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19 março 2006

Ainda a cinefilia


O cinema como construtor de um amplo imaginário, como aconteceu no seu período de ouro (1912/1962, segundo Peter Bogdanovich e Orson Welles), tipifica o que se chama de cinefilia, cuja derradeira geração se deu em torno daqueles que nasceram em nos anos 50. Atualmente, há pessoas que se dedicam a ver filmes, e estudar, reflexionar sobre a natureza do cinema. Mas não há um amplo espectro. Existem, por assim dizer, bolsões de amantes do cinema, mas a cinefilia, como a concebida antigamente, desapareceu. Há um artigo de Paulo Emílio Salles Gomes, O cinema no século, publicado no Jornal do Brasil (27 de dezembro de 1970), que diz exatamente isso. Tenho o escrito na sua republicação na revista Filme/Cultura número 45 de março de 1985.
De "um filme por dia" se passou, na contemporaneidade, às megas mostras, como a de São Paulo, que não permite pausa ao seu frequentador, obrigado a passar o dia dentro de uma sala de exibição. A síndrome pode ser vista como uma compulsão para se ver tudo, compulsão esta imposta pelos produtores culturais e organizadores de mostras. Nenhuma crítica, no entanto, bem entendido, àqueles que organizam os grandes festivais de cinema. Apenas a constatação.

A morte da cinefilia


Quando perguntado, em Tiradentes (cidade histórica de Minas Gerais na qual se realizou em janeiro passado uma mostra de cinema), durante o debate da crítica, por que tinha parado de escrever, José Carlos Avellar (que escrevia quase todos os dias no 'Jornal do Brasil' da boa época), respondeu: porque o cinema acabou. A cinefilia não existe mais, disse ele. Ela começou por volta de 1910, com a implantação das salas fixas nas cidades (antes os cinemas eram restritos às feiras, e ambulantes, salvo algumas exceções) e fez uma geração que vai até 1930, considerando que a geração se forma num período de 20 anos. A segunda geração de cinéfilos começa em 1930, e vai até 1950, quando tem início a terceira e última geração. Depois desta, não existe outra. O aparecimento da televisão, de outras formas de laser, do automóvel, a maior liberdade de locomoção, entre outros fatores, determinaram, segundo Avellar, a morte da cinefilia.

Por cinefilia, ele compreende que o cinema funcionou como a principal fonte de diversão e de laser para uma imensa platéia fiel e habitual. Realmente, os números de salas foram drasticamente reduzidos, e para se ter, por exemplo, a mesma quantidade de casas de espetáculos cinematográficos que se tinha em 1958, seria necessário que Salvador possuísse em torno de 150. A maioria das pessoas ia aos cinemas diariamente. Penso em meus parentes, tios e primos mais velhos, que iam todas as noites às soirées. Quem freqüenta cinema atualmente é o jovem, o adolescente, evidentemente com as exceções de praxe. O adulto dificilmente vai a uma sala de exibição.

A palestra de José Carlos Avellar - com a qual concordo plenamente e é um assunto que já vinha pensando há tempos - deixou estupefato o público numeroso que se encontrava na platéia. E como se explica a existência de tantos festivais, de sites que se dedicam ao cinema, tanta badalação em cima do Oscar, etc? São manifestações localizadas e pontuais, respondeu Avellar. Não diz respeito ao universo geral das pessoas. Os eventos, por exemplo, são destinados a uma elite, assim como é uma elite que freqüenta os chamados cinemas de arte.

A dolarização, perversa, também contribuiu. Quando ia à Baixa de Sapateiros, ao Jandaia, ao Aliança, ao Pax, cinemas que passavam programas duplos ou triplos, via o povão nas salas exibidoras. Os ingressos eram baratíssimos.

É um assunto que pretendo explorar, este da morte da cinefilia. As pessoas, antigamente, liam ávidamente revistas como Cinelandia e Filmelandia, que falavam dos filmes lançados e da vida dos atores. O interesse pelos astros e estrelas foi substituído, hoje, pelas celebridades das novelas da Globo e cantores, etc. Tinha um álbum de figurinhas, Ídolos da Tela, que foi um sucesso, um verdadeiro fenômeno.

Peter Bogdanovich, crítico renomado americano e também cineasta (Esta pequena é uma parada, A última sessão de cinema, entre outros), conta que Orson Welles lhe disse que o cinema morreu em 1962 e que o opus final foi O homem que matou o facínora (The man who shoot Liberty Valance), de John Ford. Surpreendido com o dito, Welles lhe acalmou, afirmando que a idade de ouro do cinema se localizou entre 1912/1962, sendo, portanto, sua fase áurea, maior do que a da Renascença que, segundo o realizador de ‘Cidadão Kane’, ficou em menos de 40 anos enquanto a do cinema alcançou 50.

Muita gente fica assombrada quando se diz que o grande cinema morreu. Na verdade, o cinema enquanto cinefilia, conforme analisou bem José Carlos Avellar, e empregando um termo corrente, já era. O que existe, hoje, é uma produção audiovisual relevante, mas localizada em focos isolados, sem a universalidade da cinefilia. O cinema, em sua idade de ouro, atingiu gregos e troianos, ricos, pobres e remediados. Gustavo Dahl, ano passado, no seminário internacional que aqui se realizou, disse que antigamente o cinema era um meio de comunicação de massa, mas, na sociedade contemporânea, é um divertimento de elite. Mas e a profusão de cinemas alternativos, que são chamados, erroneamente, de ‘cinemas de arte’? Apenas ratificam a morte da cinefilia, pois não passam de focos localizados.

O ir ao cinema hoje, já o disse, aqui, várias vezes, é muito diferente do ir ao cinema de antigamente. Vai-se ao cinema na maldita contemporaneidade como uma etapa do processo de shoppear. Não existe mais uma preparação para ir ao cinema, uma programação explícita ou tácita. Antes, o cinéfilo (que não existe mais) pensava: segunda vou ao Guarany ver Da terra nascem os homens, logo cedo, na primeira sessão, às 14 horas. Atualmente, vai-se, simplesmente, aos shoppings, podendo-se, ou não,
pegar um cineminha.