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14 maio 2011

De uma comédia extraordinária

Frank Tashlin, um dos melhores comediógrafos de Hollywood, encontra-se injustamente esquecido. Dirigiu muitas comédias que hoje merecem fazer parte de uma antologia. Mestre de Jerry Lewis e um grande incentivador para que o ator começasse a dirigir seus próprios filmes (dirigiu Lewis em Artistas e modelos, Ou vai ou racha, Bancando a ama-seca, Cinderelo sem sapatos, O bagunceiro arrumadinho, Errado para cachorro, entre outros). Revendo o extraordinário Em busca de um homem (título idiota que tomou no Brasil para Will success spoil Rock Hunter?), que é de 1957, percebi que Billy Wilder e I.A.L. Diamond se inspiraram nesse filme de Tashlin para realizar Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960). A angústia da influência não chega a tirar o status deste, que é uma obra também extraordinária. 

Tony Randall é um executivo que pretende subir na sua empresa. Encontra pela frente Jayne Mansfield (vale ressaltar que Tashlin consegue fazê-la convincente, pois era apenas um avião com aqueles seios enormes). O auge da promoção está na cena em que recebe a chave do banheiro particular de sua sala. E o filme é metalinguistico avant la lettre.

12 maio 2011

"Cinzas e diamantes", de Andrezej Wajda


Há os chamados filmes-influências, ou seja, aqueles filmes que contribuíram para a formação cinematográfica de uma determinada pessoa num determinado estágio de sua vida, geralmente identificado entre a adolescência e a juventude. Um desses filmes para a minha trajetória de amante cinematográfico foi, sem dúvida, Cinzas e diamantes (Popiol i diament, 1958), do realizador polonês Andrezej Wajda, que, por sinal, completa, no ano em curso, seus 53 anos.

Se, atualmente, o cinema polonês está em baixa, nos anos 50 e 60 era uma referência para todos que se diziam cinéfilos, e cinéfilos enragés, como era moda, na época, nos meios mais intelectualizados, artísticos e universitários. Lembro-me de um livro de capa roxa sobre esta cinematografia que era ostentado pelos ditos cinéfilos, e que o adquiri, tempos depois, em sebo, mas, emprestado, perdeu-se para sempre (nunca se deve emprestar livros, salvo se o móvel do elemento volitivo seja o de perdê-los).

O cinema polonês tomou impulso e se projetou internacionalmente logo após a desestalinização, o que permitiu aos artistas poloneses uma mais livre respiração de seus sentidos e um vôo na imaginação já que livres da camisa-de-força da Era Stálin. Realizadores vão se destacar no cenário: Wajda, o principal, Jerzy Kawalerowicz no intrigante Madre Joana dos Anjos (1961) – a possessão de freiras num convento como ritus e como metáfora; Andrezej Munk, que, morto prematuramente em acidente, deixou uma obra-prima inacabada, A passageira (1964); Wojcleck  Has, autor do insólito O manuscrito de Saragoça (1965), entre outros. Houve também, na Tchecolosváquia, um boom semelhante. Quem, com mais de 30 anos, não se lembra de Um dia, um gato, de Vojtech Jasny ou Trens estritamente vigiados, de Jiri Menzel, ou, ainda, Os amores de uma loura e O baile dos bombeiros, ambos de Milos Forman (sim, o cineasta de Um estranho no ninho se revelou na sua Praga)?

Sobre ser grandes criadores os realizadores citados, foi Andrezej Wajda, no entanto, quem projetou o nome da cinematografia polonesa no cenário mundial com sua famosa trilogia: Geração (1954), Kanal (1957), e Cinzas e diamantes (1958), aos quais se seguiriam Lotna (1959), Paisagem após a batalha (1971), até o generoso díptico O homem de mármore (1976) e O homem de ferro (1981), entre outras obras de reconhecido valor cinematográfico, a exemplo de Sem anestesia (1978) e Danton, o processo de uma revolução (1983), Um amor na Alemanha, entre, evidentemente, diversos filmes variados. Ferrenho crítico do stalinismo, nunca admitiu as coordenadas do realismo socialista e realizou uma análise contundente de sua Polônia nos anos 70 no díptico citado.

Os melhores cineastas poloneses se formaram na Escola de Lodz, centro de excelência que fez surgir grandes realizadores, entre os quais Roman Polanski, que aprendeu a fazer filmes ainda na Polônia, que lhe forneceu os instrumentais necessários para o polimento de seu imenso talento (os curtas Três homens e um armário e O gordo e o magro, além do primeiro longa, A faca na água, são exemplares nesse sentido).

Em Geração, Andrezej Wajda, através de um jovem que, por estar apaixonado por uma mulher, se torna, a pedido dela, membro ativo da Resistência, o cineasta alia uma bela história romântica a um severo olhar sobre as contradições da Resistência polonesa. Neste filme, pode-se ver, em uma ponta, o ainda imberbe Polanski.

Geração, começo de uma trilogia, ainda que um bom filme, precisaria, para a constituição do painel, de Kanal e de Cinzas e diamantes, esta última a obra-prima de Wajda. Em Kanal, cuja ação se localiza também durante a guerra, o que se vê é uma descida ao inferno por meio da luta efetuada nos subterrâneos da cidade, com os personagens perdidos nos esgotos, nos canais nos quais são despejados os dejetos dos habitantes.

Em Cinzas e diamantes (que possui cópia em DVD distribuída pela pernambucana Aurora), a ação se transcorre no ambiente de greves e amarga perplexidade da Polônia no final da Segunda Guerra Mundial. No meio de tudo isso, um jovem, Macieck (interpretado por Zbybniew Cybulski, um grande ator que veio a ser considerado o James Dean polonês, mas que morreu no auge da glória), tem seu desejo de viver e amar destruído pela ordem de matar um grande chefe comunista. Incapaz de compreender os conflitos, tenta, em vão, subtrair-se à tarefa, mas não consegue e acaba por cumprir a missão recebida. No fim, Macieck abre os braços para amparar o homem que acaba de matar, e ambos se abraçam num gesto que parece simbolizar sua humanidade comum. Executado o contrato, enquanto os políticos locais se embebedam, Macieck foge dessa orgia, mas é morto por uma patrulha, e, antes de morrer, se envolve num lençol branco que se tinge de vermelho, para cair, em seguida, num monte de lixo.

A dança, durante a orgia, é premonitória e dá um sentido de forte desesperança, que faz lembrar, guardadas as diferenças, a dança derradeira de La dolce vita, de Federico Fellini. O final de Popiol i diamante deixou todos aqueles que o viram na década de 60, como disse um crítico na ocasião, com um gosto de cinza na boca.

O ensaísta francês Claude Beylie considera Andrezej Wajda um apologista dos dissidentes, dos rebeldes sem causa, dos vencidos da História, porque ele tem a arte de exprimir em imagens cativantes a imaturidade e agonia deles. Sobre Cinzas e diamantes disse ser um filme característico das contradições fecundas que impulsionam sua arte. De um lado, a consciência da necessidade de um engajamento, e, do outro, a desconfiança para com as palavras de ordem, de onde quer que venham. Seu herói (magistralmente interpretado por Zbybniew Cybulski) encarna, de maneira exemplar, esse duplo postulado.

10 maio 2011

"Deus sabe quanto amei", de Vincente Minnelli

Shirley MacLaine num dos melhores desempenhos de sua carreira em Deus sabe quanto amei (Some came  running, 1958), de Vincente Minnelli


O título da obra-prima de Vincente Minnelli em português, Deus sabe quanto amei, vem a desmerecer o filme e pode fazer parecer se tratar de um melodrama banal. O original é Some came running e que, traduzido ao pé da letra, seria Alguns vieram correndo. Na França, foi chamado de Comme une torrent... (Como uma torrente...).

Longe das telas há muitas décadas (foi visto na época de seu lançamento e depois desapareceu), Deus sabe quanto amei, para a satisfação dos admiradores de Minnelli (entre os quais se inclui este comentarista), acaba de sair em DVD luzidio, em cópia muito boa distribuída pela Warner Bros como um dos integrantes da Coleção Frank Sinatra. Trata-se de acontecimento da maior importância para os minnellianos, os quais, infelizmente, são poucos no Brasil. Mas a sua revisão o coloca entre um dos melhores filmes americanos de todos os tempos.

O filme é um retrato da sociedade americana na década de 50, realizado com o requinte particular de Minnelli. Baseado no livro de James Jones (o mesmo escritor de A um passo da eternidade), Some came running, para ser melhor apreciado, precisa estar contextualizado na obra do diretor. Realizador de extremo bom gosto, Minnelli se dividiu, em sua trajetória de funcionário da Metro Goldwyn Mayer, entre os insuperáveis musicais que dirigiu (O pirata, A roda da fortuna, Sinfonia em Paris, Gigi, A lenda dos beijos perdidos...), os dramas ásperos (Assim estava escrito, A cidade dos desiludidos...), e as comédias românticas (Papai precisa casar, Teu nome é mulher, Brotinho indócil...).

Em Some came running, Frank Sinatra é um romancista frustrado que depois de longo tempo retorna a sua cidadezinha e reencontra, nela, seu irmão rico e mesquinho (o grande Arthur Kennedy). Na verdade, depois de uma grande bebedeira em Chicago, na qual houve briga e agressão, o personagem de Sinatra foi colocado no ônibus em direção  à cidade natal. Junto, viaja uma prostituta, Shirley MacLaine, no papel que despertou os olhares da crítica internacional, que se apaixonara por ele. Quando chega, janta na casa do irmão (que lhe colocara ainda menino num orfanato de onde fugira para ficar on the road), conhece uma professora de literatura que admira seus livros e pela qual tem um romance (Martha Hyer) e faz amizade com um bon vivant, jogador profissional (Dean Martin).

O filme caminha a passos lentos, mas rigorosos, em direção à tragédia final no parque de diversões, quando Minnelli exercita o fulgor de sua esplendorosa mise-en-scène, a utilizar, com grande estesia, a montagem paralela e as cores como um arabesco para a composição de seu painel trágico.

O que pode haver de tão especial num filme à primeira vista simples e até mesmo estruturado dentro da convenção estabelecida do estilo de representação do cinema americano? O diferencial reside, a rigor, na escrita minnelliana, no seu modo de estabelecer e articular a narrativa. Há, bem observado, um particular sentido de composição dos enquadramentos (e sendo o filme em cinemascope, Minnelli sabe encher a tela larga com eficiência dramática, a fazer com que seus personagens habitem-na com funcionalidade do espaço cinematográfico). E impressionante o seu conceito de duração das tomadas. A bem ver, o filme se estrutura, como se disse, a passos lentos, como se tudo estivesse preparado em função da catarse final, um grand finale no qual o artista que é Minnelli se mistura com a arte de um pintor e de um músico, já que a montagem é, no final das contas, pura pulsação, puro ritmo, puro timing.

O equilíbrio de composição da estrutura narrativa minnelliana (e não se está a falar apenas de Some came running, mas de todo o cinema deste realizador) é de uma extraordinária força dramática.. No caso específico de Some came running, o melodrama é elevado ao patamar trágico. A tragédia do homem e da procura do amor. A tragédia de uma sociedade viciada e preconceituosa. A tragédia que enleva e que proporciona a ars poetica.

Com o cinemascope, o registro visual que Minnelli estabelece é no sentido do aproveitamento do espaço maior com tomadas longas nas quais, ao invés de a câmera se movimentar, são os atores que habitam o espaço, que se deslocam neste para evitar o corte. Assim, tem-se as tomadas com maior duração em todo o decorrer do filme, a exceção do final do Carnaval no parque de diversões, quando o realizador muda o registro visual, e os cortes se sucedem com maior rapidez num festival de luzes e cores, ângulos insólitos, pulsação, ritmo. Nesta seqüência derradeira, vê-se o estilo minnelliano dos seus musicais primorosos e o cinema se estabelece como timing ou, melhor dizendo, o que se tem, nesta seqüência, é a beleza do cinema em sua quintessência. Um design visual de grande impacto.

Além da seqüência final do Carnaval, que é antológica, e já registrada como um dos momentos sublime da história do cinema, há uma outra também de sublimidade mais de um ponto de vista humanístico do que estético. É aquela quando Sinatra lê para MacLaine o seu conto que a professora de literatura consegue publicá-lo numa revista de Nova York. Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumularam nele (tempo, décor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. A personalidade da personagem de MacLaine é de uma humanidade e de uma generosidade capaz de dotá-la de uma singularidade e ser ela assemelhada a uma Cabíria, aquela prostituta de Fellini interpretada por Giulietta Massina que, por sinal, MacLaine também a viveu na versão musical de Le notti de Cabiria dirigida por Bob Fosse, Sweet Charity.

No final do filme, a câmera se desloca para mostrar, abalados, os personagens da tragédia durante o enterro dela. Dean Martin, o jogador inveterado, que nunca admitira tirar o seu chapéu, mesmo a dormir ou num hospital, tira-o para ela, ele que sempre criticara as mulheres, mas que, naquele momento, se rende e presta uma homenagem a seu modo à personagem de MacLaine. E a câmera millenniana se movimenta para observar a paisagem. A vida continua, afinal de contas.

Há cineastas, como observou o crítico lisboeta João Bénard da Costa, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de avis raras;

Os minutos finais de Some came running representam uma admirável lição de como integrar os esquemas narrativos do cinema musical dentro de uma estrutura estética fundamentalmente dramática.

09 maio 2011

Modos fundamentais de abordar o mundo

Alain Resnais é um dos cineastas mais inventivos do cinema contemporâneo, apesar de já beirando os noventa anos.

A linguagem cinematográfica, já se disse aqui em alguma coluna, foi sendo construída durante as seis primeiras décadas do século passado. Se a data da aparição do cinema se dá em 1895, somente quase 20 anos depois, em 1914/1915, é que se estabelece a configuração expressiva da sua narrativa, de sua linguagem, com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith, e, logo adiante, em 1916, Intolerância (Intolerance), do mesmo diretor. Durante duas décadas (1895/1915), a linguagem cinematográfica tem seus elementos determinantes descobertos aos poucos e por acaso.

Um cinegrafista de Auguste e Louis Lumière (os inventores oficiais do cinema, embora muitos outros, na mesma ocasião, tentassem, em outros países, a projeção das imagens em movimento), Alexandre Promio, numa gôndola num canal de Veneza, liga o seu cinematografo e, a filmar os casarios com a barca em movimento, descobriu um movimento de câmera, o travelling. Um inglês, em 1901, G.A. Smith, da Escola de Brighton, Inglaterra, enquanto registra uma cena de uma mulher diante de um fogão, que está a ponto de explodir, em plano geral, tem a idéia de cortar e introduzir, neste, um close up do rosto da mulher aflita com o acidente prestes a acontecer. A descoberta da inserção de um close dentro de um plano geral é um grande passo na evolução da linguagem.

Assim como a montagem alternada, quando se vê, simultaneamente, vários espaços que se alternam em ritmo crescente até que se convergem num único espaço. A grosso modo, num filme do princípio do século XX, ainda nos primórdios da invenção, o exemplo da mulher que, amarrada aos trilhos por bandidos inescrupulosos (primeiro espaço), está quase a ser espedaçada pelo trem que vai vindo ao longe (segundo espaço) e que, com o desenvolvimento da narrativa, está cada vez mais perto, enquanto o mocinho, namorado da mocinha, toma conhecimento de que ela está em perigo (terceiro espaço) e vai em disparada salvá-la. No final, os três espaços se unificam no primeiro, com a chegada do mocinho, que consegue desamarrar a namorada dos trilhos, e fazer parar o trem. Outros elementos da linguagem são descobertos neste período, principalmente por Griffith em seu período na Biograph (ler, neste sentido, o fundamental livrinho da coleção Encanto Radical (Brasiliense, 1984) de autoria de Ismail Xavier: D.W. Griffith: O nascimento de um cinema ou, também muito importante, Serguei M. Eisenstein: Geometria do êxtase, da mesma coleção e editora, de Arlindo Machado).

Griffith, nos dois filmes citados, é aquele que consegue sistematizar, com eficiência dramática, as descobertas anteriores dos elementos da linguagem cinematográfica. Mas a linguagem ainda precisa de muitas décadas para se aperfeiçoar e se cristalizar, o que se dá em meados da década de 60.  Os inventores de fórmulas (Hitchcock, Eisenstein, Orson Welles...) deixam de existir para dar lugar a um cinema de estilo.

Existem, a rigor, entre os realizadores cinematográficos, dois modos fundamentais de abordar o mundo: o cerebral/conceitual e o sensorial/intuitivo. Classificação formulada por Marcel Martin em A linguagem cinematográfica (pág 245), editado várias vezes por diversas editoras e livro imprescindível para um conhecimento básico da dita cuja. O exemplar que se está em mãos é da Brasiliense de 1990.

Nestes dois modos de abordar o mundo, os realizadores cerebrais/conceituais procuram reconstruir o mundo em função de sua visão pessoal, acentuando a imagem como meio essencial de conceituar o seu universo fílmico. Que outro cineasta mais cerebral e conceitual que Orson Welles. O autor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) privilegia mais a imagem do que a chamada realidade e seu filme é, no fundo, como disse o historiador francês Georges Sadoul, "um retrato do artista por ele mesmo".  Também se incluem como cerebrais/conceituais realizadores como Eisenstein cujo realismo, se assim se pode chamar, é um realismo conceitual, Carl Theodor Dreyer que, com seus quadraux mouvants (quadros moventes) sempre está a fazer exercícios cerebrais diante do tema exposto, a exemplo de O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), A palavra (Ordet), Vampyr, Gertrud, entre outros. E o esteta Luchino Visconti cuja forma privilegia na composição de sua mise-en-scène embora o propósito de fazer emergir uma realidade determinada (e Rocco e seus irmãos/Rocco i suoi fratelli, 1960, não seria, então, mais intuitivo?). Robert Bresson é cérebro e conceito, assim como Alain Resnais (cuja simbiose entre forma e conteúdo atinge as raias de um processo inextricável em O ano passado em Marienbad [L'année dernière a Marienbad, 1961], entre outras tantas obras de sua rica filmografia,que se considera uma das mais importantes do cinema em todos os tempos - recentemente Medos privados em lugares públicos [Coeurs] e Ervas daninhas vieram mostrar diante de um cinema contemporâneo apático a jovialidade, a inventiva, a grandeza desse cineasta francês desbravador de fórmulas que muito acresceu à evolução da linguagem cinematográfica. O filme permanece em cartaz por mais de um ano em uma sala paulista). E mais cérebros: Jean-Luc Godard, que praticamente inventou o filme-ensaio, Tarkosky, entre tantos que o espaço não permite a citação.

Os realizadores cinematográficos sensoriais e intuitivos procuram subtrair-se diante da realidade (como se desaparecessem diante dela), fazendo surgir, da representação da realidade direta o objetiva, a significação que querem obter. Para estes cineastas, o trabalho de elaboração da imagem tem menos importância que a sua função natural de figuração do real. Os sensoriais e intuitivos não almejam confiscar o espectador diante da fascinação da imagem, mas, pelo contrário, respeitam a sua liberdade. Assim, em seus filmes, a característica essencial está menos no caráter insólito de suas imagens do que na intensidade da representação da realidade. Marcel Martin diz textualmente: “E poderíamos acrescentar, ainda esquematicamente, que o período em que a linguagem (imagem, montagem) teve um papel predominante correspondeu ao triunfo dos cerebrais, ao passo que o progressivo abandono da linguagem tradicional assinala a preponderância dos sensoriais e de sua visão plástica não mais obcecada pelo conceitualismo.”

David Wark Griffith talvez seja o maior exemplo do cineasta sensorial e intuitivo, assim como Charles Chaplin, Robert Flaherty, Wilhelm Murnau, Yasujiro Ozu, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Vittorio DeSica, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Theo Agelopoulos, Wim Wenders, etc.

Estes cineastas se esforçam para subtrair-se diante da realidade e o que desejam é fazer surgir a produção de sentidos pela sua representação direta e objetiva. Os realizadores cerebrais estão a desaparecer. E o que dizer dos neófitos que pegam em câmeras digitais e filmam a torto e a direito? Nestes, conceitualismo e cerebralismo são bichos de sete cabeças.

08 maio 2011

Momentos sublimes do cinema

Belíssimo plano de Rastros de ódio (The searchers), de John Ford, um monumento da arte do filme do século passado.

Colhidos na memória, dez momentos antológicos do cinema. Há, porque a colheita foi feita sem uma investigação mais apurada, outros momentos que venha considerá-los maiores. Os dez aqui citados são, no entanto, delirantes como ato de criação e da beleza cinematográficas.
1) Quando Kim Novak sai do banheiro já transfigurada em Madeleine, a pedido de James Stewart, é como se uma auréola fosse imposta à imagem da mulher, imagem fascinante, que não parece real. Em seguida os dois se beijam e a câmara passa ao espectador a impressão de estar circulando ao redor dos personagens envolvidos no idílio amoroso. Enquanto ela, a câmara, circula, imagens outras aparecem e desaparecem ao fundo, imagens do lugar onde Madeleine tinha se atirado. Ao ver Kim saindo, feito Madeleine, Stewart, emocionado, chega a chorar. A música, brilhante, de Bernard Herrmann dá o tom adequado e a solenidade auditiva necessária. Um corpo que cai (Vertigo, 1957), de Alfred Hitchcock.
2) Os travellings se sucedem na mansão, a câmara passeia pelos seus longos e intermináveis corredores, como se à procura de um cinema que se faz como um processo de investigação do universo mental. Delphine Seyrig salta na cama imensa, como se fosse um pássaro numa gaiola dourada. Nas imagens, a incursão na mente. Matéria de memória. O ano passado em Marienbad (L'année dernière a Mariebad, 1961), de Alain Resnais. Com roteiro do pai do nouveau Roman, Alain Robbe Grillet.
3) A suspeita do espectador se faz através do ato criador do artista. Inventor de fórmulas, o artista criador procura sugerir ao invés de mostrar explicitamente. Diferentemente de obras em que o recurso fácil ao susto é um dos sustentáculos do choque, nos filmes realmente criativos é muito mais a sugestão que encanta e faz suspense. É o ato criador do cineasta a se utilizar dos recursos da linguagem fílmica, dos seus elementos constitutivos. Assim, Cary Grant, numa angulação expressionista, sobe a escada, uma grande escada meio circular, com um copo de leite na mão. O espectador suspeita que o leite está envenenado e ele vai matar a mulher. O realizador colocou uma lâmpada dentro do copo para fazê-lo mais sugestivo. Suspeita (Suspicion, 1941), de Alfred Hitchcock.
4) O início lembra um clássico antigo do cinema: A turba, de King Vidor. O enquadramento dá idéia do formigamento de um escritório burocrático estadunidense, com suas mesas e máquinas de escrever e muitos funcionários trabalhando. Um simples enquadramento capaz de sugerir um escaldante depósito de homens e máquinas. Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960) de Billy Wilder.
5) No final do Cidadão Kane, morto Charles, o magnata da imprensa, suas coisas, no Palácio de Xanadu, são empilhadas para serem transferidas. Caixotes e mais caixotes, e o cineasta faz com que a câmara execute um travelling para mostrar ao espectador a imensidão da herança de Kane. Mas, ao executar o travelling, a impressão que se tem dos caixotes é a de vários arranha-céus de uma grande metrópole. O efeito é perfeito. E a câmara, sempre em travelling, termina por parar numa imensa lareira onde o fogo começa a consumir o trenó de Charles menino no qual está inscrita a tão procurada palavra-enigma de Rosebud.Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles.
6) No princípio, apresentando-se como mágico, com cartola e tudo, Welles diz que tudo que falar durante uma hora é verdade, mas a partir desta, o que contar a partir de uma hora de projeção de filme, é mentira. Assim, tem-se o relato sobre o falsificador Elmyr De Hory. E depois a história de uma musa que inspirou Picasso. A história sobre De Hory é verdadeira. A história da musa é pura mentira. Brilhante exercício de cinema, um ensaio sobre a faculdade do artista em deturpar a arte e a realidade. E, principalmente, sobre a arte da falsificação.Verdades e mentiras (F for fake, 1975), de Orson Welles.
7) Quando Manoel mata o fazendeiro latifundiário por causa da exploração, o tom retumbante toma conta do filme com um ritmo de cavalgada que lembra John Ford. Os capangas do fazendeiro investem contra a modesta morada de Manoel, matando sua mãe. O clima é alucinante, com ritmo rápido, envolvente. O cinema se faz pleno. Deus e o Diabo na terra do Sol, 1964, de Glauber Rocha.
8) Carl Theodor Dreyer, cineasta dinamarquês, faz um cinema que tem um extraordinário poder de convencimento. O poder de sua arte leva a um poder de verdade nas suas imagens em movimento. A sequência é de uma obra-prima de sua filmografia. O cenário, de um branco que resplandece, comporta o caixão de uma mulher que, morta quando dava à luz, é o centro das atenções. De repente, pela força do verbo de um irmão, que pede à Deus que a faça retornar à vida, ela acorda do sono profundo e ressuscita. Assim dita, não se pode ter uma idéia nem de longe da beleza deste momento, um dos maiores do cinema em todos os tempos. A palavra (Ordet, 1941), de Carl T. Dreyer.
9) James Cagney é um executivo da Coca-Cola na Berlim de 1961, empresário carreirista e sempre disposto a agradar o chefe nos Estados Unidos. Este lhe pede o favor de hospedar a sua filha (Pámela Tiffin) que está a fazer um tour pela Europa e pretende ficar um tempo na Alemanha. A mulher, porém, vem a se apaixonar por um berlinense oriental, comunista, o que contraria e deixa preocupado Cagney. É o ponto de virada dessa comédia genial. O final, no entanto, é o que interessa aqui. No aeroporto, com a resolução do conflito, Cagney convida a sua família para mostrar uma máquina que tira as cocas-colas em lata. O último plano o apresenta a tirar, um a um (daí o título original: one, two, three), os refrigerantes, mas, de repente, toma um susto quando verifica que veio um errado e de empresa concorrente: Crush. Cupido não tem bandeira(One, two, three, 1961), de Billy Wilder.
10) Ethan (John Wayne), soldado sulista derrotado na Guerra de Secessão, parte, com um parente meio índio (Jeffrey Hunter) para encontrar a sobrinha raptada pelos índios após ataque que destruiu a casa de seus pais. A perseguição demora mais de dez anos e quando, finalmente ela é encontrada, ele a traz de volta para seus familiares. Todos entram, felizes, em casa. A câmera, dentro desta, observa Ethan na porta que recua, sem entrar, e sai a andar numa reflexão acerca da solidão extrema do herói cumprida a sua missão.Rastros de ódio (The seachers, 1956), de John Ford.