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04 setembro 2013

Jerry Lewis: gênio do cinema

Publicado originariamente na revista eletrônica Terra Magazine em 3 de setembro de 2013.
Ainda que um ótimo comediante em suas primeiras comédias sob as ordens de Georges Marshall, Joseph Pevney, Norman Taurog, Jerry Lewis começa a crescer, no entanto, a partir do seu encontro com Frank Tashlin em 1955, quando fazem Artistas e Modelos (Artists and Models), apesar da companhia já outonal de Dean Martin. Lewis apreende bem o sentido da gag do realizador Tahlin, seu sentido de espetáculo desestabilizador sem a perda, contudo, do touch romântico e encantador, o senso paradoxal do non sense. A evolução do comediante se faz patente em obras como Ou Vai ou Racha (Hollywood or bust, 1956, que se pode considerá-la uma das mais bem sucedidas comédias do cinema americano), O Rei dos Mágicos (The Geisha Boy, 1958, que o cineasta Carlos Reichenbach elegeu como uma das melhores de todos os tempos, onde se verifica um non sense total: um japonês gordo cai numa piscina e inunda totalmente a cidade de Tóquio ou a descida do avião da atriz que é simplesmente posta em frangalhos fisicamente por Lewis), e, principalmente, em Bancando a ama-seca (Rock-a-bye baby, 1958), a primorosa seqüência da mangueira que praticamente destroi o bairro com seus guinchos descontrolados.
Mas mesmo depois que abandona Martin, e já trabalhando com Tashlin, ainda tem que cumprir certos contratos em filmes bem inferiores: O Delinqüente Delicado(The Delicate Delinquent, 1957), de Don McGuire, O Bamba do Regimento (The sad sack, 1957), de Georges Marshall, A Canoa Furou (Don’t give up the ship, 1959), de Norman Taurog, e, ainda deste, em 1960, Rabo de foguete (Visit to small planet), filmes menores de sua carreira e nos quais apenas brilha o seu gênio para a comicidade.
A diferença entre o sentido de cinema de Tahslin e dos outros diretores é abissal, apesar do comediante sustentar o espetáculo e superar o desequilíbrio e o esquematismo das direções anti-tashlianas. A genialidade de Lewis emerge quando começa a dirigir filmes estimulado pelo amigo Tashlin. O primeiro, O Mensageiro Trapalhão (The Bell Boy, 1960) já desarma aqueles que procuram uma história para seguir, uma fábula que possa progredir. Nada disso. O filme não tem nenhumin crescendo, possuindo uma tábua rasa como estrutura narrativa toda centrada em sketches, que mostram as confusões provocadas por um mensageiro de hotel que somente fala no final, quando lhe perguntam o seu nome e, intrigados com a sua mudez, Lewis responde que nada fala durante o filme porque nada lhe perguntam.
A segunda incursão direcional é demolidora: O Terror das Mulheres (The Ladie’s Man, 1961): o desejo quase obsessivo de desvendar o décor para o espectador, uma sátira ao matriarcado americano, as borboletas que voam do quadro fixo e depois voltam, a entrevista na televisão da senhora que rege o pensionato, e, no final, a entrada no quarto proibido que tem uma extensão tão grande que não poderia fazer parte da mansão. A brancura total do cenário, a mulher que surge de cabeça para baixo, um clima dilacerante.
O filme logo a seguir é também um coquetel Molotov na estrutura tradicional da comédia americana: Mocinho Encrenqueiro (The Errand Boy), uma desmistificação do espetáculo cinematográfico capaz de ter surpreendido os exegetas turcos do Cahiers du Cinema, que, nesta época, elevam Lewis às alturas. E como características, marcas essenciais, estilísticas: a crueldade que consiste em fazer rir de si próprio; a magistral utilização do showburn; o gosto do espetáculo e a vontade em revelar ao espectador o décor, o desdobramento de sua personalidade autor-ator, a explosão em personagens múltiplas, etc.
Se, em Tashlin, o clichê da gag audiovisual chega às raias da exasperação, em Lewis a gag provoca uma ingerência na própria mise-en-scène, na manipulação mesmo da linguagem cinematográfica. Basta dizer que em O Professor Aloprado(The Nutty Professor, 1963), na apresentação final, quando todos os atores se reclinam para agradecer como no teatro, na vez de Lewis, este parte literalmente a lente da câmera. Há, neste momento sublime da comediografia da década de 60, uma utilização do áudio de maneira inventiva, quando na cena em que o professor, saído de uma ressaca na noite anterior, em plena aula, ouve, amplificados, o giz que se arrasta no quadro, o assoar do nariz de uma aluna, o estrondo de uma pequena gota no vidro do laboratório químico, etc.
Lewis faz, aqui, uma inversão de O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, aplicando, com mais extensão e mais nonchalance, os ensinamentos tashlianos a ponto destes se configurarem num estilo próprio, lewsiano. Neste particular, após o professor ter tomado a dose no seu gabinete, transforma-se em Buddy Love, mas o espectador não o vê, pois Lewis prefere introduzi-lo em câmera subjetiva. Os transeuntes na porta da boate é que se espantam diante daquela figura carismática. Há muita inventividade na narrativa de O Professor Aloprado, mas sem os radicalismos da mise-en-scène de The Ladie’s Man.
Ao mesmo tempo em que dirige seus filmes, com equipe fiel – Wallace Kelley, iluminador, Walter Scharf, músico, Del Moore, Kathleen Freeman, cast quase permanente, com a introdução, vez por outra, de uma atriz mais conhecida, como o caso de Stella Stevens, Lewis também produz filmes para Tashlin dirigi-lo em comédias antológicas que merecem figurar em qualquer antologia dos grandes momentos do cinema no gênero: Cinderelo sem Sapatos (Cinderfella, 1960), Detetive Mixuruca (It’s only money, 1962), Errado para Cachorro (Who’s minding the store?, 1963), O bagunceiro arrumadinho (The disorderly orderly, 1964), entre poucas outras.
O Otário (The patsy, 1964) é a sua obra mais pessoal, mais radical, com uma desmistificação completa do espetáculo cinematográfico, uma exposição da construção pelos produtores de um ídolo hollywoodiano, um olhar irônico sobre oamerican way of life, mas, acima de tudo, uma mise-en-scène renovadora, um manual de invenções de fórmulas. A partir dos primeiros momentos, quando se vê um avião se espatifando e um pequeno jornaleiro anunciando a morte acidental de um grande astro, Lewis corta para o escritório dos produtores cujo carpete verde de plástico salta à vista.
Aqui, usa o silêncio como fator determinante da construção temporal a ressaltar o conceito de duração. As tomadas são mais demoradas do que o necessário, há um crescendo na preocupação dos produtores em relação ao substituto. E a entrada triunfal de Lewis, como o mensageiro que traz as bebidas numa bandeja com os copos, a derrubar tudo ao saber que ele, o bell boy, é o escolhido. Cada sequência é, de per si,um primor: Lewis experimentando roupas, engraxando sapatos; aprendendo música; o baile escolar relembrado, antológico, numa homenagem explícita a Chaplin; o jantar com Ina Balin no restaurante quando se excede na doação de gorjetas; o show de Ed Sullivan, com o próprio, que diz ter apresentado, ali, Dean Martin e Jerry Lewis; e o próprio numero do comediante que, extasiado com uma estréia de gala em Hollywood, pinta seus andrajos de preto, que se transformam em elegante casaca.
E o final apoteótico, quando cai da varanda de mentirinha, e volta, não mais como o personagem de Stanley Belt mas como o próprio Jerry Lewis, que convida, para jantar, a Ina Balin, descortinando todo o set de The patsy. Esta obra-primíssima é um dos filmes mais importantes dos esfuziantes anos 60, e Jerry Lewis se inscreve, aqui, como um dos maiores realizadores desse período, pois criador, autor completo, inventor de fórmulas.
A seguir, Uma Família Fuleira (The family jewels, 1965), destituído da virulência criativa, do sopro renovador do filme precedente, mas uma simpática comédia recheada de bom humor: o humor único e lewisiano. Em seguida, começa a decadência, com Três num Sofá (Three on a couch, 1966), mas surge uma esperança na iconoclastia de O fofoqueiro (The big mouth, 1967).
Lewis pára nos anos 70 – faz um filme em 1973 sobre um palhaço que diverte crianças num campo de concentração que é engavetado, mas continua, ainda que bissexto, nos anos 80. Mas o essencial de Lewis, como autor, está nos filmes que dirige nos anos 60. A causa da interrupção prematura está numa queda que toma e que lhe provoca terríveis dores, a depressão, etc.
Jerry Lewis, hoje, é visto pelo grande público como mero comediante e, mesmo, para alguns, como um palhaço das sessões da tarde. Mas sua importância está registrada nas centenas de ensaios escritos sobre a sua contribuição para a linguagem cinematográfica. Uma coleção de livros de cinema, Cinema D’Aujourdhui, que apenas publica textos sobre grandes cineastas, dedica a Jerry Lewis um de seus números, que é uma tese de doutorando de um francês na Sorbonne.
E em 1981, quando já não se pensava num retorno lewisiano, surpreende a todos com uma comédia bem a seu gênio: Smosgasboard, que o título idiota em português apenas reafirma o preconceito: As loucuras de Jerry Lewis.

02 setembro 2013

Um ponto de vista sobre Woody Allen


Ainda que não seja um crítico de cinema profissional, Afonso Costa Queiroz Filho é um autêntico cinéfilo numa época em que a cinefilia já está morta e enterrada. A bem da verdade, pertenço também à sua geração, à última geração de cinéfilos. O cinema, hoje, ainda que existam bons realizadores, não tem mais a magia e a importância do pretérito, engolido que foi pela sociedade de consumo, transformando-se, portanto, num parque de diversões ou, para ser mais eufemístico, numa desabonadora extensão dos fast foods dos shoppings. O texto que vai a seguir, e abrindo logo as necessárias aspas, é de Afonso, que faz, aqui, uma exegese expressiva de Meia-Noite em Paris, de Woody Allen.

"Ingênuo, lírico, Woody Allen provoca em nós a satisfação das nossas reminiscências, em toda a extensão de sua beleza evocativa, embora carregadas de típica ironia, fruto de um cultivado ceticismo. Porém, sem receio da contradição (neste embate é que reside o vigor de sua criação) consegue subverter a racionalidade e compor um quadro de esperança na brincadeira com as nossas fantasias e recordações, permitindo-nos enxergar a capacidade do ser humano de se recriar através referências essencialmente existenciais, num período da cultura ocidental estabelecido no filme, em que se buscou, radicalmente, novas formas de expressão que conferissem maior autenticidade e sentido às idéias e sentimentos humanos.

Como aqueles que cultivam a visão lírica do mundo, filha dileta do romantismo, Woody Allen concebeu esta obra representando a tentativa do homem, através do fazer artístico, transcender suas limitações, buscando, sempre, novas possibilidades. Todos os criadores, exponenciais da arte que se fizeram presentes no filme, não fizeram por menos: suas próprias vidas transcorreram como testemunho desse esforço, não hesitando, até, em sacrificá-las. Mas, por outro lado, como em todo ato de entrega há um fator regressivo, exigência de absoluto devotamento durante o qual o indivíduo abdica, até, de si mesmo, é na memória ancestral que se vai buscar o referencial necessário para configurar suas idéias. No filme, seu personagem - não à toa vivido por um comediante, tal como Allen, disposto a transgredir, na pele do próprio autor - representa um escritor de roteiros de filmes para TV. É, portanto, alguém entregue à própria imaginação e fantasia. Assim, o protagonista tenta encontrar/resgatar em Paris o sentido maior para a sua criação/vida, um romance que está a escrever; mas, acompanhado da noiva, mulher fútil, filha perfeita da tão cara mentalidade utilitarista americana, vê-se tolhido em suas expectativas, situação ainda mais agravada pelo encontro com um pedante professor universitário, amigo de sua futura esposa, que não cansa de exibir seus conhecimentos cultivados, apenas, como um repertório profissional de informações, não legitimado por qualquer paixão ou verdade pessoal tão cara ao nosso inquieto personagem.

No roteiro cultural a que se propõem a fazer na Cidade, vê-se, claramente, que a companhia, apesar de envaidecer sua noiva, nada diz a ele. Fugindo, então, às contingências das convenções sociais que o constrangiam, passeia, à noite, pelas ruas de Paris, percebendo-se, de repente, no centro de um milagre que o transporta para um outro tempo, cujas lembranças nos são caras (a idéia do carro antigo, lembrando uma carruagem de alguma princesa de contos de fada, é de uma doçura especial!): década de vinte do século passado onde o vanguardismo corria livre de quaisquer amarras e as experiências com novas linguagens dominavam o cenário cultural. Surge, então, o elemento fundamental para sua narrativa, o reencontro, (re)encarnados (todos, na realidade, já mortos), após à meia-noite, qual Cinderela às avessas, de todos os autores que povoam a sua memória e já deslumbraram, também, a todos nós, por todas as possibilidades que uma vez descortinaram para a condição humana.

A partir daí, Woody Allen nos conduz, magistralmente, senhor absoluto da situação, pois tem a perfeita consciência de ter nos seduzido para brincar com nossas lembranças e, porque não dizer, com nosso passadismo, por um percurso inimaginável, se real, mas, ao mesmo tempo, decisivo na sua fabulação para que pudéssemos reconhecer o estofo de que somos formados nessa pós-modernidade: chegamos a vivenciar o encontro com todos (quase) que participaram dessa revolução!

E somos levados de surpresa em surpresa. O nosso candidato a escritor de romances chega a entregar à Gertrude Stein o seu manuscrito para que ela o avaliasse, como grande mãe e super-ego de todos que foi. Picasso mostra o seu narcisismo, Hemingway fala da coragem fundamental  para encarar o mundo, Dali demonstra seu fascínio pelas formas, pelo som e pelo bizarro,  enquanto Buñuel já mostra um olhar estático, como envolvido por uma visão interior única e soberba. Os recursos narrativos usados por Woody Allen mexem com o encantamento das fabulações do “era uma vez” que fez as delícias de nossa infância, mostrando, ousadamente, as mais brilhantes cabeças em indivíduos capazes da sagrada ingenuidade de acreditarem em seus próprios delírios, frutos de uma irracionalidade sem limites, cultivada 
incondicionalmente.  E, brincante, se apropria do encantamento da fábula, com nossa inteira permissão, cúmplices deslumbrados desta paródia, assumindo o jogo proposto e a possibilidade de mergulhar neste universo onírico. E esse não é o verdadeiro papel do cinema e, mais amplamente, da Arte?

Mas, para conferir plausibilidade à sua história, posto que seu objetivo é outro, Woody Allen dá um limite à fantasia em não continuar, indefinidamente, a buscar em tempos mais remotos a fonte de sua ansiada sabedoria, recusando-se a prosseguir em seu retorno ao passado, necessitando viver a dimensão do “aqui e agora” quando sua noiva o chama para a realidade. As suas incursões noturnas estão despertando a ira e as suspeitas de sua família, cujo pai chega a colocar um detetive particular no encalço do “fujão” para investigar suas verdadeiras motivações.

A esta altura, revela-se ou, melhor, desvela-se o coração do personagem. Ao descobrir que a noiva, de fato, o despreza, pretendendo, exclusivamente, consorciar-se com alguém de “sucesso”, como soe acontecer à todas feitas à sua imagem e semelhança, pouco se importando com quaisquer subjetividades românticas, parte para a aventura de construir, com todo direito que sua imaginação lhe confere  (a esta altura com o aval e a licença poética de pessoas já finadas em “em carne e osso” - o que seríamos nós sem a imaginação!), sua realidade pessoal em sintonia com o espaço-tempo de sua existência. Desiste do casamento e volta, mais uma vez, a perambular pelas ruas de Paris, disponível para o que ocorrer, entregue na pureza de seus impulsos e de seus ideais, exatamente como nas Fábulas. E a história se encerra, numa singeleza espetacular, quando ele se depara, debaixo de chuva, com um rosto familiar, porém, de uma expressão meiga e inocente da vendedora de um bistrô de antiguidades – memória, de novo - que lhe sorri, fazendo-o (re)lembrar da gratuidade da graça, da beleza e da bondade, principalmente para eles que desconhecem seus papeis sociais (não teria o propósito de contradizer o Mestre Fellini na cena final de Oito e Meio, do qual o Woody Allen é admirador?). Mas do que tudo, a ternura de um encontro é um consolo para as almas maltratadas pelas atribulações da vida, sugerindo-nos que o eterno está no amor, 

transcendendo as épocas, aos fatos e à própria arte, sendo esta, exclusivamente, o meio para arrancar de nosso íntimo a crença de que somos capazes de passos mais largos, acreditando na extensão de nossos sentimentos: olhar compreensivelmente e, brincar, divertido, com nossas angustias e inquietações, feitas tão sérias para um ser tão frágil e efêmero, é  uma necessidade de todos nós... Não seria um Final Feliz que guardou para nós como no “Era Uma Vez”?..."

01 setembro 2013

Da necessidade de se rever Robert Altman

Em inícios dos anos 70, a comédia americana – que teve seu apogeu nos anos 30, 40 e 50, a Idade de Ouro de Hollywood – dava mostras de esgotamento, principalmente por causa da aposentadoria de alguns de seus próceres, e os que ainda a continuavam não conseguiam renová-la. É neste despertar dos 70 que aparece no panorama internacional uma comédia diferente, satírica, ácida, irreverente: “M.A.S.H.”, de Robert Altman. Localizada a ação na Guerra da Coréia, tem uma clara referência à do Vietnã que então se encontra no auge e no clamor dos protestos da sociedade americana. Conta a película a vida de soldados no front bélico, onde dois cirurgiões (Elliot Gould e Donald Sutherland) fazem o diabo para costurar os feridos. Tudo feito na base da anarquia criativa, com um dinamismo estrutural, rapidez de diálogos, que muitos críticos consideram que, neste filme, há uma renovação na comediografia cinematográfica. Sally Kellerman se revela como a oficial séria e ríspida que tem sua cortina devassada quando toma banho numa sequência memorável.
Altman, por “M.A.S.H.”, e apenas por este, se torna, logo, um “cult” de uma hora para outra, ainda que já com uma filmografia cujo início se dá muito antes, em 1957, com “Os Delinqüentes” (“The Delinquents”) e, neste mesmo ano, “The James Dean Story”, um documentário sobre o mito que há poucos anos tinha sido vitima de um acidente automobilístico. Os produtores não gostam de “Os Delinqüentes” e, quanto ao documentário, não o consideram palatável comercialmente. De pires na mão, Altman procura um produtor – naquela época não se usava a famigerada captação de recursos – e, desempregado, custa a arranjar, e mesmo assim na televisão, um emprego como diretor de fitinhas sem importância – que os críticos franceses, dando uma busca nos arquivos televisivos, conseguem encontrar, nestas fitinhas, o “touch altmaniano”.
Dez anos se passam até que Altman encontra um produtor com mania de risco, de investir em projetos condenados. E realiza “No Assombroso Mundo da Lua” (“Countdown”, 1968), ficção-científica que rende alguns trocados na bilheteria e faz os produtores acreditarem que Altman “era diferente” e, assim, deviam lhe dar uma segunda chance. Esta foi um sucesso, ainda que relativo de público, mas entusiasmado da crítica: “Uma Mulher Diferente” (“That Cold Day in the Park”, 1969), um thriller de extremado rigor sobre a solidão de uma mulher (Sandy Dennis) numa grande cidade (Nova York). Filme marcante, com uma mise-en-scène baseada nos acordes musicais e no silêncio. A seguir, o estrondo de “M.A.S.H.”
Espera o diretor quarenta e cinco anos para se ver reconhecido como cineasta (nasce em 1925, morre em 2006, aos 81). Após a sátira devastadora sobre o Vietnã travestido de Coréia, os produtores começam a lhe oferecer projetos. Altman, como sempre muito exigente e muito à margem do “sistema” hollywoodiano, procura construir uma carreira de autor. Tem tanta presença a sua assinatura que mesmo quando pega um roteiro alheio, e do qual não gosta, o resultado é sempre um filme de Robert Altman. O que constrói o cineasta após “M.A.S.H.”? A resposta vem no mesmo ano: “Voar é com os pássaros” (“Brewster McCloud”), com Bud Cort – o menino que contracena com Ruth Gordon em “Ensina-me a Viver”. Fracasso. Humor sofisticado demais. Um garoto tem o desejo de voar como Ícaro. E parte para a ação num aparelho de madeira complicado. Apesar de rejeitado pelo público, é um grande filme, difícil, é verdade, pois de configuração diferente dos padrões de Hollywood. Em seguida, “Quando os Homens São Homens” (“Mc Cabe and Mrs Miller”, 1971), com Warren Beatty e Julie Christie, um anti-western, pois sem a essência do gênero, o conflito em movimento. Altman opta pela inação, e, ainda por cima, numa paisagem cheia de neve. Outro fracasso. Mas a crítica recebe os filmes de braços abertos. E os produtores arrancam os cabelos de raiva.
Mostra ser um cineasta temperamental, difícil, incapaz de se dobrar às solicitações de uma platéia convencional. Os filmes seguintes dão ao realizador um passaporte para a rua da amargura. “Imagens” (“Images”, 1972), reavaliação do terror como componente do “impulso cinemático”, com Suzannah York, e após este, um estudo crítico de gêneros, desmistificando-os como fórmulas: o filme noir em “Um perigoso adeus” (“The long goodbye”, 1973), com Elliot Gould, e o thriller com a tônica no gangsterismo em “Renegados até a última rajada” (“Thieves like us”, 1974), com Keith Carradine. Desse modo, a revisão de gêneros, que a chamada pós-modernidade se apodera, tem em Altman um precursor.
Um estilo que se caracteriza pela preocupação em desmontar a lógica que precede o discurso cinematográfico, subvertendo, sempre, o diapasão de seu itinerário. A grande arma de Altman é o humor, ácido, por vezes cruel, mas sempre refinado, requintado, um humor para o sorriso interior, mas, quase nunca, para a explosão de gargalhadas – exceto em “M.A.S.H.” Sua linguagem se concentra num “texto” e num “subtexto”, em tons e subtons. Altman, definitivamente, não pode ser admirado pela horda selvagem multiplexiana, pela patuléia que comanda o espetáculo de horror – que é ir a uma “matinê” numa das salas dos complexos dominantes.
Por causa dos apupos da crítica, um produtor, que não tem medo de negócios arriscados, banca Altman. E, ainda em 1974, faz “Jogando com a sorte” (“Califórnia split”), com Elliot Gould, ator preferido na época, e George Segall, uma viagem altmaniana sobre os deserdados da sorte e a “feérie” da jogatina. Mas até o produtor, que lhe banca os filmes, quis dar o fora, pois o dinheiro investido não retorna a contento. Mas Altman arranjou produção e, num golpe de sorte, acerta em “Nashville” (1976), que muitos consideram sua obra-prima. Retrato da América, o filme se concentra num festival de música country.
Segue outro anti-western, com Paul Newman: “Oeste Selvagem” (“Buffalo Bill and the indians or Sittings Bull’s history lesson”, 1976), celebrado em Berlim. O sucesso de “Nashville” compensa as perdas internacionais. “Sittings Bull” é outra desmistificação, desta vez do heroísmo de Buffalo Bill, tão cultuado nos Estados Unidos, mostrando-o como um homem de caráter duvidoso e comportamento ambíguo. A paisagem do oeste, selvagem, como diz o título original, e a ausência total de uma “clicheria” não contentam os amantes do gênero.
Um estudo da alma feminina feita com sensibilidade e emoção neste filme que considero um de meus preferidos do realizador de “Assassinato em Godsford Park”. Janice Rule, Sissy Spacek e Shelley Duvall estão inexcedíveis como as personagens de “Três mulheres” (“Three Women”, 1977), criaturas atormentadas pela angústia do existir e que se debatem no inferno de suas existências. Obra rara e severa, mas difícil de encontrar para uma revisão.
O espaço chegando ao fim e eu, aqui, ainda com Altman na década de 70. Que fazer? É dizer logo que “Cerimônia de casamento” (“A Wedding”, 1978), afresco notável sobre os comportamentos hipócritas numa festa de casamento burguesa, é um sucesso. Elenco fabuloso, que inclui Vittorio Gassman e Lillian Gish e Carol Burnett. Nunca a burguesia é tão bem radiografada quanto neste “A Wedding”. Grande filme, mas também assinala o começo de sua decadência nos anos 80 cuja reabilitação somente se dá em 1992 com “O Jogador” (“The Player”). Se em 1970 tem início o culto a Altman, 1980 assinala a sua descida ao inferno com “Popeye”, com Robin Williams e a magricela Shelley Duvall como Olívia. Os produtores são, literalmente, enganados. Ao invés de um filme para agradar as platéias populares, Altman prefere a caricatura, a desmistificação – como sempre o olhar irônico, o riso que se multifaceta nas entrelinhas. O público quer gargalhar com Williams no papel de Popeye e se depara, sem entender nada, a piada oculta.
Antes deste elabora um filme que particularmente não gosto, “Quinteto” (“Quintet”, 1979), com Paul Newman, novamente, e também trazendo de volta Gassman – cujo desempenho em “A Wedding” deixa Altman entusiasmado. “Um Casal Perfeito” (“A Perfect Couple”) é simpático, mas sem o brilhantismo habitual. E com o afundamento de “Popeye” as portas se cerram para o realizador. Realiza o que quer, no entanto, nos anos 70, e somente por esta safra o título de grande cineasta já lhe poderia ser dado.
Enfraquecido, sem crédito, Robert Altman desaparece de circulação. Nenhum filme seu estréia mais no circuito. Aos poucos, na década de 80, vai sendo substituído no culto por outros realizadores, como Wim Wenders. A maior parte dos filmes que o diretor de “Godsford Park” faz nesta década nada prodigiosa para ele não foi distribuída no Brasil, como, por exemplo, “Come back to the Five and dime, Jimmy Dean”, com Karen Black – que fim levou essa atriz? e Cher, e “Além da terapia” (“Beyond therapy”, 1986), com Glenda Jackson e Tom Conti, sátira à psicanálise, ou “Fool for love” (1985), com Sam Shepard e Kim Bassinger. O único Altmam com alguma notoriedade nos 80 é “O exército inútil” (“Streamers”, 1983), por causa de prêmio internacional dado a todo o elenco na categoria “melhor ator”. Baseado em peca teatral, segue ao pé da letra as torrentes verbais, constituindo-se quase que num teatro filmado desenvolvido em planos-sequências e movimentos de câmera inteligentemente manipulados.
Finalmente, os anos 90 lhe abrem novamente as portas: “O Jogador”, “Short Cuts” (este, uma obra-prima), “Prêt À Porter”, “Kansas City”, “A Fortuna de Cookie”, o admirável “O Assassinato em Godsford Park”, e “A última noite”, seu canto de cisne. A sua narrativa polifônica marca época e influencia uma geração de cineastas, principalmente a encontrada em “Nashville” e “Short Cuts”.