O charme discreto do cocô

Este blog está meio escatológico. Mas, antes de críticos, comentaristas, amantes do cinema ou qualquer coisa, como blogueiro de internet, somos, em primeiro lugar, seres humanos. Dostoievksy ficava várias dias - e isso li dele próprio - sem ir ao banheiro com vergonha de si próprio. É a condição humana. Ao lado uma latrina (também chamada de sentina, vaso sanitário, etc) high tech. O artigo que vai abaixo é de autoria da jornalista Vera Gonçalves de Araújo e saiu há poucos dias no Terra Magazine. A cor da fonte se coaduna com a mensagem do texto.
"À primeira vista, a última exposição inaugurada pelo Museu de Ciências naturais da cidade de Trento não me parece muito atraente. Pelo menos, quando li o título, não deu vontade de pegar um trem e percorrer 600 km para ver "O cocô: história natural do inominável".
Mas, pensando melhor, o assunto pode até ser atraente. Antes de mais nada, é bom lembrar que o tema ganhou dignidade artística na Itália desde 1961, quando o artista Piero Manzoni decidiu enlatar as suas fezes em 90 latinhas numeradas, com o rótulo "Merda de artista". Os críticos se dividiram sobre o significado da obra. Alguns falaram de uma metáfora irônica da origem profunda do trabalho artístico; outros frisaram o sentido mais amplo de produção e criação; houve até quem se comoveu, considerando as latinhas como o símbolo de uma dádiva do artista que se desfaz de uma parte de si para seu público.

Hoje em dia, as latinhas são conservadas em várias coleções de arte em todo o mundo. A que eu vi (a nº 4) estava na Tate Modern Gallery de Londres. Algumas explodiram, pela pressão interna do gás ou por causa da corrosão da lata. Em 2007, num leilão de Sotheby's, em Milão, um colecionista europeu pagou 124.000 euros por uma das latinhas, a n° 18. Um amigo de Manzoni declarou que, na verdade, as latas não contêm fezes, mas simplesmente 30 gramas de gesso. Ninguém, até agora, ousou abrir uma delas para verificar. Como Manzoni morreu em 1963, não podemos tirar a limpo a dúvida.

Voltando à exposição de Trento, os psicanalistas comentam que o cocô é um dos elementos fundamentais da anorexia: muitas das meninas obcecadas pelos regimes para emagrecer chegam a pesar suas fezes para controlar todo o ciclo da alimentação. Os publicitários também dão grande importancia ao assunto, para vender iogurtes, laxantes e produtos contra a prisão de ventre. No imaginário coletivo, o cocô continua representando o que há de mais desprezível e sujo no mundo. Em todas as linguas, existe um equivalente de "merda", para insultar ou para definir pessoas e situações, com variantes regionais e requintes de gíria.
A exposição de Trento fala de um assunto que para a maioria de nós é o máximo da porcaria, mas que ao mesmo tempo é uma parte importante do nosso cotidiano. O cocô não escapa nem da filosofia. Basta lembrar que santo Agostinho nos avisa: "nascemos entre fezes e urina". O cinema já quebrou o tabú do cocô. Luis Buñuel, num dos esquetes do filme "O fantasma da liberdade", mostra uma família conversando amavelmente à mesa, numa cena muito normal, mas no lugar das cadeiras todos estão sentados em privadas. Quem tem fome se fecha num quarto (equivalente ao banheiro) e lá, escondido, come sua refeição. Outra cena inesquecível está no Jurassic Park de Spielberg, com a cientista que mete a mão num monte de bosta de dinossauro para entender se são carnívoros ou herbívoros.

Enfim, apesar de todos os nossos preconceitos, talvez a exposição de Trento valha a pena. Com um frasquinho de seiva de alfazema na bolsa, é claro."

Vera Gonçalves de Araújo jornalista, nasceu no Rio, vive em Roma e trabalha para jornais brasileiros e italianos.

10 março 2008

Grande Robert Mulligan!!


Acabei de ver no Telecine Cult um belo filme: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963), com Steve McQueen e Natalie Wood. E me lembrei agora, já que estou a pensar em certos diretores americanos esquecidos, de Robert Mulligan, o realizador dessa pequena jóia, que fascina pela simplicidade e pela envolvência de sua dramaturgia, e, claro, pelo carisma dos atores. Filmado em Nova York, senti certa influência do neo-realismo italiano por incrível que pareça. O neo-realismo foi tão importante que seu halo se fez presente em muitas cinematografias inclusive a hollywoodiana (Marty é um exemplo inconteste).


Os filmes contemporâneos não possuem mais a dramaturgia apurada, pois mais afeitos aos efeitos e, mesmos nos alternativos, não existe mais um padrão dramatúrgico de alta qualidade, por assim dizer, como existia há poucas décadas. Love with the proper stranger é um exemplo. Robert Mulligan é um dos grandes de Hollywood, apesar de não ter alta cotação entre a crítica sabichona. Basta citar alguns filmes.


O sol é para todos (To kill a mockingbird, 1963) é belo, com interpretação inexcedível de Gregory Peck como o advogado que defende um negro. Belo e poético, acrescente-se. E que tal um filme cativante e de alta sensibilidade como À procura do destino (Inside daisy clover, 1966), com Natalie Wood (a inesquecível Natalie) e Robert Redford? Sátira vigorosa, O grande impostor (The great impostor, 1961), com Tony Curtis, Edmond O"Brien (o grande O'Brien, o jornalista bêbado de O homem que matou o facínora, entre tantos outros filmes). Mulligan realizou uma obra rara sobre a maldade infantil: A inocente face do terror (The other, 1972), e um western original no qual o perseguidor não aparece: A noite da emboscada (The stalking moon, 1967). Há um filme dele magistral sobre a educação secundária nos Estados Unidos: Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967), com Sandy Dennis.


É preciso, a exemplo dessa extraordinário Robert Mulligan, que os cinéfilos neófitos, e também a crítica recém-aparecida (e tão encantada com certas bobagens), passem a descobrir os grandes valores do passado como Frank Tashlin, Richard Quine, Robert Aldrich, Robert Wise (irregular mas com duas ou três obras admiráveis), entre outros.


Mas talvez a obra-prima de Mulligan seja Jogos do azar (The nicked ride, 1974), com Jason Miller, uma obra-prima, a masterpiece do cineasta já no seu outono existencial. E, para não esquecer: Houve uma vez um verão (Summer of 42).


Creio não ser necessário dizer mais nada.

O "pum" da cultura



Bom este artigo do escritor Moacyr Scliar publicado ontem, domingo, dia 9, no Mais! da Folha de S.Paulo. Não resisto em transcrevê-lo. Aqui vai:
"A notícia, na Folha do último dia 28, era pequena, mas chamativa: uma funcionária, demitida por "exceder-se em flatulência" no local de trabalho, venceu demanda judicial interposta na 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Os magistrados decidiram pela readmissão da empregada e pelo pagamento de R$ 10 mil por danos morais.
Atrás desse curioso episódio está longa história, que se baseia numa função fisiológica absolutamente normal, mas nem por isso menos perturbadora. Flatulência é a emissão de gases intestinais, uma coisa que poderia passar despercebida, como é a expiração.
Mas essa, em geral, não é ruidosa -a não ser quando a pessoa ronca, o que não raro é fonte de conflito entre marido e mulher- e é sem odor, a não ser quando há mau hálito, o que sempre resulta em constrangimento. Já no flato, existe uma complexa mistura de gases, alguns dos quais, os compostos sulfurosos, principalmente, produzem aquele característico odor, que há milênios ofende narinas.
Ah, sim, e o ruído. A última linha de "O Inferno", de Dante, parte da "Divina Comédia" [editora 34], diz "Ed elli avea del cul fatto trombetta"/ "E ele usou o traseiro como trombeta", o que pode parecer um exagero, mas traduz a indignação das pessoas.
Não só Dante se entregou ao exercício dessa forma de escatologia literária. Na clássica comédia "As Nuvens" [ed. 34], de Aristófanes [comediógrafo grego do século 5º a.C. que se celebrizou pela irreverência], há um diálogo no qual Sócrates sustenta que, quando as nuvens colidem, se produz um forte ruído, ou seja, o trovão.Para explicar o fenômeno, compara-as com o homem que, tendo comido muito, produz gases. E pergunta: "Se o ventre humano, que é relativamente pequeno, faz tanto barulho, como não o farão as nuvens, que são muito maiores?"
Nas "Mil e uma Noites" [ed. Globo], lemos a história de um homem que, tendo soltado gases durante a cerimônia de seu próprio casamento, não vê outra solução senão fugir para o exterior. Em "Gargântua e Pantagruel" [ed. Itatiaia], Rabelais assim descreve a ressurreição de Epistémon: "De repente Epistémon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois soltou um grande peido. Ao que disse Panurge: "Agora está certamente curado'".
Em "Contos de Cantuária" [T.A. Queiroz], de Geoffrey Chaucer, autor inglês do século 14, o flato é usado como agressão. O conquistador Absolom está tentando roubar um beijo da trêfega Alison, mulher do carpinteiro Nicholas. Na escura noite, sem quase nada enxergar, aproxima-se da janela da casa e, sussurrando, pede que a mulher diga onde está. Mas é Nicholas que responde -soltando, pela janela, um agressivo flato.Em "Molloy" [ed. Globo], de Samuel Backett, há uma certa condescendência para com os gases: "Trezentos e quinze peidos em 19 horas, uma média de 16 peidos por hora. Não é demais. Quatro peidos a cada 15 minutos. É nada". A mesma tolerância mostrou o imperador romano Claudius, que assinou lei permitindo a emissão de gases em banquetes, mas fê-lo movido por supostas razões de saúde: acreditava-se à época que reter os gases era prejudicial para o organismo.
De maneira geral, soltar um flato era falta grave. Edward de Vere, duque de Oxford, teve o azar de fazê-lo (coisa que Freud explicaria) no exato momento em que prestava juramento de lealdade à depois cinematográfica rainha Elizabeth 1ª.
Tão envergonhado ficou que se impôs um exílio de sete anos. Quando de seu retorno à corte, Elizabeth teria dito, para consolá-lo: "Meu senhor, para dizer a verdade, já esqueci aquele flato".Aliás, em termos da associação nobreza-flatulência, o duque não ficaria sozinho. Segundo nos conta Jô Soares, em "O Xangô de Baker Street" [Cia. das Letras], dom Pedro 2º soltava gases em pleno palácio, o que, aliás, no julgamento mencionado, foi usado como argumento pelo juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros.
A pessoa pode reter os gases, mas será que consegue emiti-los voluntariamente?Em "A Terra", de Émile Zola, há um personagem que consegue fazê-lo e ganha apostas com sua habilidade. Houve um contemporâneo do escritor que conseguia fazê-lo e se tornou famoso por isso: Joseph Pujol (1857-1945), autodenominado Le Pétomane (O Peidômano).
O marselhês Pujol tinha um extraordinário controle de seus músculos abdominais e do esfíncter anal, o que lhe permitia façanhas assombrosas. Exibindo-se no célebre Moulin Rouge, para audiências que incluíam Edward, príncipe de Gales, e Sigmund Freud, conseguia tocar flauta por meio de um tubo de borracha inserido em seu ânus, emitindo também os sons do hino nacional e de melodias por ele compostas.
A história de Pujol inspirou pelo menos dois filmes -o britânico "Le Petomane", de 1979, com Leonard Rossiter, e o italiano "Il Petomane", de 1983, com Ugo Tognazzi-, o musical "The Fartiste" -premiado como melhor do ano em 2006, no festival internacional Fringe, em Nova York-, vários artigos e livros, incluindo o best-seller "Quem Comeu meu Queijo?", de Jim Dawson, uma abrangente história da flatulência.Uma história que, como se constata, mostra aspectos curiosos e surpreendentes da relação humana com o corpo, particularmente no que se refere ao componente gasoso deste."

09 março 2008

O CinemaScope como presença

Minha formação cinematográfica, feita nos anos 50 e 60, foi construída pelo cinema de gênero de Hollywood: os grandes e inesquecíveis westerns (Shane, Rastros de ódio, tantos!), os musicais (Gigi, Cantando na chuva, 7 noivas para 7 irmãos...), os épicos históricos (Os dez mandamentos, Ben Hur, Spartacus...), os thrillers, os filmes de guerra, de aventuras, as comédias de Frank Tashlin, Billy Wilder, Michael Gordon (a inesquecível Confidências à meia-noite/Pillow take, 1959, com Rock Hudson e Doris Day, sophisticated comedy), Blake Edwards, entre tantos outros. O encanto pelo cinema veio pelo cinema americano. Mais tarde é que vim a conhecer os filmes de Eisenstein, do neo-realismo italiano, do expressionismo alemão, assombrar-me com a mise-en-scène de realizadores como Michelangelo Antonioni e Federico Fellini.
Mas volto a Tashlin. Em Salvador, circa 1960, o melhor cinemascope que existia era o do cinema Guarany, na Praça Castro Alves, praça do poeta. Recordo-me que vi, com tenra idade, e fiquei impressionado, Adorável pecadora (Let's make love, 1960), de George Cukor, com Yves Montand e Marilyn Monroe. Um programa cinematográfico, naquela época, constava, geralmente, de um complemento nacional (as atualidades ou o cine-jonral), dois trailers, um documentário (para preencher horário), um short, e o filme propriamente dito. Como quase todas as salas tinham cortinas, via-se, por elas, se o filme era no formato cinemascope, porque, findos os complementos, elas se abriam mais para que a tela ficasse completamente ociosa para receber a luz vinda da lente anamórfica. O cinemascope era uma presença e também uma alegria. Nada a ver com o widescreen dos disquinhos. A sensação da tela larga era afeita a uma cultura determinada, a uma época localizada.
Ver um filme na majestade do cinemascope do Guarany era um privilégio. Em som stéreo. Este cinema, reformado para dar lugar ao cinemascope, foi reinaugurado para exibir O manto sagrado (The robe, 1953), com Richard Burton e Jean Simmons. O público soteropolitano ficou encantado com a grandeza da tela e, quando Richard Burton, do lado esquerdo da tela, passou para o seu lado direito, o som o acompanhou para espanto da platéia.
Mas voltando a Tashlin, deixei de citar outros filmes que considero importantes do realizador. Jerry Lewis já diretor consagrado de filmes ainda se submetia, por respeito e contrato, a ser dirigido por Frank Taslin e na década de 60 trabalhou, com o amigo e mestre, em quatro impagáveis filmes: Cinderelo sem sapatos (Cinderfella, 1960), Detetive mixuruca (It's only money, 1962), Errado pra cachorro (Who's miding the store?, 1964), O bagunceiro arrumadinho (The disordely ordely, 1965). Entre outros, realizou também, nesta década, O homem do Diner's Clube (The man of Diner's Club, 1963), com Danny Kaye, Capricho (Caprice, 1967), este já nos estertores de sua carreira, uma comédia com Richard Harris e Doris Day e, com esta, também quase na mesma época, a divertida A espiã de calcinhas de renda.
O poster deste post é de Sabes o que quero (The girl can't to help it). Por que não se promover uma retrospectiva desse realizador de escol?