Rogério Sganzerla e sua amada Helena Ignez nos tempos de O Bandido da Luz Vermelha |
No dia do Cinema Brasileiro, hoje, 19 de junho, minha homenagem a uma obra-prima de nossa cinematografia: O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla.
Já? Quase meio século. E pareci que vi ontem O bandido da luz vermelha, obra-prima não somente de Rogério Sganzerla mas do cinema brasileiro. O filme é um assombro, atestado de vida inteligente atrás das câmeras, talento demais.
A segunda metade da efervescente década de 60 é convulsiva, turbulenta, criativa, bastando ver Maio de 1968, quando a imaginação quer tomar o poder. Neste ano emblemático, que, segundo se diz, nunca termina, a cinematografia nacional encontra o Cinema Novo sufocado pela repetição, e vê surgir, sob a influência dos novos cinemas que pipocam pelo mundo, o que vem a ser chamado de Cinema Marginal ou Underground ou, ainda, para se ajustar ao modo tupiniquim, Udigrudi.
Ozualdo Candeias, de maneira isolada, dá sinais de uma posição a latere no mesmismo discursivo cinemanovista com seu belíssimo A margem (1967), que muitos críticos apontam como o ponto de partida do Cinema Marginal. Candeias, no entanto, parece um caso singular, não atrelado, propriamente, a uma torrente, mas um artista ímpar e, como o título de seu filme, à margem.
O carro-chefe do Underground, ainda que o rótulo sempre tenha sido recusado pelo seu autor, é, sem dúvida, O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, uma explosão de talento, uma obra de inusitada importância e surpreendente em sua "anatomia" discursiva que, se bebe nas águas de Orson Welles e Jean-Luc Godard, tem, entretanto, vôo próprio, estilo particular. O advento deste filme, tal a influência que exerce, faz aparecer um "filão", que se denomina de marginal, a se refletir, inclusive, no cinema baiano, como atestam Caveira my friend (1969), de Álvaro Guimarães (que falece, aos 65 anos, no último 15 de outubro, em Porto Seguro) e, do mesmo ano, Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luiz Oliveira.
Plena de invenção - e aqui se pode falar claramente num "cinema de invenção", a estrutura narrativa de O bandido da luz vermelha mostra as peripécias de um perigoso ladrão e assassino que tem sua trajetória narrada por dois locutores de rádio (um homem e uma mulher) de programa classe "z" típico da época.
Jorge (Paulo Villaça num papel que Sganzerla queria para Lima Duarte), marginal paulista que coloca em polvorosa a população de São Paulo, desafiando a polícia ao cometer os crimes mais requintados, torna-se famoso pela invulgar técnica que aplica em seus golpes. A opinião pública e a imprensa destacam a sua coragem, celebrizando-o como O Bandido da Luz Vermelha - Sganzerla se inspira num criminoso que realmente existe e, quando finaliza o filme, leva um projetor 16mm para projetar, na cadeira, para ele, o seu filme.
De nada valem os esforços do delegado de polícia (Luiz Linhares em excelente interpretação - sua saída do carro lembra a do Inspetor Quinlain de Orson Welles em A marca da maldade/Touch of evil). Numa de suas idas a Santos, Jorge conhece a provocante Janete Jane (a baiana Helena Ignez que faria logo a seguir outro personagem sganzerliano em A mulher de todos), famosa em toda a Boca do Lixo, zona de crime e prostituição (e também um lugar cultuado pelo cinema paulistano dos anos 60 e 70).
É Janete, que Jorge começa a amar, que acaba delatando o Bandido da Luz Vermelha, provocando o seu suicídio. A delação de Janete lembra a delação de Patricia (Jean Seberg) em Acossado (À bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, e o suicídio de Jorge, o final de O demônio das onze horas (Pierrot, le fou, 1965), também de Godard.
Godard e Welles (que mais tarde seria uma idéia fixa para Sganzerla a ponto de lhe dedicar dois longas sobre a sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1942) são influências decisivas para o jovem cineasta, que desponta, logo neste primeiro longa, com uma obra-prima. Se os filmes iniciais do Cinema Novo procuram o modelo no neo-realismo italiano, com incursões na Nouvelle Vague (Os cafajestes, de Ruy Guerra), o Cinema dito Marginal tem como fontes inspiradores a estética godardiana, os filmes subterrâneos novaiorquinos (John Cassavetes, Jonas Mekas, Shirley Clarke...) e, no caso do autor de O bandido da luz vermelha, Orson Welles e Godard.
Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, filme que traumatiza, em 1964, o cinema brasileiro, tem uma colcha de influências (John Ford, na exploração dos grandes espaços, Akira Kurosawa, na gestualística de Corisco, Serguei Eisenstein, na matança dos beatos, a tragédia grega, na configuração do cego Júlio como fio condutor, etc, etc). O Cinema Marginal vem para dar uma resposta ao discurso já saturado (e impedido pela ditadura) dos cinemanovistas. É verdade que Terra em transe, de Glauber Rocha, já apresenta uma estrutura narrativa com acentos fortes de Orson Welles.
Sganzerla assume a boçalidade, o cafajestismo, e seu filme é brega nos pontos certos (a refletir uma brasilidade inconteste, além do uso da metalinguagem, com a narração em off das duas vozes plena de um humor escrachado - "Jovem se atira do alto de um edifício. Ex-vestibulanda de Direito", mais ou menos assim).
O grande crítico Paulo Perdigão, quando do lançamento de O bandido da luz vermelha, escreveu que este
"É um filme deliberadamente cafajeste, mistura de dramalhão mexicano mais musical argentino, mais chanchada brasileira, mais tropicalismo latino. O bandido da luz vermelha é o que se pode definir como uma obra pejorativa por autocrítica e por excelência. Ao realizar o seu primeiro longa metragem, o diretor paulista de 22 anos, Rogério Sganzerla, decidiu reunir dentro dele todas as críticas mais impiedosas que o seu bandido poderia sofrer. O mau-gosto que um dia Oswald de Andrade converteu em estética e a pilantragem que está na música popular passam ao cinema com uma nonchalance que, há poucos anos, qualquer pessoa de bom senso consideraria deprimente. Mas, hoje, o bom senso é ter, exatamente, um espírito malandro para saborear as delícias desse universo extravagante onde se somam os filmes popularescos dos anos 40-50, o tango, a crônica policial amarela, o bolero, o jeito boçal dos heróis folclóricos, o romantismo cretino das paixões de novelas e, sobretudo, essa figura inefável que é o bandido de cabelos gomalinados, paletó de ombreiras e sapatos de verniz dos carnavalescos da Atlântida (...) Para definir com clareza a legenda pífia do bandido, a trilha sonora se esmera em narrações radiofônicas (uma espécie de reportagem volante retocada pela verve da PRK-30) e intervalos musicais à base de Molambo, Sabor a Mi, Uno e Castigo (canta: Roberto Luna)."
Quando se revê, hoje, O bandido da luz vermelha, é que se percebe o quanto o cinema brasileiro está medíocre em sua produção atual. Se o cinema de invenção acabou, também o delírio está afastado da cinematografia nacional.