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12 fevereiro 2010

Da miséria cultural baiana


O Carnaval baiano, que era bom outrora, hoje é uma bagunça, da qual o povo está excluído. Estaria a folia momesca soteropolitana, que ontem se iniciou, inserida na miséria cultural baiana? Republico o artigo neste momento em que as pessoas pulam atrás dos trios elétricos. Nada contra. Mas não sou cúmplice do espetáculo momesmo. Embriaguar-me-ei de filmes, literatura ou, mesmo, das garrafinhas verdes da Henneker. Ouvindo Schubert.
Diz-se que a Bahia já teve seu Século de Péricles, uma alusão ao período efervescente que se situou nos anos 50 e na primeira metade dos 60, quando Salvador congregava o que havia de mais criativo na expressão artística. Estimuladas pela ação da Universidade Federal da Bahia, comandada, e com mão de ferro, pelo Reitor Edgard Santos, as artes desabrocharam com o surgimento do Seminário de Música, da Escola de Teatro, do Museu de Arte Moderna, dos inesquecíveis concertos na Reitoria, da porta da Livraria Civilização Brasileira na rua Chile, dos papos ao por do sol frente à estátua do Poeta, no bar e restaurante Cacique, dos debates calorosos da Galeria Canizares (no Politeama), da boite Anjo Azul (na rua do Cabeça), entre tantos outros pontos que faziam da Bahia um recanto pleno de engenho e arte.
Na Escola de Teatro, por exemplo, que, inicialmente, foi dirigida por Martim Gonçalves, montava-se, lá, de Bertolt Brecht, passando por Ibsen, Eugene O’Neill, entre tantos, a Strindberg, com um rigor inusitado, e tal era a excelência de seus espetáculos que vinham pessoas do sul do País, e até do exterior, vê-los encenados in loco. No curso de preparação de ator, o estudante levava alguns anos para poder participar de uma montagem teatral, iniciando a sua trajetória como um mordomo mudo ou de poucas falas. Somente ter o seu nome no programa da peça já era um prêmio, uma alegria, um consolo.
O livro, Impressões Modernas – Teatro e Jornalismo na Bahia, de Jussilene Santana, analisa a configuração do teatro como temática na imprensa baiana em meados do século XX e, pela primeira vez, faz justiça a Martim Gonçalves, o responsável pela excelência das montagens teatrais, criador da Escola de Teatro (que hoje tem o seu nome), mas muito criticado na sua época e até mesmo denegrido pelos opositores. Após a leitura deste livro imprescindível, a conclusão é única e inequívoca: sem Martim Gonçalves não se teria um teatro baiano do nível a que chegou, ainda que, décadas depois, tenha perdido todo o seu vigor, transformando-se num grande proscênio destinado à proclamação de besteiróis, honradas as exceções de praxe.
Cinqüenta anos depois, meio século passado, a realidade cultural baiana é uma antípoda da efervescência verificada, uma época que foi chamada, inclusive, de avant garde pela sua disposição de inovar, pela marca de vanguarda da mentalidade de seus artistas e intelectuais. Atualmente, a Bahia regrediu muito culturalmente a um estado, poder-se-ia dizer, pré-histórico, e o homo sapiens do pretérito se transformou no pithecantropus erectus do presente. Aquele estudante do parágrafo anterior, por exemplo, não existe mais.
Na Bahia miserável da contemporaneidade, qualquer um pode pular em cima de um palco, qualquer um se sente apto a dirigir uma peça, mexer com cinema, fazer filmes. Com as sempre presentes exceções de praxe, o teatro que se pratica na Bahia é um teatro besteirol, que faria corar aqueles que participaram da antiga escola de Martim Gonçalves. A Bahia não está apenas mergulhada em bolsões de pobreza, na violência diuturna e desenfreada, com seu povo excluído de tudo – e até mesmo dos cinemas, mas do ponto de vista cultural a miséria é a mesma. Miséria cultural, descalabro, ausência do ato criador, apatia, desinteresse. Eventos existem para a satisfação de pseudo-intelectuais que não possuem as bases referenciais necessárias para a compreensão do que estão a ver ou a ouvir. O momento presente, se comparado aos meados do século passado, assinala uma regressão cultural sem precedentes. Como disse Millor Fernandes, a cultura é regra, mas a arte, exceção, o que se aplica sobremaneira sobre o estado atual da cultura baiana. Cultura se tem em todo lugar, mas arte é difícil, e a arte baiana praticamente não existe.
Com o desaparecimento dos suplementos culturais e o advento de normas editoriais que privilegiam o texto curto, além da incultura reinante pela assunção do império audiovisual em detrimento da cultura literária (vamos ser sinceros: ninguém hoje lê mais nada), a crítica cultural veio a morrer por falência múltipla das possibilidades de exercício da inteligência numa imprensa cada vez mais burra e superficial. Sérgio Augusto, crítico a respeitar, que militou nos principais jornais cariocas, em entrevista ao Digestivo Cultural, site da internet (vale a pena lê-la na íntegra: http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=10), do alto de sua autoridade no assunto, afirmou que o jornalismo cultural está morto e enterrado, ressaltando que se fosse um jovem iniciante não entraria mais no jornalismo porque não vê, nele, perspectivas para a crítica de cultura (área de sua especialidade).Dava gosto se ler o Quarto Caderno do Correio da Manhã com aqueles artigos copiosos, imensos, que abordando cultura e artes em geral, eram assinados por Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Viana, entre tantos outros. A rigor, todo bom jornal que se prezasse tinha seu suplemento cultural. Aqui mesmo em Salvador, vale lembrar o do Diário de Notícias e o do Jornal da Bahia (em folhas azuis). Atualmente, do Suplemento Cultural de A Tarde (que já morreu!)).
A inexistência da crítica de arte não diz respeito apenas ao soteropolitano. É uma constatação geral no jornalismo brasileiro. Mas, e os cadernos culturais e as ilustradas da vida? Caracterizam-se pela superficialidade e servem, apenas, como guia de consumo, com suas resenhas ralas. Atualmente, os cadernos dois, assim chamados, são até contraproducentes porque elogiam o que deveriam criticar, colocando na posição de artistas personalidades que deveriam, no máximo, estar no departamento de limpeza de estações rodoviárias.A crítica de arte serve justamente para isso: para, construtivamente, sem insultos, mas com argumentos sólidos, desmontar aquilo que não presta. Que falta não faz uma crítica de teatro séria, que, semanalmente, venha a apreciar o que se está a apresentar na cidade como literatura dramática! Ou uma crítica de artes plásticas. A interferência de um crítico faria corar muitos pintores que estão expondo na Bahia e posando como artistas. Assim também uma crítica de cinema que fosse menos paternalista com os “coitados’ dos cineastas baianos cujas imagens são a de franciscanos em busca da expressão cinematográfica, mas cujos resultados, em sua grande maioria, remetem o espectador aos braços de Morpheu, quando não à aporrinhação.Se a miséria da cultura baiana é cristalina, a miséria da crítica cultural é, também, imensa. Que esmola pode ser dada para se acabar com ela?

10 fevereiro 2010

O desespero de Rainer Werner Fassbinder

Já publiquei este artigo creio que há dois anos atrás. Mas como Fassbinder anda meio esquecido. acredito que é de bom alvitre relembrá-lo, pois um poderoso cineasta alemão, que morreu prematuramente.
Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim, obra crepuscular de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), O desespero de Veronika Voss é o seu penúltimo filme (o derradeiro: Querelle, baseado em texto de Jean Genet) antes de morrer aos 36 anos vitimado por uma overdose de álcool e cocaína. O DVD, distribuído pela Versátil, conserva o formato original da tela de cinema (1.66:1) e apresenta uma cópia luminosa, perfeita, capaz de dar ao filme toda a sua expressividade, principalmente porque a sua plástica da imagem é fundamental, pois se insere no próprio tecido dramático.

O que assombra em O desespero de Veronika Voss é a iluminação expressionista de Xaver Schwarzenberger, que trabalha o preto e branco com extrema funcionalidade, a permitir que a produção de sentidos do filme se faça muito pela sua plástica ao invés de se restringir (como a maioria das obras cinematográficas) ao conteúdo da fábula. Neste particular, a luz (muitas vezes estourada) é o elemento que sufoca o espectador, inserindo-o num mundo desordenado e caótico. O branco assume uma dimensão asfixiante, como nas seqüências no interior da clínica. Não se pode ter uma compreensão de O desespero de Veronika Voss sem a percepção da expressão fotográfica. Estilizadíssimo, com uma evocativa reconstituição da década de 50 na Alemanha, o filme, como em quase todos os de Fassbinder, é influenciado pelo melodrama de Douglas Sirk.

Com o cineasta de Veronika Voss, o gênero assume uma potencialização e, pelo excesso de sua construção tonal, beira ao paradoxo. Esta obra-prima faz parte dos filmes que o autor rodou sobre o seu país do pós-guerra. Narra o drama existencial de uma atriz decadente (vivida por Rosel Zech, que tem, aqui, um desempenho antológico, e, no DVD, quase uma hora de extra com seu depoimento tomado exclusivamente para o lançamento neste formato), que, antiga estrela da UFA (Universum Films AG) durante o nazismo, vicia-se em morfina. Vem a conhecer um jornalista esportivo que, fascinado por ela, tenta ajudá-la. A visão de Fassbbinder do mundo e das pessoas é cruel: não existe lugar para o afeto, pois todos querem exercer o domínio pelo outro, e as instituições da sociedade são podres e contaminadas por natureza. O filme parece ser a premonição do desespero do realizador, que viria a morrer também de angústia existencial pela tragicidade da vida.

O desespero de Veronika Voss também poderia ter um sub-título: O Desespero de Rainer Werner Fassinder. Há uma seqüência que define bem a estética fassbinderiana: aquela num bar quando Veronika convida Robert para um encontro e, na mesa, plenamente iluminada como numa luz pentecostal, ela fala do cinema diante dele. O cinema é luz, e Fassbinder, neste filme, esculpe as cenas com a luz. Há, em O Desespero de Veronika Voss, a influência não somente de Sirk (Palavras ao Vento; Tudo que o Céu Permite; Imitação da vida) como a de Max Ophuls e, principalmente, a de Josef Von Stenberg, para quem o cinema era essencialmente composição plástica. Realizador consagrado (O Anjo Azul, O Expresso de Shangai), Sternberg foi o responsável pelo lançamento de Marlene Dietrich, que, dele, disse um dia: “Sternberg fazia brotar a beleza de um jogo de luzes e sombras”.
Filme sobre uma atriz em decadência, mas, também, sobre a Alemanha dos anos 50, e, principalmente, uma obra que reflete a luz criadora que potencializa a estesia da arte do filme, O desespero de Veronika Voss faz lembrar, também, Crepúsculo dos Deuses (o célebre Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, com William Holden e uma interpretação inexcedível de Gloria Swanson. Rosel Zech, a Veronika de Fassbinder, não lhe fica atrás.

Na foto, Fassbinder abraça Rosel Zech.

08 fevereiro 2010

...E o vento levou Jean Simmons

A primeira imagem que tenho de Jean Simmons (1929/2010), e que ficou na memória para sempre, é a sua imagem como Varinia em Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, filme que vi no seu lançamento no já distante ano de 1961, quando foi lançado em Salvador. A visão de Spartacus causou, no adolescente que era, um assombro, e, até hoje, quando o revejo, tenho imensa simpatia pelo espetáculo. Há, nele, momentos antológicos, como a batalha final, que lembra Alexandre Nevsky (1938), de Serguei Eisenstein, a montagem alternada enquanto Craso (Laurence Olivier) fala para seus comandados em alternância com a fala de Spartacus para seu batalhão de escravos. Jean Simmons fazia Varinia, que, empregada do sítio guerreiro de Peter Ustinov, apaixona-se por Spartacus (Kirk Douglas, que além de ator é, a rigor, o dono do filme como o executive in charge of production, o poderoso producer).

A minha Jean Simmons, por assim dizer, é a Varinia de Spartacus. Mas vi muitos outros filmes, após este, com ela, a exemplo de O manto sagrado (The robe, 1953, o primeiro filme em cinemascope distribuído pela Fox), Narciso negro (Black Narcissus, 1947), de Michael Powell (o diretor de A tortura do medo/Peeping Tom), onde trabalha ao lado de Deborah Kerr, Hamlet (1948), de Laurence Olivier, no papel da infeliz Ofélia, A rainha virgem (Young bess, 1953), de George Sidney, Demétrio e o gladiador (Demetrius and the gladiators, 1954), de Delmer Daves, continuação de O manto sagrado, Eles e elas (Guys and dolls, 1955), de Joseph L. Mankiewicz, no qual trabalha, cantando e dançando ao lado de Marlon Brando - em DVD o filme tomou o nome atabalhoado de Garotos e garotas, Da terra nascem os homens (The big country, 1958), grande western do não menos grande William Wyler, com Charlton Heston, Burl Ives, Gregory Peck, Entre Deus e o pecado (Elmyr Grant, 1960), de Richard Brooks, que deu o Oscar de melhor ator a Burt Lancaster e Simmons, aqui, faz uma pregadora evangélica, Do outro lado, o pecado (The grass is greener, 1960), comédia romântica feita com a classe de Stanley Donen, com Cary Grant, Deborah Kerr, Robert Mitchum, entre muitos e muitos outros. Não quero aqui fazer ficha filmográfica de Jean Simmons, mas, e tão-somente, registrar alguns filmes que me ficaram na lembrança.

Casou-se duas vezes: a primeira com Stewart Granger (lembram-se de Scaramouche?) e a segunda com o diretor Richard Brooks. A imagem é a de Spartacus.

07 fevereiro 2010

O crepúsculo das locadoras


Peço licença a Bráulio Tavares para publicar, neste domingo de verão, uma crônica de sua autoria que saiu no Jornal da Paraíba sobre o crepúsculo das locadoras. Leio sempre os seus escritos no citado jornal, que primam pela excelência na observação dos fatos da vida e da arte. Escritor, letrista, pesquisador, autor de vários livros, jornalista, Braúlio Tavares pode ser considerado um dos mais inteligentes intelectuais brasileiros. Tive a honra de conhecê-lo quando de sua temporada baiana, lá pelos idos dos anos 70, quando ficou em Salvador talvez mais de um ano. Mas, mesmo antes de sua vinda à soterópolis, já o conhecia de nome pelas referências elogiosas de um seu conterrâneo, Romero Azevedo, cinéfilo de carteirinha, professor de cinema da Universidade de Campina Grande, paraibano como ele. Noutro dia, vendo, au hasard, um programa de entrevista com Ariano Suassuna, este disse que Bráulio era umas das pessoas que mais admirava. Há um livro, entre outros, evidentemente, de Bráulio Tavares, que recomendo porque uma exegese de alto nível de O anjo exterminador. O seu título é o título deste filme de Luis Buñuel. Lê-lo não apenas possibilita a compreensão de El Angel Exterminador como também das artimanhas da arte buñuelesca. Acredito que os leitores deste humilde e claudicante blog aprenderão muito caso acessem as crônicas de Tavares no seguinte endereço: http://jornaldaparaiba.globo.com/
Também o seu blog merece sempre uma visita (e não visita de médico como sói acontecer com muitos internautas mais apressados nos monossílados do que, propriamente, nas inteligentes enunciações de um pensamento): http://mundofantasmo.blogspot.com/ Mas vamos ao artigo:

"As locadoras de filmes, segundo alguns analistas, são a bola da vez entre as funções sociais em vias de desaparecimento. Surgiram porque havia uma tecnologia nova (o VHS, e depois o DVD) servindo de canal estreito entre milhões de filmes de um lado e milhões de espectadores do outro. Muitas locadoras que conheço começaram com uma portinha e um cubículo. Foram se ampliando, absorvendo a lojinha ao lado, abrindo mais espaço, mais paredes, mais acervo. Foi um mercado em ascensão firme durante muitos anos. Agora, danou-se a cair. O aumento da banda larga e de conexões mais rápidas faz com que um filme possa ser baixado em poucos minutos. E o preço de compra do próprio DVD caiu tanto (em muitos casos) que ficou quase igual ao do aluguel. Sem falar na pirataria.

Um artigo de Ana Paula Sousa na “Folha SP” afirma que entre 2003 e 2005, havia, no Brasil, quase 14 mil locadoras de filmes, e agora não passam de seis mil. A venda de DVDs, que num momento foi a grande concorrência desse ramo, também está caindo: entre 2006 e 2008 caiu de 28,7 milhões para 24,7 milhões de unidades. A venda de títulos para locadoras caiu ainda mais, de 8,5 milhões para 4,6 milhões. O Brasil já teve o maior mercado de locação de filmes do mundo. Europeus e norte-americanos preferiam comprar filmes, mas o brasileiro, certamente devido ao poder aquisitivo, alugava. O preço de venda foi caindo e as opções gratuitas se expandiram: pirataria e Internet são, no caso, as forças gravitacionais que estão tirando o público das locadoras.

A locadora é para muita gente algo como a padaria ou o mercadinho da esquina, onde no fim de tarde ou começo de noite as pessoas se encontram e tiram dois dedos de prosa. A pequena locadora atende em geral as pessoas num raio de alguns quarteirões residenciais. Todo mundo se conhece, todo mundo cedo ou tarde se encontra ali. Conheço compradores inveterados de filmes piratas que ainda vão às locadoras. Para quê? Para saber se vale a pena ou não comprar certos filmes. Aluga por 5 reais, vê, e depois compra por 10 reais – se valer a pena. Por mais que um pirata seja barato, ninguém sai comprando tudo, às cegas.

Algumas locadoras estão virando espaços múltiplos onde é possível alugar ou comprar um DVD ou CD, fazer um lanche, tomar um café ou um sorvete, sentar em poltronas para bater papo, comprar livros e revistas. A locação vem como complemento de outras atividades, numa loja de perfil múltiplo, que tende a se transformar, de acordo com o espaço de que dispõe, em ponto de encontro, de bate-papo. As facilidades de circulação da informação digital não devem servir para nos enclausurar em quartos escuros fazendo downloads intermináveis. Devem servir para agilizar o processo e nos dar tempo livre para ir na locadora da esquina tomar um café, discutir sobre os filmes, pegar dicas de filmes, convidar os amigos para ir lá em casa ver o novo filme de Tarantino ou um velho filme de Resnais."