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Sobre o autor

Eisenstein me perdoe”. André Setaro dedilha um cigarro do bolso da camisa. “Não aguento mais rever o Encouraçado Potemkin. Quando aparece aquele marinheiro gritando com a mão na boca, eu já fico a favor dos oficiais”. Risos enevoados no parapeito da Faculdade de Comunicação (Ufba), em Salvador. “Apresento aos alunos: é uma obra-prima. E venho fumar aqui fora”. Barba de trotskista exilado, expressão rubra, a ironia apontada para dentro, Setaro profana o clássico soviético como quem esconde a devoção de quatro décadas a uma cachoeira de imagens.Os recortes de velhos artigos, empilhados em seu apartamento durante os anos de batucadas diárias na máquina Olivetti, se condensam nos três volumes de “Escritos sobre cinema – trilogia de um tempo crítico” (Azougue/Edufba). Esse patrimônio de coragem intelectual e de erudição ainda se sustenta numa dignidade rara nos ofidiários do jornalismo. Contra as vilezas provincianas, Setaro formou quatro gerações de leitores em sua coluna na Tribuna da Bahia, onde analisou os clássicos, as obras-primas nascentes, as pencas de lançamentos de Hollywood e, porque não é pecado, o corpo de Brigitte Bardot. Desde 2007 ele é colunista de Terra Magazine.
Fundador do Clube de Cinema, em 1950, o advogado e ensaísta Walter da Silveira iniciou a formação de uma cultura cinematográfica na Bahia, irradiada pelas sessões do Cine Guarany, onde fazia romaria o jovem Glauber Rocha. A partir da década de 1970, Setaro passou a cumprir essa missão, desta vez como solitário herdeiro da “responsabilidade humana e social” da crítica, defendida por Walter da Silveira. Ele superou o mestre no conhecimento da linguagem cinematográfica, da estética, da montagem, do “específico filmíco”: a sintaxe que move o cinema e o autonomiza diante de outras artes, a manipulação humana capaz de tornar Lillian Gish (a atriz dos filmes de D.W. Griffith) em algo mais que o regador dos irmãos Lumière.
André Setaro carregou o cinema aos bares de Salvador, no aprendizado de Jeniffer Jones e cerveja, de Luis Buñuel e cigarro, os “recuerdos” precedidos de uma sentença: “Concordo com Buñuel: o homem é a sua memória”.
De André Bazin, o extraordinário crítico do Écran Français e dos Cahiers du Cinéma, Setaro extraiu o rigor da análise e a certeza de que “todos os filmes nascem livres e iguais”. Bazin é um herói para os que amam o cinema, não somente por ter desbravado uma linguagem à procura de reconhecimento, mas também por salvar François Truffaut do desamparo de um reformatório. Num paralelo menos dramático, André Setaro salvou a nós outros, desgarrados do centro do Brasil, de uma ignorância monumental da história do cinema, nos tempos pré-download.
Dizia Truffaut, em 1955, que nenhum “enfant de France” sonharia em ser crítico de cinema quando crescesse (ele trataria de assassinar a própria frase). Em sentido contrário, os textos e a personalidade de Setaro estimulavam os alunos a ambicionar a ginástica da crítica. O resultado tanto podia ser um amontoado de pedantismos quanto o início de um interesse sincero pelo estudo do cinema. Setaro sabe identificar os dois tipos de alunos. Não concebe um espectador sem escolhas afetivas, impulsos, paixões. E assim exerce o jornalismo: devoto do papel, da tinta pregada nos dedos. Há quatro anos, infartado, ele convocou uma ambulância. A pontada mais violenta nasceria nos minutos seguintes, ao lembrar-se que seu artigo seria publicado, naquele sábado, no caderno cultural de “A Tarde”. Sob o risco de morte fulminante, desceu à banca de revista, pagou o jornal e subiu a ladeira para esperar o médico.
O relicário de paixões se enrosca no passado. Morte de Marlon Brando, em 2004. Passo uma semana à espera de sua coluna, e apenas silêncio. Telefonema: “Setaro, quando sai o necrológio?”. Brota uma voz macia: “Não consegui. Vou lhe dizer a verdade: ainda não me recuperei”. No hospital, outra vez infartado, ele aguarda uma cirurgia. Por desgraça astrológica, Antonioni e Bergman morrem no mesmo dia: 30 de julho de 2007. Peço aos amigos para lhe preservarem da tragédia. Entro no quarto, Setaro levanta a mão direita, inconsolável: “Bergman e Antonioni morreram!”. Um espírito de porco lhe dera a notícia por telefone.
“Godardiano” educado pelas leituras “antigodardianas” do crítico do Correio da Manhã, Antonio Moniz Vianna, Setaro sustenta o anúncio da morte do cinema. Melhor dizer: um certo tipo de cinema. Nenhuma de suas teses provoca mais irritação do que esta de enterrar o cinematógrafo. Se provocado, ele desdobra com a morte do humanismo, como fez numa conversa:
– O cinema que morreu, na verdade, é o dos grandes inventores de fórmulas. Cristalizada a linguagem cinematográfica em meados dos anos 60, a sintaxe se tornou estilo de cada realizador, sem contar, evidentemente, os artesãos que apenas ilustram um roteiro. A formação pelo cinema, a educação sentimental pelo cinema e a educação pelo cinema acabaram. Neste sentido, o de formador de público, o cinema está morto e enterrado.
Sem distanciar-se da imprensa, André Setaro carregou o cinema aos bares de Salvador, no aprendizado de Jeniffer Jones e cerveja, de Luis Buñuel e cigarro, os “recuerdos” precedidos de uma sentença: “Concordo com Buñuel: o homem é a sua memória”. Nas mesas, a arte estava inseparável dos fracassos da vida que poderia ter sido, e foi. Homem de obsessões machadianas, Setaro é essencialmente memorialístico. A crítica não ocorre em sua vida como um acidente, mas uma reflexão do seu desprezo ao tempo. Na forma silenciosa com que observa as pessoas, o desejo de retê-las para sempre.
A imposição da lembrança como prazer e dor, que o aproxima da obra de Alain Resnais, empurrou-o uma tarde à sua Marienbad, a casa da infância no bairro de Nazaré: reviveu o corredor imenso, as correntes e o cheiro do ar condicionado do Cine Guarany, o jambo da antiga Faculdade de Filosofia, a banca de Seu Paranhos, as árvores, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a figura do Padre Lemos. A casa resistia, apesar das esquadrias de alumínio. Inspirado pelo escritor Pedro Nava, descreveu uma outra vez cada detalhe do antigo Cinema Pax, na Baixa dos Sapateiros. “Escritos sobre cinema” recompõe André Setaro no exercício da crítica e da memória. O que prevalece é a trajetória de um olhar, o mesmo que insiste em retornar aos corredores da infância, ainda inviolado pelo primeiro filme de Catherine Deneuve.
Escrito pelo jornalista Cláudio Leal.