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23 julho 2008

Entrevista inédita com José Augusto

Há exatos 4 anos (a entrevista foi feita em 18 de julho de 2004), eu e o jornalista Cláudio Leal fomos à residência de José Augusto Berbert de Castro, vizinha à Casa do Rio Vermelho, de Jorge Amado, e fizemos com ele a entrevista que se segue. Na verdade, uma tomada de depoimento muito maior e mais rico mas que, por problemas de não estar todo transcrito, vai aqui apenas uma parte. Na foto, vê-se Berbert (de óculos), quando, em 1975, foi receber, no Aeroporto 2 de Julho, de Salvador, Roman Polanski e Jack Nicholson. Sempre esteve em todas.
Quando o senhor começa a ir ao cinema?
Eu fiz em novembro do ano passado 78 anos de idade. Se eu lhe disser que vejo filme há mais de 72, não estou mentindo. Vou contar como foi. Meu pai era diretor do Liceu de Artes e Ofícios, que tinha o Cinema Liceu e, muitos anos depois, o Cinema Popular. Então, se vocês derrubarem o Cinema Popular, que hoje é um depósito de terceira categoria, e procurar a primeira pedra, eu sou um dos que assinaram a ata da primeira pedra. Eu ia ao cinema sem pagar. Dos seis filhos, o único que se interessava por cinema mesmo era eu. Comecei a ver filmes no cinema mudo, Monsieur Bouquet, Rodolfo Valentino, a primeira versão de Rei dos Reis, de Dez Mandamentos. Parece que eu estou vendo. Lembro-me muito mais dos filmes antigos que dos atuais. Depois, durante o Ginásio, via tudo que era filme. Pelo fato de ter entrada grátis no Liceu, arranjava permanente com José de Araújo, que representava todos os cinemas. Fui a vida inteira maníaco por cinema.
Que leitura fazia?
Comecei a colecionar revistas de cinema: Cinearte, A Scena Muda. Tinha a coleção de A Scena Muda completa. Cheguei a vendê-la por R$5.000 a um colecionador do Rio Grande do Sul. Seis volumes deste tamanho. Tenho ainda a coleção completa da Cinemin. Doei muito coisa à biblioteca da ABI (Associação Bahiana de Imprensa). Agora, guardava a vida dos artistas. Quando eu me casei, um dos meus padrinhos foi Antonio Simões, meu amigo, formidável, irmão mais novo de Ernesto Simões Filho. Aí um dia ele me disse assim: "Berbert, você ganha aqui pouco como médico e meu assistente. Eu vou lhe dar um gancho n´A Tarde". E entrei para A Tarde, para escrever a sessão de cinema, substituindo meu xará José Augusto Faria do Amaral, que se mudou para o Rio de Janeiro e veio a ser o grande escritor Van Jafa. Tenho livros de Van Jafa com dedicatórias, retratos meus com ele nas revistas cariocas. O certo é que passei a escrever sobre os filmes da semana. Lá um dia, meu grande amigo Ranulpho Oliveira disse: "Berbert, você escreve com tanta graça que eu vou lhe colocar como repórter. Você não precisa vir todo dia, não". Acabei sendo repórter classe A d´A Tarde durante 47 anos. E escrevi sobre cinema sem parar.
O senhor começa a escrever em 1948?
48. E me formo em 1949.
Já era a coluna "Indicação para os filmes da semana"?
Não. Era "Por trás das telas". Ainda tenho recortes das primeiras colunas que escrevi. Nunca parei de escrever. Sempre digo que não sou crítico de cinema porque minhas matérias nunca sairiam numa revista especializada em cinema. Na Bahia, morto tem Walter da Silveira e vivo tem ele [Setaro]. Todo hora repito isso. Eu faço comentários, se presta ou não presta... Agora, gostavam do que eu escrevia porque eu escrevia para o público ler. E não para outro crítico ler. Para outro crítico ler, tem que ser em revista de cinema. Pois bem. Continuei escrevendo e conheci todas as casas de cinema daqui. Você não cita um cinema na Bahia, atualmente, que não tenha sido inaugurado por mim, cortando a fita. O último foi o Orient Palace. Recebi do consulado do Japão o título de Samurai. E o dono disse: "Berbert, você pode trazer os sete samurais aqui?". Ora, dos sete samurais, o único não-importante sou eu, os outros são o Reitor da Universidade, que foi vestido de samurai, o cônsul do Japão, o prefeito de São Sebastião do Passé, o maestro Fred Dantas... Como eu era mais velho, cortei a fita. Em 1969, fui convidado a visitar os Estados Unidos, onde levei três meses. Quinze dias em Hollywood. Vi filmar tudo que você pode imaginar.
Em 1969, o senhor participou da sequência de abertura de "Hello, Dolly"?
Aquele desfile...Tanranranran... Eu não sabia a letra, fingia que estava cantando aquilo e me filmaram (risos). Gene Kelly era o diretor. Tenho ainda um crachá, que dizia o seguinte: "O portador deste crachá, José Augusto Berbert de Castro, é hóspede oficial do Governo dos Estados Unidos e do Departamento de Estado e nos responsabilizamos por qualquer despesa que ele possa fazer". Basta lhe dizer que, todo dia de manhâ, me davam 100 dólares trocados. E todos os livros que eu comprava, até o valor de 1.000 dólares, vinham de graça. Vou contar uma coisa que vale a pena. Depois de ter almoçado e feito amizade, lá em Hollywood, com o presidente da Columbia, Henri Levi - como a calça Levi, a pronuncia era "levai" -, ele me disse: "Dr. Berbert, descobrimos uma coisa aqui e estamos envergonhados. O senhor é médico e nós pensávamos que era somente jornalista! Lemos no seu currículo enviado pelo Departamento de Estado e não lhe prestamos nenhuma homenagem por ser médico. Mas hoje vamos compensar isto. O senhor vai jantar com o maior médico dos Estados Unidos, que é o médico do presidente dos Estados Unidos, Eisenhower", que já não era presidente, e sim Nixon. "Mas tem que ir vestido de black-tie". Eu disse: "Sinto muito, mas eu não trouxe black-tie". Ele: "Não tem importância". Fomos na Columbia, e ele chamou um técnico em vestuário, um francês retado, "uma roupa aqui para doutor Berbert". O francês fez assim: "Hummmm...". Não gostou de mim. Me arrodeou assim três vezes e disse roupa tal, tal, tal. Nunca tive uma roupa tão bem feita. Só que a camisa era cheia de babado (risos). Eu me vesti, fui para a casa do médico, que parecia aquela de "E o vento levou...", rapaz. Passei na casa de Henri e fomos.
Chegando lá, havia um mordomo. O médico gritou: "Doctor Berbert de Castro!". E avisou que a mulher tinha convidado dois casais, para não ficar monótono. E eu, chateado. Aí chegou a mulher dele, alta, bonita, de vestido longo, e eu olhando. Até que ele perguntou: "O que é que você tanto olha para minha mulher?". Ela era mais velha do que eu, veja só! (risos) "É que ela lembra uma artista que, lá no Brasil, é adorada". Ele: "Quem é essa artista?". Irene Dunne (1898-1990). Começou a rir. "Irene, doctor Berbert lhe conhece...". E aí fui largando, pá, pá, pá, "A Horrível Verdade" [The Awful Truth, 1937], de Leo McCarey, com Cary Grant. Ela ficou encantada. Aí ele disse: "Hoje é mais católica do que o Papa".
E depois falou: "Dr. Castro, eu vi que o senhor gosta mais de cinema do que de medicina, por isso os dois convidados que eu chamei são gente de cinema, o senhor vai ficar melhor com eles. Eu tenho uma cirurgia cardíaca amanhã muito grave. Então, não me leve a mal, eu tenho que me levantar. O senhor fique aqui com minha mulher e meus vizinhos". Sabe quem eram os vizinhos? Fred Astaire (1899-1987) e a esposa. Cesar Romero (1907-1994) e a esposa. César Romero porque falava português ou espanhol misturado. Acabei cantando, como naquele filme "Magnólia" (cantarola)... Veja só, Romero com Fred Astaire. Foi a melhor noite que passei nos Estados Unidos.

22 julho 2008

José Augusto Berbert de Castro

Faleceu hoje, terça, dia 22 de julho, o jornalista baiano José Augusto Berbert de Castro, comentarista cinematográfico do jornal A Tarde, de Salvador, por mais de 50 anos. Em termos de antiguidade, talvez o colunista que mais permaneceu ativo numa coluna no Brasil. Incompreendido, nas suas diatribes, e pela chamada intelligentzia, que exigia dele ser um crítico, quando sempre dizia que nunca desejou sê-lo, era um jornalista polêmico. O seu conhecimento filmográfico do cinema americano, imenso, viu todos os filmes que seus olhos puderam ver. O seu amor pelo cinema, no entanto, viu-se combatido pela clareza e simplicidade de seus comentários, que se exigiam ser profundos. Mas qual a crítica que tem, hoje, o conhecimento filmográfico de Berbert? Qual o jornalista que escreve com tanta graça e espírito crônicas sobre o cotidiano? O blog lamenta profundamente a sua perda.

Zé Umberto abre o jogo no Terra Magazine


O cineasta José Umberto foi entrevistado por mim para o Terra Magazine. Vejam a íntegra da conversa. Basta clicar aqui:

20 julho 2008

Introdução ao cinema (11)



Linguagem órfã de língua, o cinema não necessita nem de vocabulário nem de gramáticas, mas de um repertório estilístico no que se refere aos métodos expressivos; um repertório estilístico ao nível da organização da estrutura das grandes unidades significantes - as seqüências. Assim, esta necessidade está muito mais vinculada à organização seqüencial do que, propriamente, à organização do enquadramento singular. Num filme, aquilo que a retórica antiga chamava de elocutio tem individualmente menor importância do que a dispositio justamente porque os enquadramentos singulares não possuem autonomia, mas estão relacionados entre si no interior da seqüência e esta, dentro do contexto geral da obra cinematográfica, se relaciona dentro de uma ampla estrutura.Se se quiser reproduzir, no papel, os fotogramas de um filme - como se faz em alguns catálogos e livros de luxo publicados principalmente na Europa e Estados Unidos - não se tem uma compreensão da obra como um todo, por causa da dimensão dinâmica característica da arte do filme. Assim, se é incorreto falar de uma hipotética língua cinematográfica, igualmente ilusório é confiar no realismo ontológico da imagem fílmica. Estas noções provocaram diferentes formas de ditadura: a ditadura do enquadramento-signo - pela qual foram responsáveis os cineastas soviéticos dos anos 20, com Serguei Eisenstein à frente - e a ditadura do enquadramento-fato - camisa-de-força na qual se prenderam os exegetas mais acirrados do neo-realismo italiano do pós-guerra. Trata-se, aqui, de duas manifestações do imperialismo linguístico: no caso da primeira, a ditadura do enquadramento-signo, por causa de um excesso de abstração; no caso da segunda, a da ditadura do enquadramento-fato, por causa de um excesso de produção. Ambas podem ser redutíveis a uma substancial incompreensão da natureza alusiva do cinema.O enquadramento de uma parcela da realidade não é o signo convencional nem, também, a mimese perfeita do original, mas, pelo contrário, uma interpretação discreta. Esta interpretação carrega, de fato, um significado de seu objeto, sem contudo negá-lo. É de se ver que os dois planos da denotação e da conotação coexistem, mas não se excluem alternadamente.

Há, todavia, casos nos quais existe exclusão do plano da denotação para o plano da conotação. Isso ocorre quando há a prevalência da prática intelectualista ou da prática naturalista, ou seja, perante casos em que se tem o discurso sem mundo ou o mundo sem discurso, ainda que o cinema, por sua própria natureza, possua a faculdade inédita já referida de, conjugando os momentos de racionalidade e natureza, transformar o mundo em discurso. E o vocábulo natureza, aqui, não significa naturalismo - na medida em que também no cinema, como em qualquer outra atividade que se quer artística, o verossímil é, de longe, preferível, ao verdadeiro, pois como preliminar a qualquer operação artística os elementos constituintes de realidade devem ser recriados poeticamente.O que importa não é fazer ver as coisas, mas, e principalmente, dar uma idéia dessas mesmas coisas, isto quer dizer: é muito mais provável tornar crível na tela uma cena fictícia do que uma cena verdadeira. Veja, como exemplo, o testemunho de Pudovkin - cineasta soviético dos anos 20, que, tendo de representar a explosão provocada por um tiro de canhão, se viu obrigado a construí-la. É o mesmo Pudovkin quem sublinhou a grande importância da escolha do material plástico para a eficácia dramática de uma cena . E este material não é, de fato, o simples conjunto dos pormenores visíveis capazes de sugerir atributos invisíveis como os pensamentos ocultos dos personagens ou os seus sentimentos profundos?A conotação sugestionante do enquadramento é determinado pelo caráter ambíguo da imagem fílmica, porque corresponde, de fato, o enquadramento, não à palavra mas à frase, embora se constituindo na partícula mínima da cadeia linguística. Presta-se, portanto, o enquadramento, a ser lido em vários níveis como uma expressão verbal suscetível de diversas interpretações, apesar de não infinitas, tendo em vista que a intencionalidade significante do cineasta realiza, apenas, uma escolha limitada entre a gama de sentidos possíveis. O enquadramento não pode ter sentido equívoco nem unívoco, pois neste último caso a univocidade viria a contrariar a impressão de realidade, impressão esta que distingue o cinema, como se viu, dos signos arbitrários que constituem a língua verbal empregada com uma finalidade puramente denotativa.A natureza escritural do cinemaDe cópia servil da realidade, como se considerava o cinema nos seus primórdios ou ainda mesmo nos seus primeiros decênios, o cinema, liberto da corrente que o vinculava à representação, pôde competir com a literatura na produção do imaginário, fazendo emergir a sua natureza escritural.

Somando-se ao caráter alusivo e ambíguo da imagem fílmica a intervenção de outros procedimentos expressivos, como a montagem (visual e sonora), os movimentos de câmera e a utilização psicológica da cor, vê-se desmoronada a ilusão realista em favor de uma concepção antimimética do cinema. As imagens cinematográficas, assim, podem organizar-se num contexto autônomo que passa a suscitar todo um leque de hipóteses - e não mais, e apenas, uma única linha de leitura. No cinema, a rigor, não existe texto dramático e encenação - aqui entendida esta com a que se estabelece no proscênio, mas e tão-somente, escrita e estilo - como acontece, aliás, no romance. Isto significa que um filme só se representa a si próprio, que o único tempo que importa é o tempo do filme, assim como a única personagem importante é o espectador, pois é na cabeça deste que se desenvolve toda a ação que é, precisamente, imaginada por ele, segundo fala Alain Robbe-Grillet.

Em outras palavras: a coisa mais importante num filme não é a história mas o discurso, ou seja, o como e não o objeto da narrativa, resultando este do primeiro - e não vice-versa. A língua, como proclama Saussure nos seus escritos, é ao mesmo tempo um produto social da capacidade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita. Assim, o fato da língua é múltiplo por definição: existe um grande número de línguas diferentes, mas não há linguagem cinematográfica específica a uma comunidade cultural.

Ou, como diz Jacques Aumont: "Uma das grandes diferenças entre a linguagem cinematográfica e a língua consiste em que, na primeira, as diversas unidades significativas mínimas não têm significado estável e universal. As figuras cinematográficas têm um sentido: não são unidades significativas mínimas; não se pode cortar em dois ou em três um flou, um congelamento da imagem". Assim, estas figuras das quais fala Aumont adquirem um significado preciso em cada contexto, mas, tomadas em si mesmas, não possuem valor fixo. Consideradas intrinsecamente, não se pode dizer nada sobre o seu sentido.

Assim, a linguagem cinematográfica apresenta um grau de heterogeneidade uma vez que combina cinco elementos diferentes: (a) - as imagens em movimento e, pendentes destas, as notações gráficas, (b) - letreiros, legendas, inscrições diversas - a trilha sonora, que compreende o som fônico, (c) - diálogos, o som musical, (d) - e o som analógico e (e) - ruídos. Apenas um desses elementos é específico da linguagem cinematográfica : a imagem em movimento. Entre as características fundamentais da imagem fílmica apontadas por Marcel Martin (8) está aquela que a considera, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências da realidade - ou quase todas. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos in (8) está aquela que a considera, antes de tudo, realista, ou melhor, dotada de todas as aparências da realidade - ou quase todas. A imagem cinematográfica também está sempre no presente, porque, fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao presente da percepção e se inscreve no presente da consciência humana, sendo que a defasagem temporal se faz apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz de colocar os acontecimentos como passados em relação ao espectador ou de determinar vários planos temporais na ação do filme. A imagem fílmica, por conseguinte, suscita no espectador um sentimento de realidade bastante forte para induzí-lo à crença na existência objetiva do que aparece na tela.Mas o cinema tem uma natureza escritural. É representação, é escrita. A representação termina quando a realidade representada cede a palavra à própria representação, isto é, o importante a considerar não é o que se diz no filme, mas sim o que o filme diz.

Para isso, é preciso aprender a reconhecer a linguagem no cinema e a captar qualquer mínima manifestação desta. É preciso apreender o comportamento que a câmera adota relativamente à personagem e não tanto seguir o comportamento de uma dada personagem na tela, pois, muitas vezes, a câmera não é cúmplice dos protagonistas nem solidária com eles, antes os corrigindo ou mesmo contradizendo. A câmera pode, em suma, intervir no plano da conotação sem, porém, modificar o plano da denotação. O que leva à constatação de que o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme não é o que se reporta ao comportamento dos protagonistas mas o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica.