O cineasta Robinson Roberto filma o depoimento do comentarista cinematográfico Lourival Oliveira para seu documentário Cine Jequié, que nos deixou no mês passado. |
Antes de me iniciar nas leituras
das críticas de cinema, ainda que cinéfilo impertinente, em torno do ano de
1964, com 13 anos de idade, sempre ouvia aos sábados o programa Falando de
cinema e sem fazer fita, da Rádio Excelsior da Bahia, comandado pelo comentarista
cinematográfico Lourival Oliveira. Soube, semana passada, que Lourival faleceu no dia 1 de julho. Presto aqui a minha homenagem a este
indefectível amante do cinema, que dedicou a sua vida a ver filmes e a
comentá-los com sua voz possante e sempre assertiva. Se não me falha a memória,
já gasta com o passar do tempo, o seu programa era transmitido meio-dia em
ponto, e constava de várias partes: comentários dos filmes em cartaz na semana,
trilha sonora, e respostas às perguntas dos ouvintes. O adolescente que era
admirava a figura de Lourival e, nos seus verdes anos, considerava-o uma
autoridade no assunto. Certo dia resolvi escrever para Lourival, fazendo-lhe
uma pergunta, que respondeu com prontidão em seu programa, para felicidade do
garoto que o ouvia. E mais: houve um concurso com as perguntas, cujo prêmio era
uma entrada para uma sessão do cinema Excelsior, e, para minha surpresa e
estupefação, ganhei-a. Melhor do que o prêmio, foi tê-lo conhecido pessoalmente
mesmo que en passant, pois o vencedor tinha que ir buscar a entrada em mãos na
Rádio Excelsior,.O que fiz, mas Lourival, no auge da fama, não ligou muito para
o menino, embora delicado e atencioso. Os anos se passaram. Em 1989, 25 anos
depois, já escrevendo uma coluna diária na Tribuna da Bahia desde 1974 e
professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Ufba, organizei um seminário
de extensão sobre crítica cinematográfica, e, entre os inscritos, Lourival
Oliveira. O certificado de conclusão do seminário, do qual participaram, entre
outros críticos do sul, José Carlos Avellar, por questão burocrática da
universidade, demorou a sair e, com isso, toda semana Lourival aparecia na
faculdade para saber, ansioso, quando iria receber seu papel. A última vez que
o vi foi há mais de uma década no Cinema do Museu e, há três anos, através de
uma ligação telefônica.
Disse-me, na última vez que o vi, que estava preparando um livro com todas as perguntas feitas ao seu programa radiofônico e achou uma de meu próprio punho. Fiquei curioso. Ele prometeu tirar uma xerox para me enviar. Mas o tempo passou e nunca mais estive com ele.
Lourival pertenceu a uma época em
que o rádio era um ponto de referência não restrito somente a músicas e
comentários futebolísticos. Havia programas inventivos em várias áreas, entre
os quais, vale ressaltar, ainda que de esporte, o do saudoso França Teixeira,
que também nos deixou recentemente e, pode-se dizer, revolucionou o meio com o
seu anárquico e bem humorado estilo de narração. O cineasta Robinson Roberto
teve a gentileza de me enviar o seu documentário Cine Jequié no qual há
vários depoimentos interessantes sobre a sala exibidora que dá título ao filme
e é um registro importante como testemunha de uma época em que o cinema causava
magia e assombro, assombro e magia, não necessariamente nesta ordem. Vendo há
dois dias Cine Jequié, notei semelhanças com minhas sensações cinematográficas
de criança e adolescente, comparando-o, na minha imaginação, aos cinemas
soteropolitanos Guarany e Pax, pois sou da mesma geração dos depoentes - ou
talvez um pouco mais moço, mas vivi aquela época que está guardada nos arcanos
de minha memória.
Pois bem! Lourival Oliveira é um
dos depoentes do Cine Jequié. Amigo de Robinson desde tempos imemoriais, conta,
no filme, que o Cine Jequié (o próprio e não o filme) se constituiu na porta de
entrada para que ele, Lourival, pudesse ser introduzido no mundo mágico do
cinema, vindo a conhecer, nas suas sessões, além dos filmes de gênero do cinema
americano, obras referenciais do neorrealismo italiano, do expressionismo
alemão, do realismo poético francês, da escola russa dos anos 20 etc. Lourival
Oliveira nasceu em Jequíé em 24 de setembro de 1941 (morreu, portanto, prestes a completar 72 anos) e viveu plenamente a efervescência da
época. Depois, já adulto, se transferiu para Salvador, onde fez por alguns anos
o hoje clássico Falando de cinema e sem fazer fita, da Excelsior. Quase terminou
seus dias na Rádio Educadora, também falando de cinema, a paixão de sua vida,
se não acontecesse a aposentadoria e o seu infortúnio decorrente de
consequências da diabetes. E por falar em paixão pelo cinema, Lourival tinha,
realmente, um amor de cinéfilo e de comentarista. Uma vez, andando pela Avenida
Sete, encontrei-me com ele diante da vitrine da Livraria Civilização
Brasileira, quando saiu pela primeira vez o livro de entrevista de Truffaut com
Hitchcock (que depois seria reeditado por outra editora). A primeira edição
tinha um formato grande e, exposta na Civilização, encontrei Lourival em
pé, olhando a publicação na vitrine por algum tempo com os olhos marejados de
lágrimas. Não à toa, porque um dos maiores livros sobre cinema, sobre o
processo de criação da arte do filme, segundo um mestre do ofício: Alfred
Hitchcock.
Pena que a Bahia não tenha
memória e não registre o passamento das grandes figuras que fizeram da velha
província um marco cultural nos anos 50 e 60 e que de poucas décadas para cá
veio a sofrer um processo de regressão inacreditável. Lourival não era, porém,
um intelectual, mas um amante do cinema que proferia seus comentários - sempre
firmes - com o coração daquele cinefilo que nasceu em Jequié., Mas conhecia
tudo sobre cinema. Lia com sofreguidão as revistas, os livros, os jornais.
Empolgava-se ao se lembrar de determinado filme que gostava e se poderia dizer,
coisa rara nos dias de hoje, que seu amor ao cinema estava mesmo à flor da pele.
A ida a Jequié da Caravana da
Cultura, liderada por Paulo Emílio Salles Gomes, foi um acontecimento para a
cidade provinciana, pois uma oportunidade de travar conhecimento com intelectuais
e críticos importantes que, além das notáveis palestras, exibiram também filmes
importamentes da história do cinema. Em 1963, quando Ruy Guerra foi filmar Os
fuzis em Milagres, filme que pode ser considerado um dos maiores do cinema
brasileiro em todos os tempos, a cidade de Jequié entrou para a história do
Cinema Novo. Robinson Roberto,que já tinha uma coluna de cinema em jornal local
além de um programa de rádio sobre cinema, claro, arranjou que os copiões de Os
fuzis fossem vistos no velho e inesquecível Cine Jequié. O filme, pelos seus
depoimentos preciosos e por oferecer uma visão paradiso do cinema de outrora
num ponto interiorano deveria ser exibido nas Quartas Baianas. Fica aqui esta
pequena sugestão. E Lourival atento a tudo, vigilante implacável das coisas do
cinema.
Que a terra lhe seja leve, caro
Lourival Oliveira!