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25 janeiro 2014

"Amores parisienses", de Alain Resnais

Amores parisienses  (On connaît la chanson, 1997)  contextualiza o cancioneiro francês numa fábula sobre encontros e desencontros amorosos. Impressionante a vitalidade - e a inventividade - de Resnais, um artista que já beira os oitenta anos de idade e continua a trabalhar, a inventar a cada fotograma, a refletir em seus filmes sobre a natureza do cinema.

Alain Resnais é um inventor de fórmulas, um realizador que se poderia chamar de "sui generis". Antes de fazer longas metragens, realizou preciosos documentários, com Toda a memória do mundo" ("Toute la memoire du monde"), Nuit et brouillard, Van Gogh, entre outros. Neste último, o uso do travelling e do zoom proporcionam uma verdadeira análise perfuratriz da obra desse gênio pictórico, revelando não somente a arte do mestre, mas, também, a arte de usar o veículo cinematográfico com uma função didática e artística exemplar. Resnais em "Van Gogh" reinventa o documentário, assim como em "Nuit et brouillard", obra-prima sobre os campos de concentração nazistas. Realizador dotado de um rigor formal fora do comum, Alain Resnais viria a deixar o mundo estupefato quando, em 1959, projeta "Hiroshima, mon amour", conjugando a imagem e o som num filme recitativo que "rompe" com o círculo vicioso da dramaturgia acadêmica para situar a sua estrutura narrativa não mais sobre um crescendo dramático, mas em torno de idéias e situações. Se "Hiroshima, mon amour" se constituiu num autêntico choque estético, este seria retomado com mais força e potência dois anos depois em "O ano passado em Marienbad", quando Resnais incursiona pelos arcanos da memória de um homem que, num balneário, fica em dúvida se esteve, ou não, com uma linda mulher, no ano anterior.

Não pretendo fazer aqui um inventário filmográfico desse surpreendente autor - mesmo porque o espaço não mo permitiria. Mas necessário dizer que Alain Resnais tem um "touch" genial a cada filme, sempre procurando inovar na sua "mise-en-scène", sem, contudo, procurar o novo pelo novo, sempre lúcido e coerente, investigador da natureza do cinema e de suas possibilidades expressivas. Assim, em "Meu tio da América" (1980) realizou o que se poderia denominar de filme-ensaio, de filme-demonstração, que, creio, tem uma originalidade absoluta no que se fez no cinema ate então, excetuando-se, talvez, a narrativa fragmentária e ensaística de "Duas ou três coisas que eu sei dela", de Jean-Luc Godard nos anos 60. O filme de Resnais, porém, segue outra rota, outro caminho, outra seara.

Em "Amores parisienses", o autor de "Hiroshima, mon amour" faz inserir o cancioneiro tradicional francês (Aznavour, Piaf, Montand...) numa fábula simples e encantadora. Uma guia de turismo, Camille (Agnes Jaoui, que esteve em Salvador para prestigiar o festival e, além de atriz , é, também, diretora), que trabalha enquanto conclui uma tese de doutoramento sobre objeto insólito, se apaixona por um corretor de imóveis (Jean Pierre Bacri) que, na verdade, deseja somente vender um apartamento à irmã dela (Sabine Azéma, intérprete da predileção do autor), que, por sua vez, vive o cansaço de um matrimônio percorrido pelos anos. Mas um senhor de mais idade (André Dussolier), que a acompanha nos trajetos, está também loucamente apaixonado. Enquanto isso, um motorista particular vive problemas domésticos. Os personagens se interligam, as situações se confundem. No desenvolvimento da fábula, de repente, os atores começam a cantar canções típicas para a expressão de seus sentimentos momentâneos.

Captação dos "recursos" musicais de uma cultura, com a expressão fabulística de um conto moderno, "Amores parisienses" é um filme singular na maneira pela qual o realizador articula os elementos de sua linguagem, dotando-os de uma singularidade no estabelecimento da "mise-en-scène". A sequência final, por exemplo, que se passa toda no apartamento recém adquirido, onde se realiza uma festa, reunindo nela todos os personagens da trama, é um primor de solução dos problemas enfileirados no roteiro. Há ecos de um Jacques Demy nesta sequência derradeira.

O cinema de Alain Resnais é um cinema da oralidade, mas, nem por isso, deixa de ser profundamente cinematográfico. Resnais tem a coragem de assumir a plena teatralidade em "Smoking", por exemplo, filme sobre a fatalidade da vida e seus acasos, onde se permite a proposta de vários finais. Atingindo a plenitude da forma cinematográfica nos seus primeiros filmes, na maturidade ousa experimentar outras fórmulas de narração, outras soluções demonstrativas de uma "mise-en-scène", como já disse, extremamente rigorosa. Trata-se de um mestre e de um artista, que, em seus filmes, explicita o cinema e a explicação do cinema.

22 janeiro 2014

Como uma torrente...

O título da obra-prima de Vincente Minnelli em português, Deus sabe quanto amei, vem a desmerecer o filme e pode fazer parecer se tratar de um melodrama banal. O original é Some came running e que, traduzido ao pé da letra, seria Alguns vieram correndo. Na França, foi chamado de Comme une torrent… (Como uma torrente...)
Longe das telas há muitas décadas (foi visto na época de seu lançamento e depois desapareceu), Deus sabe quanto amei, para a satisfação dos admiradores de Minnelli (entre os quais se inclui este comentarista), saiu, já há algum tempo,  em DVD luzidio, em cópia muito boa distribuída pela Warner Bros como um dos integrantes da Coleção Frank Sinatra. Trata-se de acontecimento da maior importância para os minnellianos, os quais, infelizmente, são poucos no Brasil. Mas a sua revisão o coloca entre um dos melhores filmes americanos de todos os tempos.
O filme é um retrato da sociedade americana na década de 50, realizado com o requinte particular de Minnelli. Baseado no livro de James Jones (o mesmo escritor de A um passo da eternidade), Some came running, para ser melhor apreciado, precisa estar contextualizado na obra do diretor. Realizador de extremo bom gosto, Minnelli se dividiu, em sua trajetória de funcionário da Metro Goldwyn Mayer, entre os insuperáveis musicais que dirigiu (O pirata, A roda da fortuna, Sinfonia em Paris, Gigi, A lenda dos beijos perdidos…), os dramas ásperos (Assim estava escrito, A cidade dos desiludidos…), e as comédias românticas (Papai precisa casar, Teu nome é mulher, Brotinho indócil…).
Em Some came running, Frank Sinatra é um romancista frustrado que depois de longo tempo retorna à sua cidadezinha e reencontra, nela, seu irmão rico e mesquinho (o grande Arthur Kennedy). Na verdade, depois de uma grande bebedeira em Chicago, na qual houve briga e agressão, o personagem de Sinatra foi colocado no ônibus em direção à cidade natal. Junto, viaja uma prostituta, Shirley MacLaine, no papel que despertou os olhares da crítica internacional, que se apaixonara por ele. Quando chega, janta na casa do irmão (que lhe colocara ainda menino num orfanato de onde fugira para ficar on the Road), conhece uma professora de literatura que admira seus livros e pela qual tem um romance (Martha Hyer) e faz amizade com um bon vivant, jogador profissional (Dean Martin).
O filme caminha a passos lentos, mas rigorosos, em direção à tragédia final no parque de diversões, quando Minnelli exercita o fulgor de sua esplendorosa mise-en-scène, a utilizar, com grande estesia, a montagem paralela e as cores como um arabesco para a composição de seu painel trágico.
O que pode haver de tão especial num filme à primeira vista simples e até mesmo estruturado dentro da convenção estabelecida do estilo de representação do cinema americano? O diferencial reside, a rigor, na escrita minnelliana, no seu modo de estabelecer e articular a narrativa. Há, bem observado, um particular sentido de composição dos enquadramentos (e sendo o filme em cinemascope, Minnelli sabe encher a tela larga com eficiência dramática, a fazer com que seus personagens habitem-na com funcionalidade do espaço cinematográfico). E impressionante o seu conceito de duração das tomadas. A bem ver, o filme se estrutura, como se disse, a passos lentos, como se tudo estivesse preparado em função da catarse final, um grand finale no qual o artista que é Minnelli se mistura com a arte de um pintor e de um músico, já que a montagem é, no final das contas, pura pulsação, puro ritmo, puro timing.
O equilíbrio de composição da estrutura narrativa minnelliana (e não se está a falar apenas de Some came running, mas de todo o cinema deste realizador) é de uma extraordinária força dramática. No caso específico de Some came running, o melodrama é elevado ao patamar trágico. A tragédia do homem e da procura do amor. A tragédia de uma sociedade viciada e preconceituosa. A tragédia que enleva e que proporciona a ars poética.
Com o cinemascope, o registro visual que Minnelli estabelece é no sentido do aproveitamento do espaço maior com tomadas longas nas quais, ao invés de a câmera se movimentar, são os atores que habitam o espaço, que se deslocam neste para evitar o corte. Assim, tem-se as tomadas com maior duração em todo o decorrer do filme, à exceção do final do Carnaval no parque de diversões, quando o realizador muda o registro visual, e os cortes se sucedem com maior rapidez num festival de luzes e cores, ângulos insólitos, pulsação, ritmo. Nesta seqüência derradeira, vê-se o estilo minnelliano dos seus musicais primorosos e o cinema se estabelece como timing ou, melhor dizendo, o que se tem, nesta seqüência, é a beleza do cinema em sua quintessência. Um design visual de grande impacto.
Além da seqüência final do Carnaval, que é antológica, e já registrada como um dos momentos sublime da história do cinema, há uma outra também de sublimidade mais de um ponto de vista humanístico do que estético. É aquela quando Sinatra lê para MacLaine o seu conto que a professora de literatura consegue publicá-lo numa revista de Nova York.
Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumularam nele (tempo, décor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. A personalidade da personagem de MacLaine é de uma humanidade e de uma generosidade capaz de dotá-la de uma singularidade e ser ela assemelhada a uma Cabíria, aquela prostituta de Fellini interpretada por Giulietta Massina que, por sinal, MacLaine também a viveu na versão musical de Le notti de Cabiriadirigida por Bob Fosse, Sweet Charity.
No final do filme, a câmera se desloca para mostrar, abalados, os personagens da tragédia durante o enterro dela. Dean Martin, o jogador inveterado, que nunca admitira tirar o seu chapéu, mesmo a dormir ou num hospital, tira-o para ela, ele que sempre criticara as mulheres, mas que, naquele momento, se rende e presta uma homenagem a seu modo à personagem de MacLaine. E a câmera millenniana se movimenta para observar a paisagem. A vida continua, afinal de contas.
Há cineastas, como observou o crítico lisboeta João Bénard da Costa, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de avis raras.
Os minutos finais de Some came running representam uma admirável lição de como integrar os esquemas narrativos do cinema musical dentro de uma estrutura estética fundamentalmente dramática.

19 janeiro 2014

Cinema sempre agredido na televisão

Sempre estou a escrever sobre os atentados que sofrem os filmes originariamente feitos no formato Cinemascope e nunca ninguém (e falo de pessoas que gostam de cinema) deu bola para isso. Bato no Telecine Cult,que apresenta estes filmes em tela cheia (full screen), com exceções. Nos últimos meses, verdade seja dita, o Cult tem tido mais respeito pelos filmes em CinemaScope.

Mas encontro, no excelente blog de Inácio Araújo, um artigo assinado por Juliano Tosi que explica didaticamente o prejuízo que os filmes originariamente em CinemaScope sofrem quando exibidos na televisão. Não se pode deixar de ler e recomendo que se faça uma reflexão sobre o assunto. O endereço do blog é: http://inacio-a.blog.uol.com.br/

Uma pessoa que se diz cinéfila não pode entender de cinema se não presta atenção para a questão dos formatos danificados e estupidamente deformados. Há, entre os cinéfilos, noto, e a palavra é esta, uma certa ignorância em relação aos formatos. Modéstia à parte, vejo, de imediato, se um filme, mesmo que o não conheça, está deformado ou sendo exibido em seu formato correto. Se é em CinemaScope, vê -se cortes nos rostos dos personagens ou uma composição do quadro deformada. E o pior é que certas distribuidoras, que se querem conceituadas, como a Europa - não me refiro a outras mais comerciais e sem nenhuma preocupação a não ser dar o espetáculo de qualquer maneira, estão a colocar na praça filmes em CinemaScope em tela cheia, como é o caso de Menina de ouro, de Clint Eastwood. Um crime que foi praticado pela Europa. Quem não viu Menina de ouro nos cinemas perdeu a oportunidade de revê-lo na sua integridade (talvez em cópia importada, porque a Europa massacrou-o).

Quando sei que um determinado filme é em tela larga, e quero vê-lo em DVD, tenho que pedir à atendente da locadora para passá-lo na televisão a fim de verificar a sua integridade. A Coleção Folha também foi criminosa ao lançar Gigi, de Vincente Minnelli, belo musical, canto de cisne do gênero na sua fase áurea, em full screen. Já havia, há alguns anos, sido lançado em DVD em tela cheia - comprei o DVD e, quando vi o absurdo, quebrei-o em mil pedacinhos com um martelo.

É leitura imprescindível, para elucidação e esclarecimento, o que Juliano Tosi escreveu no blog do crítico Inácio Araújo da Folha de S.Paulo. Roubei as duas fotos que ilustram este post, que mostram como o full screen deforma o enquadramento original de um filme. No caso, as imagens são de Vestida para matar, de Brian De Palma, exibido recentemente no Cult, vestida  em tela cheia (arghhhhh!!!) para matar o excelente thriller do autor de Os intocáveis.