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02 junho 2007

Imagens do xaréu

A crítica, qualquer crítica, quando preparada para analisar uma obra, geralmente se arroga no direito de decidir sobre o seu valor estético, pensando estabelecer, com isso, a sua sorte. Claro que existem exceções, evidente que há aqueles que sabem interpretar com o equilíbrio necessário, ponderando as suas observações em função do exame estrutural da obra. Outros, mais afoitos, tentam, com palavras duras, destruir o que foi feito, não poupando palavras mais capazes de construir melhor as diatribes do que convenientes ao sabor analítico coerente e lúcido. Muitos se prendem às circunstâncias e procuram não destoar da opinião geral, com medo de ser tachado de dissonante. Embora necessária, vital, muitas vezes, para tirar de campo os falsos artistas e os falsos profetas, a crítica precisa se despir de sua arrogância e, no caso do cinema, procurar realizar, se isso for possível, uma espécie de desintelectualização a fim de eliminar, da crítica, os jargões, as exigências descabidas na procura de significados recônditos somente existentes na cachola de críticos que querem mostrar uma pseudo-erudição travestida de análise.

Mas se deixando para lá o problema da crítica e de seus cdfs, gostaria de dizer, aqui, algumas palavras sobre um curta que vi ontem: Imagens do Xaréu, de Marília Hughes, documentário que tenta mostrar o que aconteceu com a outrora tão festejada pesca do xaréu, que foi tema, inclusive, de dois filmes de um pioneiro do cinema baiano, Alexandre Robatto, Filho, que, em Entre o mar e o tendal (1953) e Xaréu (1953), procurou fazer uma espécie de cântico à pesca do referido peixe e a seus sofridos e lutadores pescadores. Hughes, com seu pequeno filme, cujo roteiro fora premiado no concurso do governo estadual, o Prêmio Agnaldo (Siri) Azevedo, procura mostrar o que aconteceu, nos tempos atuais, com os pescadores do xaréu. O documentário, no entanto, tem um alcance maior que é o da reflexão das imagens de um presente desiludido com as de um pretérito de entusiasmo. É a imagem da pesca do xaréu em suas duas manifestações que determina o desenvolvimento da idéia de Marília Hughes, é a imagem cinematográfica quem conduz a narrativa de Imagens do xaréu na procura de iluminar, por meio da imagem pretérita projetada, a realidade do presente, que contradiz a abundância do passado. Se, antes, durante a efervescência da pesca do xaréu, os pescadores, ainda que com peixes fartos, não podiam desfrutar das benesses da natureza, pois eram pagos não em dinheiro, como frisou o filho de Alexandre, Sylvio Robatto, mas em pequenas quantidades de peixes, a realidade atual é pior, pois uma paisagem de completo desalento. Não estaria aqui, neste particular, a gênese de Barravento, de Glauber Rocha?

Marília Hughes revela, a cada tomada, um apuro de composição com o fito de estabelecer, nos planos individuais, uma produção de sentidos particular que se vai somando para um sentido mais abrangente, que é o próprio filme, assim como se cada plano fosse uma tentativa de dar um sentido strictu sensu que, plano a plano, grão a grão, faz parte da composição do afresco final. Perpassando o desenvolvimento da narrativa, a imagem do xaréu, que se encontra presente até mesmo em locações específicas, como um super mercado. É como se o xaréu pertencesse (como pertence) à cultura da comunidade, fazendo dela parte inexpugável.

Tem-se, na estrutura de Imagens do Xaréu, filmagens in loco da paisagem, dos depoimentos dos antigos que ainda se lembram da pesca do xaréu, e as imagens de arquivo, que mostram tomadas de Entre o mar e o tendal. Compor uma relação entre o presente e o pretérito do xaréu parece ser o móvel da realização do documentário. Este, no entanto, não se limita a apresentar as imagens deslocadas no tempo, mas a sua tentativa é no sentido de intercalá-las num processo de simbiose como que dando a entender que a imagem do xaréu se encontra na consciência dos pescadores do presente e, da constatação do passado, uma desesperança quanto ao futuro.

O que se pode dizer em relação à estrutura de Imagens do Xaréu é que o apoio dele está nos depoimentos, sendo um filme, portanto, que se alicerca nos depoimentos e nas imagens dos pescadores. Mas o propósito de Marília Hughes não foi o de reinventar a linguagem do documentário.

31 maio 2007

Em busca do "Guarany" perdido



Hoje, dia 31 de maio, na Sala Walter da Silveira, exibição de dois curtas cujos roteiros foram premiados em concurso: Imagens do xaréu, de Marília Hughes, e O Guarani, de Cláudio Marques. O primeiro remete ao xaréu e ao pioneiro do cinema baiano, que foi Alexandre Robatto, Filho, que registrou em Entre o mar e o tendal e Xaréu, a pesca desta, que a documentarista Marília tenta resgatar nas imagens de seu filme. Já o outro curta, O Guarani, diz respeito ao cinema que ficava na Praça Castro Alves e que está se transformando em várias salas pela varinha de condão da magia empresarial (se isto é possível). Mas tenho uma ligação afetiva com o cinema Guarany. Não seria exagerado dizer que passei minha vida dentro do Guarany e, entre todas as salas de Salvador, era a minha preferida. Desde pequeno, inaugurando minha cinefilia, e, em conseqüência, minha trajetória de cinéfilo soteropolitano (que depois pisaria em outras plagas), o Guarany, para mim, tinha um encanto particular. Da Praça Castro Alves, ou, como se dizia antigamente, do Largo do Teatro, sentia o cheiro do ar condicionado do cinema, que me inebriava, como uma madeleine proustiana. Gostava de chegar mais cedo somente para ficar sentado na bela sala de espera, olhando os filmes anunciados para breve e aguardem, maravilhado com sua bombonière com os drops enfileirados, tudo muito arrumado, balas, jujubas, chicletes - longe, muito longe, da bagunça do hoje, dos baldes imensos de pipocas, dos refrigerantes 750ml post mix, das guloseimas, etc. O documentário de Marques tem imagens de arquivo, de jornais antigos, filmagens in loco, além de vários depoimentos. O de Orlando Senna é muito interessante, porque diz sobre a apresentação de Deus e o diabo na terra do sol, que Glauber Rocha, pronto o filme, pela primeira vez o apresentou aos amigos, e o cinema escolhido, num dia de manhã, foi o Guarany. Senna conta que quando o filme acabou todos ficaram por mais de dez minutos calados, extasiados, e em seguida, todos começaram a chorar. O artigo que se segue foi publicado há alguns anos no site Coisa de Cinema no qual tenho uma coluna (http://www.coisadecinema.com.br).
Inaugurado em 1917, na Praça Castro Alves, a praça do Poeta, era um cinema acanhado, embora confortável e freqüentado pela elite baiana. Nos anos 50, sofreu reforma infraestrutural para se adaptar ao novo formato que então surgia, o Cinemascope, implantando também o som estereofônico. A Fox, temendo a concorrência televisiva, decidiu colocar no mercado o Cinemascope e o filme de estréia, neste processo anamórfico – tela retangular e muita larga – foi O manto sagrado. Os baianos puderam vê-lo, em meados do decurso dos 50, no Guarany, em noite de gala, e ficaram surpresos quando Richard Burton, um de seus atores principais, ao andar do lado esquerdo para o lado direito do enquadramento, tinha sua voz também a acompanhá-lo. Era a novidade do stéreo que espantava àqueles acostumados à uniformidade do mono. Há um livro sobre a reforma do cinema Guarany, editado pela Construtora Norberto Odebrecht, que, esgotado, desapareceu, nunca conseguindo sequer vê-lo de longe. Foi no Guarany também que se deu a estréia de Redenção, em 1959, de Roberto Pires, o primeiro longa metragem do cinema baiano, cuja lente, anamórfica, foi inventada pelo próprio diretor.

Ao contrário das salas atuais, todas iguais, os cinemas do pretérito possuíam estilo, cada um com um toque diferente, uma decoração especial, e o Guarany, neste particular, era, para mim, o mais atmosférico. Antigamente, aquele espaço frente a esta sala exibidora se chamava Largo do Teatro, porque o Guarany também tinha um proscênio no qual se encenavam peças aclamadas muitas vezes oriundas do eixo Rio-São Paulo. Assim, a atmosfera do cinema começava na sua entrada, com o ‘cheiro’ de seu ar condicionado. A sala de espera era um recanto para se ficar vendo os cartazes e as fotos dos filmes que iam seguir e que em breve estariam em cartaz. Além de sua sofisticada bombonière – era desse modo que todos se referiam àquele pequeno espaço onde se vendiam drops, chicletes, chocolates, com todos arrumados em filas indianas ou, mesmo, militarmente ordenados.

A sala de projeção se dividia entre a platéia – lugar mais privilegiado – e um balcão cujo acesso se fazia por duas escadas laterais. Na primeira, antes do palco, um espaço para orquestra. E, como era hábito naqueles bons tempos que não voltam mais, quando o filme começava, antes que as cortinas fossem abertas, luzes coloridas se revezavam enquanto se ouvia um trecho de O Guarany, de Carlos Gomes. Era o sinal de que a função iria se iniciar. Antes, no entanto, enquanto esperava a sessão, o gongo anunciador, a partitura musical do filme a ser apresentado era dada aos ouvidos dos presentes para uma melhor familiarização, um esquentamento, por assim dizer. Ficava, então, a olhar os índios em fila da parede do lado direito pintados por Carybé, assim como os peixinhos enfileirados da do lado esquerdo. Havia, portanto, uma atmosfera especial, e o cinema era, como no teatro, uma função.

A partir da introdução do Cinemascope todos os outros cinemas tiveram que se adaptar ao novo formato, mas o Cinemascope do Guarany era especial, pois era o mais espetacular da província da Bahia. Nos cinemas atuais não existe mais esta atmosfera, esta preparação, este, se quiser, ‘esquentamento’, pois a tela, sem cortina, recebe o filme de repente, jogado de supetão sem nenhum aviso prévio. Mas os tempos são outros. Antes, as imagens em movimento estavam confinadas apenas nas salas escuras dos cinemas, enquanto, hoje, estas podem ser vistas nos mais variados suportes. Já se chegou ao requinte de baixar filmes pela internet com uma bem razoável definição de imagem.

Walter da Silveira, em meados dos anos 60, instalou o seu Clube de Cinema da Bahia no Guarany, com as sessões realizadas aos sábados pela manhã, às 10 horas. Foi, portanto, nesta sala, que comecei a minha formação cinematográfica, acostumado à programação do circuito cuja característica principal estava no cinema de gênero americano – os westerns, os musicais, as comédias românticas, os thrillers, etc. Vim a conhecer o cinema como expressão de uma arte, o cinema de autor, vendo filmes como Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, Guerra e humanidade, de Masaki Kobayashi, O eclipse, de Antonioni, Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, entre muitos e muitos outros.

De propriedade do Estado da Bahia, o Guarany era arrendado a Condor, cuja distribuição ficava a cargo de Aluísio Ribeiro e a gerência administrativa exercida por Francisco Pithon. Pressentindo a crise pela qual passava o cinema como espetáculo – superada com o toque de Mídias de George Lucas e a suas ‘guerras nas estrelas’ e a descoberta do filão infanto-juvenil, quando se deu a infantilização temática que continua a infestar até hoje os produtos audiovisuais da indústria cultural hollywoodiana, a Condor resolveu sair do mercado exibidor, em 1975, e transferir o arrendamento de suas salas à CIC (Cinema International Corporation) que, anos mais tarde, viria a se chamar UPI (United International Pictures). A passagem do Guarany às mãos multinacionais da CIC foi motivo de protesto da associação congregadora dos cineastas baianos, que emitiu uma nota furiosa, denunciando que o governo estava entregando um imóvel de seu patrimônio a uma multinacional contrária aos interesses do cinema brasileiro. Se na há engano no andamento de minha memória, assinei tal protesto – foi durante a administração da Embrafilme que o Guarany se tornou Glauber Rocha, quando da morte deste que é o maior cineasta brasileiro de todos os tempos. ACM, então governador da Bahia, no dia seguinte ao falecimento do realizador de Terra em transe, assinou ato determinando tal mudança nomenclatural.

Com a decadência galopante do centro histórico da cidade e a abertura das avenidas de vale e, principalmente, a construção dos shoppings centers, os cinemas do centro foram entrando em decadência. A CIC não se interessou em renovar o contrato. Existia, nesta época, 1980, toda poderosa, a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A), que, com sucursal bem montada em Salvador, assinou contrato com o Estado para entrar no mercado exibidor. Iniciativa pioneira em todo o Brasil, porque a Embrafilme se restringia à produção e distribuição de filmes brasileiros. Neste período, em 1982, uma Jornada foi toda concentrado nesse cinema, com grande êxito, aliás. O Guarany passou a ser administrado por esta empresa e vem daí, talvez, sua decadência. Luis Carlos Barreto praticamente mandava na programação do cinema, determinando que filmes produzidos por sua empresa ficassem semanas e semanas em cartaz, mesmo que vistos por moscas. O Guarany de meus tempos foi perdendo a sua ‘aura’.

Em 1985, mais ou menos, a Embrafilme, ‘cansada’ de tanto insucesso, entrega o cinema ao Estado e este, novamente, resolveu fazer uma licitação para arrendá-lo. A Art ganhou, mas, pelo menos, era uma companhia brasileira importadora de filme e também exibidora. Mas desfigurou o projeto original com uma reforma oportunista. Não diria que foi a Art quem levou o Guarany à ‘sepultura’, mas foi na gerência desta empresa que o Guarany fechou suas portas.

E a lembrança do Guarany leva, necessariamente, à lembrança do Bar e Restaurante Cacique, lugar ideal para uma cerveja gelada ‘a las cinco de la tarde’, após uma ‘matinée’.

30 maio 2007

A eternidade e permanência de "La dolce vita"


Lendo sobre os 60 anos do Festival de Cannes (no blog de Jonga Olivieri http://jongas.blogspot.com, que recomendo sem hesitação), lembrei-me do impacto que foi La dolce vita para meus verdes anos. E La dolce vita ganhou a Palma das Palmas concedida por rigoroso júri pleno de celebridades. Daqui deste blog, e para o mundo, se pretensioso fosse, declaro que se trata de um dos monumentos do século XX, que transcende o cinema.



Discurso sobre o processo decadentista da civilização ocidental em meados do decurso do século XX – e é impressionante a visão premonitória do autor, La Dolce Vita aborda, com grande criatividade, alguns problemas existenciais do homem moderno, assumindo proporções de um vasto documentário de um tempo contraditório e conflituoso.Fellini celebra e critica o hedonismo moderno nas andanças do jornalista Marcello (Marcello Mastroianni) por uma Roma devassa onde circulam, principalmente na famosa Via Veneto, intelectuais, celebridades, astros e estrelas do cinema. La Dolce Vita pode ser considerado o filme-síntese da primeira fase do cineasta, que abandona a decupagem clássica em função de um ritmo no qual as seqüências se sucedem sem a tradicional progressão dramática. Cada seqüência do filme tem, por assim dizer, uma propulsão restrita a ela mesma sem a necessidade dos liames narrativos à Griffith.


O impacto de A Doce Vida foi enorme em sua época e a sua visão, hoje, ainda consegue atingir o deslumbramento de quarenta anos atrás – assim como ocorreu com Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti. Há momentos antológicos, se o filme não fosse, ele mesmo, uma antologia: na abertura, o Cristo de gesso que passa de helicóptero sobre a Cidade Eterna serve como prenúncio da obra-prima que virá a seguir. Outro momento fulgurante é o aparecimento de uma estrela de cinema (Anita Ekberg) e sua visita, fantasiada de padre, à Catedral de São Pedro ou quando ela e Marcello se beijam na Fontana Di Treve (revivido com singular poesia em Nós que nos Amávamos Tanto, de Ettore Scola, 1974). Ou a desmistificação do marketing organizado em torno de um milagre religioso. Fellini, com seu especial sentido de cinema, adentra no dolce far niente dos parasitas sociais que vivem à custa dos outros. A soirée na casa do filósofo Steiner (Alain Cuny) e seu apavorante suicídio são dois pontos dramáticos que causaram polêmicas quando do lançamento de "La Dolce Vita" há quatro décadas atrás. De personalidade enigmática, mas sinalizadora de uma esperança para a humanidade em crise, Steiner, com sua morte imposta, com a destruição de seu ser – e pelo fato de, talvez, ser o único personagem positivo e consciente do filme, configurava uma esperança que se viu despedaçada no momento em que o cineasta mata a personagem. Assim como, na derradeira seqüência de La Dolce Vita, aparece, enquadrado em toda a extensão da tela como um quadro de Hyeronimus Bosh, um peixe enorme que crava seu olho único sobre os sobreviventes da longa noite de loucuras, da notte brava.

La Dolce Vita, o sétimo de Fellini, engloba todos os anteriores – é, mais ainda, a soma de todos. Na sua filmografia se pode distinguir três fases: a primeira dos boas-vidas, das cabírias, da estrada e dos trapaceiros, onde o cineasta ainda se atém a um discurso moldado aos cânones da narrativa mais acadêmica, ainda que, se bem observados, estes filmes da primeira fase já rompem com o academicismo; e La Dolce Vita, em l960, inaugura a segunda fase e registra um desprendimento visível com a etapa anterior. Existe um Fellini antes de "La Dolce Vita" e um Fellini depois de La Dolce Vita. O corte longitudinal viria, no entanto, em "8 ½" (1964), onde a narrativa, de estrutura complexa, de inserção, mistura tempo e espaço; a terceira fase pode ser considerada aquela que se inaugura com Roma (1971), quando o cineasta, a partir daí, começa a estilizar seus temas anteriores até chegar ao preciosismo de Amarcord (1974) – e neste há uma das seqüências mais bonitas de toda a história do cinema: a chegada triunfante do transatlântico Rex.Se atualmente a exibição de La Dolce Vita não é capaz de despertar mais arruídos nem a ira dos moralistas e conservadores, na época, porém, este extraordinário filme chegou, inclusive, a ser condenado pela Igreja.

Walter da Silveira (o grande ensaísta baiano hoje esquecido) publicou um longo ensaio no "Diário de Notícias" (depois reunido no livro Fronteiras do Cinema), no qual esclarece as intenções do artista sufocado, naquele tempo, pelas diatribes conservadoras: "Nada traduziu melhor o caráter ecumênico de La Dolce Vita do que a repulsa ostensiva ou disfarçada da maior parte do público, em todo mundo. Dizem que a audácia de Fellini consistiu unicamente em documentar as faces negativas do ser humano e do social, sendo a sua moral uma ética da impiedade, sem um clarão breve e tênue a iluminar as sombras densas. Mas, além de inverdade, por que recusar ao artista o direito ao realismo crítico do que vê de hediondo diante dele, sem poder enxergar, nas trevas, qualquer efêmera e insignificante luz? Fellini não mostrou que toda a humanidade está perdida: viu e expôs uma fração humana que já não ouve os frescos chamados da inocência, porque sobre as praias da vida o único rumor vem do mar de todas as angústias e a única imagem insistente deriva de um podre peixe simbólico, de olhos abertos três dias depois de morto. E tanto Fellini não quis exprimir a perda de toda a humanidade, porém somente de uma parcela, que, do ponto de vista do estilo, da linguagem, La Dolce Vita não constitui uma unidade narrativa, mas várias que se interrompem e alternam, com o nexo ontológico permitido pela presença contínua de Marcello, o jornalista que vê o mal e de tanto vê-lo acaba por participar de sua crueldade e de seu egoísmo".La Dolce Vita já se tornou há muito tempo um clássico da sétima arte. Realizado em plena efervescência da renovação da linguagem cinematográfica, em fins dos esfuziantes anos 50, quando explodia por todas as partes uma neo-avant-garde – nouvelle vague, Cinema Novo, free cinema, underground novaiorquino, Resnais, Antonioni, Godard..., o filme de Fellini, além de documento de uma época, possui uma beleza extraordinária. E entrou direto para o folclore internacional de nossa época; o próprio título foi imediatamente incorporado ao jargão jornalístico universal; os paparazzi da Via Veneto revelaram-se parentes próximos de certa fauna de fotógrafos furões do mundo inteiro.

Nada além d'Esses Moços



Há um quê de chapliano nos filmes de José Araripe, principalmente Mister Abrakadabra, que possui a dinâmica do cinema mudo e revela, em suas imagens, uma querência de poesia que possa emergir daqueles sonhadores que se encontram marginalizados do convívio social, assim como nos três perâmbulos de Esses moços. Em Rádio Gogó, curta, assim como a fita do mágico, que assinala a derradeira aparição de Jofre Soares no cinema, também o enfoque é sobre pessoas que tentam se firmar como autênticos locutores, embora não passem de simulacros perdidos.

Em um determinado momento de Esses moços, eis que Gideon Rosa adentra o vagão de trem, trajando passeio completo, e como pastor, declama alto e bom som suas palavras de ordem divinas. O velho Diomedes, sentado, ainda que não se espante, diz a ele que Jesus falava mais baixo. O trem da Calçada me faz também recordar a minha infância, apesar de criado na Cidade Alta, no bairro de Nazaré. Mas ia muito à Cidade Baixa e um belo dia tomei o trem para ir a São Tomé de Paripe passar o domingo com um parente que lá veraneava. O trem tem um sabor nostálgico. Esses moços como que redescobre a imagem de uma Bahia que parecia perdida, ainda que marginalizada e pobre.

Gil cantando Esses moços, de Lupicínio Rodrigues, encerra o filme, que vai mostrando as imagens suburbanas. Um touch poético, sem dúvida, e a imagem de Diomedes no trem, sentado, expressa toda a sua solidão e a sua necessidade de integração a um passado que o vento levou, quando era músico de orquestra, da orquestra dos ferroviários. Ao contrário de filmes como Ó Pài, Ó, cujos gritos carnavalizam uma Bahia decadente, mas, por outro lado, registram a miséria de nossa cultura, Esses moços tem uma narrativa tranquila, sem os faniquitos peculiares à contemporaneidade axesística.

Um nome a registrar: a do diretor de fotografia Hamilton Oliveira cuja iluminação dá a Esses moços uma intensa participação da luz no processo de criação cinematográfica. Fotografia boa é aquela que irradia a luz, pontuando-a nos locais exatos e que possa servir de apoio à narrativa. Hamilton soube compreender, fotograficamente, os propósitos de Araripe em Esses moços e lhe deu a iluminação adequada. Já conhecido do cinema baiano por sua competência, Hamilton Oliveira dá, aqui, no filme de Araripe, passos largos em direção à sua consolidação como um dos melhores diretores de fotografia do cinema brasileiro.

Publico amanhã, na minha coluna da Tribuna da Bahia, um comentário crítico sobre Esses moços.
A foto que ilustra o post é a de José Araripe, o diretor.

29 maio 2007

Adeus cigarro velho de guerra!



O bloguista (será blogueiro?) antes do enfarte agudo e das pontes de safena a fumar seu inesquecível cigarro Hollywood, um dos prazeres da vida. Parei de fumar, é verdade, mas nunca entrarei para o bloco dos neuróticos antitabagistas. Sempre que alguém quiser fumar perto de mim terei imenso prazer e, se for o caso, vou procurar fósforo ou isqueiro para acendar o cigarro do próximo, caso ele não tenha fogo. O cigarro foi meu amigo por quarenta anos, considerando que comecei a botar nicotina nos pulmões aos 16. Assim, 40 mais 16 é igual a 56, minha idade atual. Nos últimos anos, fumante, já me senti marginalizado por causa da psicose antitabagista. Gostava, por exemplo, de tomar um chopinho num restaurante árabe num shopping perto de minha casa, mas, ano passado, houve proibição expressa de fumar. Mudei de bar. As pessoas olham de soslaio e de esguelha para aqueles que fumam como se fossem marginais ou estivessem fazendo alguma coisa feia. Mas, pensando bem, verifiquei que está a fazer meio ano que não coloco um cigarro na boca. Consegui me ver livre do coitado. E preciso não tocá-lo, pois me faz mal e pode ser o meu fio condutor para a sepultura. Mas, contrariando médicos, creio que meu insulto cardíaco se deveu à minha herança genética, coadjuvado, lógico, pelo cigarro, pelo álcool, pela vida sedentária, pela alimentação com ingestão de gorduras colasteróicas e trigricéricas. Passou recentemente, domingo passado, no modernoso GNT, um filme sobre o cigarro. Há pessoas com fervor religioso que militam contra o cigarro. Na China, um de seus habitantes, procura pelas ruas quem está a fumar para que apague o cigarro em troca de uma cédula de dinheiro. Há loucos por toda a parte. O cigarro, por seu lado, acompanha o indivíduo nos momentos solitários, fá-lo ficar mais concentrado. Inclusive, no filme da GNT, um intelectual americano disse que é impossível haver hoje uma geração de grandes escritores, por causa dessa mania de não fumar. Segundo ele, os grandes escritores do século XX gostavam muito de fumar. Pode-se imaginar Humphrey Bogart sem o seu cigarrinho? Acho melhor parar por aqui porque senão, terminando de digitar este post, vou ali, na esquina, comprar uma carteira de Hollywood (o vermelho, o vermelho).
Comecei a fumar Continental sem filtro e passei pouco tempo depois para o Hollywood, cuja carteira, vermelha, com o H gótico, lembro-me muito bem. Era também sem filtro. Creio que foi em 1966 que chegou, com grande estardalhaço, e deslumbramento para os amantes de Hollywood, o Hollywood com filtro. Foi uma novidade, mas alguns, mais conservadores, mais tradicionalistas, na sua ânsia de ter a melhor fumaça, diziam que nunca iriam aderir ao com filtro. Mas a própria Souza Cruz acabou com o Hollywood sem filtro, obrigando todos os hollywoodimaníacos, como eu, a adotar o com filtro, que era companhia inseparável. Onde estivesse, dentro de meu bolso, lado esquerdo da camisa, em cima do coração, a carteira de Hollywood, aberta pelo meio, parede e meia com a minha esfereográfica. Naquela época se falava muito na excelência do cigarro importado, que era vendido no contrabando. E nenhuma casa deixava de ter seus cinzeiros de vidro (alguns de cristal), grandes, que faziam vista àquele que chegava de visita a uma residência naqueles anos dourados. Fumava-se em qualquer lugar e havia beleza nisso. Não havia os naturebas, os eco-chatos, entre muitos outros, a desgraça do politicamente correto ainda não imperava para mediocrizar a vida do homem contemporâneo. Era bonito se tomar um porre, vomitar bílis, ficar embriagado, beber todas. Eu, por exemplo, ainda que não fume para não morrer, adoro o cigarro, acho bonito uma pessoa que fuma. E gosto muito de carne vermelha, sangrando, para fazer, com o sangue, uma farofa vermelha.

27 maio 2007

A roda da fortuna



Na década de 90 dois realizadores americanos despontaram na preferência da crítica: os irmãos Joel e Ethan Coen, principalmente depois do impacto em Cannes de Barton Fink, em 1991. Seu melhor filme, no entanto, na minha opinião, continua sendo A roda da fortuna (The hudsucker proxy, 1994), uma comédia de invenção que remete ao cinema de Frank Capra, principalmente, Billy Wilder, com alusões diversas (de Metrópolis, de Fritz Lang, a Cidadão Kane, de Orson Welles). Mas os irmãos Coen se perderam nesta última década e se encontram muito longe de seus sucessos pretéritos. Poucos os cineastas que, reconhecidos, entram, assim, em franca decadência, ainda que seus últimos trabalhos não sejam desprezíveis. A roda da fortuna é um primor de narratividade, de invenção de fórmulas, de cinema enquanto explicação do próprio cinema, uma obra cinematográfica na qual a narrativa tem uma função primordial em relação ao que está sendo contado. Os interiores da empresa de Hudsucker, com a disposição espacial dada pelos enquadramentos dos Coen, o busto do fundador da companhia que se suicida, as mesas, a altura, etc, fazem sugerir a biblioteca de Thatcher em Kane e a disposição de Welles na maneira de enquadrar, dispor os objetos no quadro fílmico. Por outro lado, a fábula é Frank Capra, e o anjo, no final, interpretado por Charles Durning, vem a lembrar, imediatamente, A felicidade não se compra (It' wonderful life, 1946). Os escritórios com as mesas enfileiradas remetem à cenografia que Alexandre Tauner fez para Billy Wilder em Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960), que, pensei nas últimas semanas, colocaria entre os dez maiores filmes de todos os tempos (pena que não tenha cópia em DVD). O 'subterrâneo', onde ficam os empregados menos graduados, pode fazer recordar Metrópolis (1928), clássico de Lang.
Joel e Ethan Coen sabem fazer emergir a mise-en-scène como na seqüência final, quando Tim Robbins se joga do alto do edifício da empresa e, de repente, o tempo pára, e, neste interregno, encontra o velho empresário que praticara o mesmo gesto suicida. Paralelamente ao que acontece entre os dois personagens, Robbins e Charles During, efetua-se a luta contra o tempo entre o seu vigilante, que parou o tempo para tentar ajustar as coisas - dirigindo-se, inclusive, ao público antes de acionar o dispositivo, e aquele careca que deseja o desastre - o que aparece sempre a pintar os letreiros da porta de vidro. Há também, entre outros momentos, muita criatividade no processo de lançamento do bambolê desde a idéia inicial até a sua colocação no mercado, a expectativa gerada diante de sua viabilidade comercial, o estouro de vendas, a introdução de noticiários em branco e preto fakes, o menino que, por acaso, pegando um bambolê jogado fora, acionando-o, vira atração da garotada do colégio vizinho. Os Coen fazem da narrativa um instrumento poético para uma comédia que reflexiona sobre os clichês do cinema do pretérito para contar uma fábula de maneira inteligente e encantadora.

Recomendaria para quem gosta de cinema que fosse procurar The hudsucker proxy nas locadoras. Vale a pena. No elenco, Tim Robbins, Jennifer Jason Leigh, Paul Newman, Charles Durning, Sam Raimi, John Mahoney, entre outros. A iluminação é de um artista: Roger Deakins, e a partitura, extremamente funcional, de Carter Bartwell.