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25 junho 2014

De Orson Welles

Lutei para escapar da infância o mais cedo possível.
E assim que consegui, voltei correndo pra ela.
Orson Welles

1.) Este é Orson Welles (This is Orson Welles, 1992), de Peter Bogdanovich, apesar de publicado nos anos 90, somente há alguns anos veio ter tradução brasileira sob o patrocínio da Editora Globo. Bogadanovich, crítico e cineasta (A última sessão do cinema, Esta pequena é uma parada...), deu o trabalho por concluído depois de quase uma década entrevistando o autor de Cidadão Kane. O livro, revelador da personalidade wellesiana, mostra os tropeços que o cineasta passou para conseguir fazer poucos filmes, sendo sempre boicotado pelos produtores de Hollywod, exceção se faça a Cidadão Kane, primeiro filme, ao qual lhe foi dada total liberdade de ação (inclusive o direito ao corte final). Welles, que fazia teatro e rádio em Nova Yokr, chamado pela R.K.O, não tinha, quando fez Citizen Kane, experiência cinematográfica, mas aprendeu depressa, e, por gênio, conseguiu, assim na largada, faz a obra mais considerada da história do cinema (desbancada por Um corpo que cai/Vertigo, de Hitchcock, mas, mesmo assim, permaneceu no segundo lugar na lista dos melhores filmes de todos os tempos. Conta Welles a Bogdanovich que, chegando a Hollywood, viu, numa semana, cinquenta vez No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford. E diz que seu aprendizado foi com este filme, numa investigação rigorosa de sua estrutura audiovisual. Quem muito o ajudou na composição das cenas, criando com a luz, foi o experiente diretor de fotografia Gregg Toland.

2.) Marcel Martin, ensaísta francês de cinema, costumava dizer que exitem duas espécies de cineastas: os cerebrais e os intuitivos. Os primeiros colocam a fábula (ou a história) apenas como pretextos da mise-en-scène, e, neste caso, a narrativa, a estrutura audiovisual do filme, tem preponderância sobre o que se está a dizer. O que interessa, para os cerebrais, é o como dizer. Já os intuitivos se preocupam mais com o aspecto figurativo, fugindo a qualquer presença o regente da mise-en-scène (Charles Chaplin, Luis Buñuel...). Orson Welles é um realizador que se pode considerar bastante cerebral, pois a força de sua narrativa é imensa e transbordante. Aprecio imensamente Um corpo que cai, já o disse em coluna anterior, mas considero ainda Cidadão Kane o maior filme de todos os tempos. Existia um cinema antes de Kane e outro depois de Kane. Welles estabeleceu um corte longetudinal na história do cinema com seu filme de estréia aos 25 anos sem antes ter tido, como já disse, qualquer experiência cinematográfica profissional.

3.) Welles gostava muito de trabalhar no rádio e Kane tem muita influência desse veículo. Cidadão Kane rasgou a gramática tradicional de um modelo narrativo clássico que tinha chegado a uma perfeição absoluta em 1939. A variação dos pontos de vistas, por exemplo, uma mesma história vista por diversos ângulos, a utlização da profundidade de campo, a montagem superlativa, entre outros fatores, proporcionaram ao filme um reconhecimento mundial. Mas a obra de estreia de Welles o perseguiu pela vida toda. Seu segundo filme para a R.K.O, Soberba (The magnificent Ambersons, 1942) não obteve mais a liberdade de criação do anterior, e a empresa cortou o filme à revelia de seu autor, não respeitando as anotações que fizera para a montagem antes de viajar para o Rio de Janeiro para fazer o frustrado It's all true. E ainda Kane: todos os atores pertenciam  ao Mercury Theatre, companhia de Welles, e estavam participando de uma película pela primeira vez: Joseph Cotten, Agnes Moorehead, Everett Slolane, Ray Collins, entre outros. A leitura do livro citado de Peter Bogdanovich esclarece muitos pontos sobre o processo de criação cinematográfica não apenas de Kane, mas também de outros filmes de Orson Welles.

4.) Traduzindo o nome de Orson Welles para o português, tem-se como resultado um estranho Oufilho Poços, Morreu em 1985 e nasceu apenas 70 anos antes, em 1915. Welles no fim da vida, para poder comer e beber num dos melhores restaurantes de Los Angeles, La Maison, com a grana curta, fazia comerciais de vinhos que eram projetados numa cadeira de hotéis. Decadente, muito obeso (não passava por uma porta razoavelmente larga, segundo Bogdanovich) passou os últimos anos jantando todas as noites no referido restaurante das 8 da noite até as quatro da manhã. Oito horas, portando, durava a sua refeição, que era sempre acompanhava de várias garrafas do melhor vinho. Para evitar os importuno, tinha, a seu lado, uma feroz cadelinha, que latia e ia mordendo logo quem se aproximasse, exceto quando Welles dava um sinal de paz.

5.) Segundo o historiador francês Georges Sadoul, autor de nove volumes sobre a História do Cinema Mundial, nos filmes de Orson Welles o que se pode observar é o retrato do artista por ele mesmo. Porque um autor completo, com constantes temáticas e estilísticas, Orson Welles projeta em seus filmes a sua esfuziante personalidade. “Meu nome é Orson Welles!”, diz no final de alguns de seus filmes, continuando a dizer os créditos oralmente. Pela primeira vez no cinema, em Cidadão Kane, não há créditos iniciais, que ficam reservados para o final. Gênio, inteligência privilegiada, e acima da média, conta-se que aos 8 anos escreveu, no colégio, um manual indicativo de como se pode representar bem William Shakespearte. Sabia de cor as principais tragédias e comédias do bardo.

6.) O bandido da luz vermelha (1968), clássico brasileiro de Rogério Sganzerla, tem muito influência de Cidadão Kane e de todo o cinema de Welles. Aliás, Sganzerla se mostrou um apaixonado pelo cineasta não apenas nas suas criações através das imagens em movimento, mas nas suas pesquisas, na visão intermitente e investigativa de seus filmes, e, por fim na feitura de documentários sobre o gênio wellesiano: Nem tudo é verdade. Em O bandido da luz vermelha, o tom da narrativa é bem radiofônico: dois locutores (um homem e uma mulher) , de uma emissora popular classe z, narram as peripécias do bandido. Há também neste filme extraordinário do cinema brasileiro (estou, inclusive, tentado a refazer minha lista de favoritos nacionais para o colocar no topo) forte influência do cinema de Jean-Luc Godard. Glauber também bebeu na fonte wellesiana: a Biografia de um aventureiro de Terra em transe é Welles.

Quando de sua vinda ao Rio de Janeiro em 1942, para filmar It’s all true (Tudo é verdade), viajou pelo norte e nordeste do Brasil, passando uns dias em Salvador. Nesta cidade, fez uma conferência concorrida no Instituto Histórico e Geográfico, hospedou-se no Palace Hotel da rua Chile e passeou muito pelas praias ermas (naquela época!) de Itapoá.  Contou-me Rogério Sganzerla, no seu período baiano, que um velho pescador de Itapoá, assombrando-se diante da presença em carne e osso de Orson Welles, reconhecendo-lhe, balbuciou, estupefato: “Orson Welles!!!” Difícil acreditar como um pescador de uma praia deserta poderia reconhecer o autor de The magnificent Ambersons. “Mas tudo é verdade!”


"O escorpião queria atravessar o rio, por isso pediu a uma rã para levá-lo. 'Não', disse a rã. 'Eu não. Se eu deixar você subir nas minhas costas, você pode me ferroar, e o ferrão do escorpião mata.' 'Ora, perguntou o escorpião, 'cadê a lógica disso?' (o escorpião sempre tenta ser lógico). 'Se eu der uma ferroada em você, você morre e eu me afogo' Com isso a rã se convenceu e deixou que o escorpião montasse em suas costas. Mas, bem no meio do rio, a rã sentiu uma dor horrível e percebeu que, no fim das contas, tinha levado uma 'ferroada' de escorpião. 'Lógica!', berrou a rã agonizante, que começava a afundar levando o escorpião consigo. 'Não tem lógica nenhuma!' 'Eu sei', disse o escorpião, mas não posso evitar - é o meu caráter. Um brinde ao caráter..."
-Orson Welles, Grilhões do passado (1955)

Filmografia: Hearts of Age (curta,1934), Too Much Johnson (curta, 1938), Cidadão Kane (Citizen Kane,1941) Tanks (1942) Soberba (The Magnificent Ambersons,1942) O Estrangeiro (The Stranger,1946) A Dama de Shangai (The Lady from Shanghai ,1947) Macbeth (1948), Othello (1952), Grilhões do passado (Mr. Arkadin, 1955), A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), O Processo (The Trial, 1962), Chimes at Midnight (1965), Uma História Imortal (The Immortal Story, 1968), Verdades e Mentiras (F for Fake, 1974), The Orson Welles Show/ Filmoing Othello (1979).



24 junho 2014

De pontos de vista da narrativa no cinema

O ponto de vista adotado pela narrativa fílmica é sempre – e simultaneamente – objetivo e subjetivo, nunca redutível a uma única perspectiva por causa da dupla e concomitante ação realista e irrealista do cinema. O que não exclui, em todo caso, a hipótese de a narrativa abraçar uma ótica em detrimento de outra em relação ao desenvolvimento global da narração. Um filme, portanto, nunca pode narrar um acontecimento inteiramente visto de dentro – a coisa que o romance pode fazer, mas tem a necessidade de recorrer a um ângulo de observação que permita unificar a matéria representada a fim de não gerar confusões de perspectiva. No filme-ensaio (vide Meu tio da América/Mon oncle d’Amerique, 1979), do imenso Alain Resnais, esta ótica se identifica com a do autor que seleciona e ajuíza. No filme de ficção, esta ótica segue o olhar de um dos protagonistas, procurando, no entanto, não se confundir completamente com ele. A perspectiva da câmera é diferente da do olho humano e, como demonstram inúmeros filmes, a lente pode ocupar o olhar de um gato (Um dia, um gato, filme tcheco no qual, em alguns momentos, tem-se a perspectiva do olhar do gato que vê as pessoas de uma localidade segundo o seu caráter, dando-lhes as cores correspondentes). O objeto focalizado também pode ser totalmente deformado – e, nesse particular, o expressionismo alemão é farto de exemplos – O Gabinete do Dr.Caligari, 1919, de Robert Wiene, Nosferatu, o vampiro, 1922, de Friedrich W. Murnau etc. Em Cidadão Kane, 1941, de Orson Welles, filme com forte influência expressionista, o cineasta usa tetos baixos para dar uma dimensão insólita aos personagens e, na sequência do palácio de Xanadu, Susan Alexander, a segunda mulher de Kane, é vista em pequena silhueta diante de uma gigantesca lareira. Dentro da mesma obra, um jogo tipo quebra-cabeça – um puzzle que, no final das contas, é a própria chave para a compreensão da obra – tem suas peças em dimensão enorme. Welles, nestes casos, deforma os objetos com a lente com um propósito estético contextual.

Henri Angel, ensaísta francês, acha que o ponto de vista de um filme deve ser sempre o que é adotado pelo cineasta, quer este decida ver o mundo através dos olhos de um dos protagonistas, quer decida manter-se o mais possível exterior à ação narrada. Um caso de identificação autor-personagem é representado por O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964), de Antonioni, onde a realidade é vista pela câmera não como efetivamente é, mas como se apresenta aos olhos do protagonista. Há uma experiência radical feita em 1947: A dama do lago (Lady in the lake) no qual o personagem principal não aparece, substituído pela câmera subjetiva. O que se vê na tela é o que o personagem está a ver. Mas a experiência não deu certa, e o público ficou confuso. A este processo, chama-se câmera subjetiva, que é muito usado, mas com alternância do objetivo e do subjetivo.

Outro caso de identificação autor-personagem está representado em Repulsa ao sexo (Repulsion, 65), de Roman Polanski, onde os pesadelos da protagonista (Catherine Deneuve), apresentados como objetivos, não são mais que o fruto da personagem psicopata, uma manicure sexualmente reprimida que se isola em seu apartamento e vai enlouquecendo. Por falar em Polanski, vale ressaltar que seu derradeiro filme, O escritor fantasma (The ghost writer), tudo indica que vai constar da lista dos melhores filmes do ano em curso, cuja publicação, aqui, nesta coluna, será feita nas próximas semanas.

No pólo oposto situam-se, pela sua objetividade extrema, filmes como Nashville, de Altman, uma crônica de cinco dias da vida de uma cidade no Tennessee, Nashville, na hora do show business e de uma campanha eleitoral que serve como um testemunho à beira do desespero sobre os Estados Unidos contemporâneos. Também Lancelot, de Robert Bresson, e Nicht Versohnt, 65, de Jean-Marie Straub, obras centradas numa radical objetividade e construídas de modo a esvaziar qualquer identificação personagem-espectador e, também, redutíveis ao ponto de vista exclusivo do realizador onisciente.

Existem também filmes nos quais os pontos de vista são contraditórios ou contrastantes entre si. Rashomon, 1950, de Akira Kurosawa, filme que projetou o cinema japonês no mercado internacional, é um exemplo bem marcante. A fábula se passa no século XV numa floresta perto de Tóquio, quando um bandido afirma que matou um samurai depois de violentar a mulher dele. A mulher, porém, diz que foi ela quem matou seu próprio marido. Surge, então, a alma do morto que conta a todos, estupefatos, como se suicidou. Mas um açougueiro que a tudo ouvia, dá uma quarta versão. Em Rashomon, portanto, são fornecidos três pontos de vista diferentes do mesmo fato, todos igualmente espectáveis, até emergir deles um quarto que é o verdadeiro. Ou não?

Há o caso de a ação ser contada por um morto que relata do além a sua história trágica – não existem nem realizador oculto nem personagem visível. É o que acontece em Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, no qual o encenador protagonista conta da sua situação de defunto, o como e porque de sua morte devida à atriz famosa da qual tinha sido hóspede. A ex-estrela é Glória Swanson que, vivendo esquecida num suntuoso palácio antiquado de Hollywood, acompanhada de seu fiel criado (Erich von Stroheim), contrata um roteirista fracassado que se torna seu amante e que ela mata quando ele se recusa a continuar a relação.


22 junho 2014

Ritmo dissonante em Glauber Rocha

Ana Maria Magalhães e Tarcísio Meira em A idade da terra, de Glauber Rocha
A linguagem cinematográfica nos filmes de Glauber Rocha não é uniforme, sofrendo variações estilísticas bem acentuadas, principalmente em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), sem falar no puzzle que é o seu canto de cisne, A idade da terra (1980). Se, antes de Glauber, o cinema brasileiro segue os cânones da narrativa griffithiana (de David Wark Griffith, cineasta americano que faz O Nascimento de uma Nação, em 1914, e Intolerância, em 1916, e é considerado o pai da narrativa cinematográfica), a registrar na sua história poucas ousadias formais – exceção se faça a Limite, 1930, de Mário Peixoto, é a partir dele que são introduzidos conceitos de Sergei Eisenstein no corpus do filme. Em Barravento (1959/1962), ainda que timidamente, a presença do soviético se faz sentir, assim como uma procura de distanciamento dos moldes praticados por Griffith – a narrativa de progressão dramática in crescendo, com a apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace.

Mas é somente a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra que efetua um corte longitudinal na história do cinema brasileiro, que Glauber Rocha instaura um certo paradoxo estético num filme que conjuga várias influências, desde a tragédia grega (o cego Júlio como fio condutor), passando pelo western, na exploração dos grandes espaços, e Buñuel, na seqüência do assassinato do Beato Sebastião por Rosa, até chegar a Eisenstein, na matança dos beatos em Monte Santo (influenciada pela escadaria de Odessa de O Encouraçado Potemkin, 1925) e a Kurosawa, com os rodopios dissonantes de Corisco, entre outros.

O ritmo em Deus e o Diabo na Terra do Sol  não segue um mesmo diapasão. Ora vem com cortes rápidos (quando Manuel esfaqueia o fazendeiro ou com os cavalos correndo na invasão da casa do vaqueiro que acaba por matar a sua mãe) num espírito quase fordiano, ora vem com tomadas longas (a segunda parte no encontro de Manuel com Corisco). Glauber Rocha, neste filme extraordinário, por mostrar uma enxurrada de influências, revela que sabe reprocessá-las, dando a elas um estilo, o estilo glauberiano, que seria copiado ad infinitum pelas gerações posteriores sem, contudo, nunca igualá-lo.

Este ritmo paradoxal de Deus e o Diabo na Terra do Sol não seria repetido em Terra em Transe, que possui uma estrutura narrativa de cortes ligeiros, montagem sincopada, e tomadas rápidas. O cineasta opta por este ritmo para adequá-lo melhor à sua temática. Um poeta que agoniza enquanto relembra fatos pretéritos. O filme se passa todo neste instante de agonia e as imagens surgem, portanto, dispersas, não enfeixadas dentro de uma narrativa corrente. Neste caso, é o pensamento tumultuado do personagem interpretado por Jardel Filho que se situa como o próprio móvel do filme. A Biografia de um Aventureiro, onde apresenta a trajetória do político vivido por Paulo Autran, é extremamente wellesiana  até mesmo por seu tom radiofônico. O processo do pensamento agônico pode lembrar Alain Resnais.

Em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), Glauber Rocha se apóia numa estrutura de narração que é, poder-se-ia dizer, antípoda da de Terra em Transe. Nela, uma espécie de suite de Deus e o Diabo na Terra do Sol, há uma radicalização estilística já experimentada em Cancer: a dos planos-sequências – tomadas longas sem cortes. Em O Dragão..., todo filmado na aridez da paisagem de Milagres, no interior baiano, mais conhecido no exterior pelo nome de seu personagem principal, Antonio das Mortes (sempre interpretado por Maurício do Valle), a utilização do plano-sequência chega às raias da exasperação. Um bom exemplo é a do enterro de Jofre Soares, quando a câmera acompanha uma ladainha e segue, em travelling, o trajeto do funeral. Há, no entanto, na abertura, uma invenção fascinante: Antonio das Mortes surge do lado direito da tela e passa por ela atirando com seu rifle até desaparecer do lado esquerdo. De repente, com o cenário vazio de pessoas, começam a cair vários cangaceiros, que foram atingidos fora do enquadramento. Genial, um verdadeiro cinema de invenção.

As variações estilísticas encontradas na filmografia glauberiana significariam uma dispersão autoral? A resposta é negativa no sentido de que o estilo de Glauber Rocha, particularíssimo, admite a confluência de ritmos dessemelhantes na composição de sua mise-en-scène. Ora o corte rápido, como em Terra em Transe, ora a ausência deste como em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Neste caso, não se estaria diante de duas mises-en-scènes? Sim, mas duas que se revelam variações sobre um mesmo diapasão autoral, ainda que com timings diversos.

Glauber Rocha não é nem um estilista nem um artesão, mas um autor de filmes, com universo ficcional próprio e estilo particular. O cineasta estilista não tem uma visão de mundo, embora possua um estilo característico que o faz reconhecível de filme para filme, enquanto o artesão não tem nem uma coisa nem outra, mas sabe articular uma narrativa, tem carpintaria, artesania. Glauber é bastante pessoal na sua visão que dá do mundo através das imagens em movimento. Em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro procura uma transfer do ritmo da literatura de cordel para imprimi-la no cinema. A sensação que se tem, vendo este filme, é a sensação de quem lê uma história cordelista, com a diferença de que a transferência de uma linguagem a outra se processa com extrema felicidade. Da palavra escrita, da sintaxe verbal, passa-se à sintaxe cinematográfica que busca aquela.

O cinema glauberiano é um cinema de ritmo, portanto. Barroco, tem o sentido da linguagem, a compreensão de estar criando por meio de uma sintaxe própria, a unir esta à morfologia característica do específico cinematográfico. Um plano é morfológico, mas, quando este plano entra em contato com outro, deixa de sê-lo para dar lugar à sintaxe cinematográfica. Glauber, nesse sentido, é um cineasta que louva o verbo cinematográfico. Poucos os autores no cinema nacional, compreendendo-os como tais, como dizia François Truffaut, que possuem uma visão do mundo e um estilo de fazer cinema. Glauber Rocha encaixa-se perfeitamente na definição do severo crítico do Cahiers du Cinema.