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08 junho 2014

Olhando para o bico de meu sapato

Com a decadência dos suplementos culturais no jornalismo brasileiro, a crítica de arte sofreu severo revés, e, aí, incluindo as artes plásticas, cinema, teatro, literatura, e ‘et caterva’. Já se foi o tempo no qual os jornais dedicavam cadernos imensos, verdadeiros calhamaços, mas calhamaços agradáveis, dentro dos quais se encontravam, em letras miúdas, ensaios e artigos brilhantes que o leitor, feita a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar ao lixo as ‘gazetas’ do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas.

O jornalismo cultural foi definhando com o passar do tempo, mas, ainda nos anos 80, sem o vigor das outras décadas, ainda se podia ver, aqui e ali, reflexões críticas. Com o avanço tecnológico e a instauração do império do audiovisual , e para ficar, apenas, nos limites daquilo que um dia se chamou de crítica cinematográfica, esta se metamorfoseou em resenhas e comentários, deixando de se constituir em ensaios ou, mesmo, críticas na expressão do vocábulo. Há muito tempo, hoje, para se ver imagens – mas ver sem contemplar, e, pouco, muito pouco, para ler. As humanidades estão mortas. Tudo, nesta contemporaneidade tão deplorável, está dirigido para o pragmatismo, para o imediato, para o consumismo desenfreado e doentio.

A crítica de cinema praticamente desapareceu da imprensa escrita, e, em seu lugar, estão as resenhas, que ‘orientam’ em função do consumo e sempre acopladas ao mercado, à programação do circuito comercial. Os estudos mais sérios sobre o cinema se encontram nas universidades, mas perderam, com o jargão acadêmico, o prazer da leitura que, antes, proporcionavam críticos como Walter da Silveira, Paulo Emílio Sales Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Vianna, entre muitos outros. O cinéfilo fica então na condição de um ‘sem-crítica’, pois, geralmente, não tem acesso às elucubrações teóricas fabricadas nos desvãos da academia e, abandonado pela crítica, amarga as resenhas insossas.

Acontece que os críticos de cinema mais antigos eram homens cultos, preparados, que sabiam escrever. Novamente se volta à questão de que as humanidades estão mortas, pois nas escolas os professores generalistas, de ampla cultura, ‘causers’, deram lugar aos pragmáticos e aos especialistas. Uma aula de Direito há algumas décadas atrás era uma aula de filosofia, de história, acionada por um mestre que dominava a oratória. Nos dias atuais, que viceja no pântano contemporâneo, existem os ‘técnicos’ em Direito, especialistas, preocupados com este tão pestilento e ameaçador ‘mercado’, que virou o Deus da pós-modernidade inculta.

A sociedade de consumo determina a degenerescência do saber, promovendo a apatia genuflexória, o entusiasmo fogo-de-palha, os arruídos do vácuo. A ver tudo isso, a melhor opção talvez seja, como a de um personagem de Luis Buñuel, passar a maior parte do tempo a olhar o bico de seu sapato. Vai-se a um cinema como se vai a um ‘fast food’, e a sala exibidora, voltando, mais uma vez, ao assunto, virou mesmo um ‘fast food’. E as livrarias, ‘butiques’ mal assanhadas e mal ajambradas, de livros capengas que mistificam o saber na tentativa de uma frustrada e enganosa auto-ajuda. O politicamente correto ceifa o humor e restringe a liberdade de expressão, condicionando os seres a uma postura ‘certinha’ e desinteressante. E aqueles que pensam estar à vanguarda não passam de modernosos e vanguardeiros de ocasião, desconhecendo que a grande revolução estética nas artes se deu na década de 20 com uma reciclagem na de 60. A partir dos anos 80, com a ascensão dos ‘yuppies’, a vinda catastrófica do neoliberalismo, e a instalação de um ‘cientificismo’ desvirtuado, o homem ficou à míngua, ao léu e, mesmo, poder-se-ia dizer, ao ‘deus-dará’.

Sobre ser o crítico de cinema um intérprete privilegiado da obra cinematográfica, na suposição de ter um repertório fílmico capaz de capacitá-lo como exegeta, não significa, com isso, que proceda, na sua análise, de maneira arrogante, impositiva e pedante. Mas muito pelo contrário: a verdadeira crítica deve ser um condutio para evidenciar ao leitor as valências ocultas de um filme. O crítico deve ser um intérprete e dar, nos seus escritos, a sua impressão sustentada por um embasamento teórico.
                                  
Existem várias espécies de críticos: o ensaísta, o crítico, o comentarista e o resenhista. Se, em outros tempos, o crítico de um jornal tinha uma titularidade no seu veículo, nos dias que correm, no entanto,  todo mundo se acha no direito de ser crítico de cinema, assim como todo brasileiro se considera um técnico de futebol. O vocábulo crítico caiu numa geléia geral de tal modo foi degradado e vulgarizado.

Quando me perguntam o que é a crítica cinematográfica, gosto de responder: a rigor, a função da crítica de cinema é ajudar o espectador a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento da sua linguagem, de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que não é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios. É necessário que o aspirante a crítico construa primeiro um repertório para depois se aventurar na análise fílmica. A crítica é a arte da paciência.

Quando se faz uma crítica a um filme estrangeiro ou mesmo a um brasileiro, tomando o olhar de um crítico que exerce a sua função na Bahia, a exegese, quando depreciativa, cai na vala comum do esquecimento. Mas quando se trata de filme baiano, tudo se modifica, considerando que o crítico conhece os realizadores da província e, de hábito, um comentário, mesmo que fundamentado e diplomático, é visto como ofensa ou tentativa de denegrir o cineasta. Surge, portanto, para o crítico, a angústia de criticar o cinema baiano, a aflição de, constatando a ausência de inspiração desse ou daquele realizador, emitir uma opinião desfavorável. E não se pode fechar os olhos para as dificuldades imensas que é se fazer cinema na Bahia. A angústia crítica, que interfere, inclusive, no processo neurovegetativo do crítico, é avassaladora. Devo confessar que, quando vou ver um filme baiano, entro sempre na sala de projeção querendo gostar da obra anunciada. Por outro lado, muitas vezes, o crítico, para não ferir suscetibilidades - e aqui não se trata de covardia ou omissão, mas compreensão de um panorama de mendicância, confere à sua imaginação as asas da ficção, dando ao texto um tom mitológico e até parnasiano.

P.S: Já comentei aqui por várias vezes que a incorporação da estética do vídeo-clip à narrativa cinematográfica prejudica sobremaneira a sua perfeita fruição, dando ao espetáculo um verniz de superficialidade. Nada contra o vídeo-clip em si, que pode ser muito bom (Thriller, com Michael Jackson, entre tantos!), mas é intolerável que seja incorporado ao discurso cinematográfico. Capitães de areia, de Cecília Amado, neta do escritor Jorge Amado, sofre muito dessa pressa narrativa, ainda que bem produzido, bem alinhavado. E se a estética referida investe com força na primeira parte, por outro lado, a injeção de romantismo da segunda tira, ao filme, um corpus estrutural uniforme. Capitães de Areia, o filme, é muito inferior ao livro, sendo, apenas, pálido reflexo deste. Li Capitães de areia na minha adolescência ao lado dos outros livros de Jorge Amado, excelente narrador, criador de tipos interessantes. Amado, com raríssimas exceções, não tem sorte com as adaptações de seus livros. Nelson Pereira dos Santos, sim, ele mesmo, o grão-duque do cinema brasileiro, matou Jubiabá, e desconfigurou Tenda dos milagres. Carlos Diegues fez turismo em Tieta do agreste. Marcel Camus carnavalizou Os pastores da noite. E Cecília Amado ilustrou Capitães de areia em função das expectativas narrativas da contemporaneidade.