Seguidores

19 setembro 2013

40 anos de colunismo

Nestes meados de agosto de 2013, faço exatos 40 anos que escrevo sobre cinema na TRIBUNA DA BAHIA. A lembrança, sobre ser terrível pela constatação de como o tempo passa depressa, faz com que me motive para falar algum coisa nesta longa trajetória de mais de três décadas.

Comecei a ter uma coluna neste prestigioso jornal justamente em meados de agosto de 1973, quando era redator-chefe Sérgio Gomes. Já perto de completar 24, tinha acabado de me formar em Direito pela Universidade Federal da Bahia. A coluna era diária e tinha obrigação de ir aos cinemas todos os dias para comentar os lançamentos da semana. Naquela época, as salas exibidoras se concentravam no Centro Histórico (Liceu, Excelsior, Tamoio, Guarany, Bahia, etc), na Baixa dos Sapateiros (Pax, Aliança, Jandaia...) e nos bairros. Ainda não havia os complexos como Multiplex e Cinemark, mas pouco depois, no Shopping Center Iguatemi, foi inaugurada (creio que em 1975, ano depois de instalado este centro de compras que virou uma verdadeira "mesquita" da sociedade de consumo), uma sala da Art Filmes, o cinema Iguatemi 1 e, poucos anos depois, o Iguatemi 2.

Escrever uma coluna diária requer um certo “pique” e tem suas condicionantes, porque não dá muito tempo do colunista amadurecer o filme visto dada a pressa de entregar logo a coluna ainda com o filme em cartaz. É diferente de se fazer uma análise com mais vagar para publicação numa revista especializada ou mesmo num suplemento cultural.

Antes de estrear na TRIBUNA DA BAHIA, contudo, já tinha tido alguma experiência como colunista. Em 1973, havia um jornal tablóide dominical, Jornal da Cidade, editado por Pedro Muniz, onde tinha uma página com quatro colunas relacionadas com a sétima arte. O Jornal da Cidade, porém, não teve vida longeva, desaparecendo um pouco mais de um ano de sua aparição.

Quando surgiu, em outubro de 1969, a TRIBUNA DA BAHIA, assim como o Jornal da Bahia em 1958 (11 anos antes, mas que parece um tempo maior), provocou uma pequena revolução no panorama jornalístico da província. Com impressão em “off-set” (que significa “fora do lugar”, porque vem do fato da impressão ser indireta, ou seja, a tinta passa por um cilindro intermediário, antes de atingir a superfície), diagramação moderna com fotos grandes e um novo conceito de dispor os textos no espaço, o jornal provocou o vespertino tradicional da cidade a também se modernizar, a alterar seus hábitos tradicionais. Lembro-me que durante a Copa do Mundo de 70, na qual o Brasil conquistou o tricampeonato, o jornal lançou uma bandeira em um de seus cadernos, e a promoção foi de tal êxito que atingiu uma circulação impressionante a deixar em segundo lugar o vespertino habitual da classe média.


A coluna diária permaneceu por mais de duas décadas, até 1995, quando passei a escrever apenas às quintas. O cinema não era mais o mesmo e o meu entusiasmo de cinéfilo tinha se arrefecido. Refiro-me à programação comercial do chamado cinemão. A indústria cultural hollywoodiana tinha se infantilizado com a avalanche de filmes nos quais a predominância estava na ação ininterrupta e nos efeitos especiais. Entre outros fatores, os lançamentos colocados no mercado não motivavam mais uma coluna diária.

Refeito de uma grande crise, o cinema americano descobriu a salvação através de filmes como “Guerra nas estrelas”. Salvação que o levou a se infantilizar tematicamente, considerando que o grande público do cinema de então era constituído, em sua grande maioria, por adolescentes, os chamados "aborrecentes". O "ir ao cinema" de antigamente, tão prazeroso, resultou numa ida ao inferno, principalmente com o advento dos complexos e a emergência de um comportamento selvagem da platéia constituída, esta é a verdade, de débeis mentais.

Acompanhei, de perto, a trajetória da Embrafilme aqui na Bahia, cujo escritório regional fora instalado no mesmo ano em que entrei como colunista. Os filmes brasileiros conseguiam ser exibidos nas salas de primeira linha por causa de uma “lei” da obrigatoriedade do cinema nacional, que destinava quase a metade dos dias de um ano para as películas realizadas no Brasil. A imposição aos exibidores ocasionou uma crise nas bilheterias, porque, muitas vezes, um filme estrangeiro de grande sucesso, era obrigado a ser retirado de cartaz para dar lugar ao cumprimento legal. Os exibidores vieram a descobrir, muitos anos depois, que a famigerada “lei” não era uma Lei, porque não aprovada pelo Congresso Nacional, mas apenas uma resolução ou portaria do Conselho Nacional do Cinema (Concine). Choveram liminares até que uma “canetada” de Collor, em 1990, extinguiu tanto a Embrafilme como o Concine.

Nestes 34 anos, vários editores-chefes se sucederam nesta TRIBUNA DA BAHIA. Depois de Sérgio Gomes, Cid Teixeira, em passagem rápida, João Ubaldo Ribeiro, Paulo Roberto Sampaio, entre outros. E, como comandante-chefe, em todo este período, Walter Pinheiro.

17 setembro 2013

A angústia da influência

Revendo a cópia restaurada de A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles, e, logo depois, Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, percebi a influência do primeiro sobre o segundo, dois grandes filmes da história da sétima arte. Patente, entretanto, que o motel vagabundo de beira de estrada no qual Janet Leigh fica trancafiada em A marca da Maldade se assemelha muito ao motel de Norman Bates em Psicose. E, além do mais, a atriz é a mesma: Janet Leigh. Fica-se com a impressão de que Hitchcock convidou Janet depois que a viu na fita de Welles. Os efeitos de iluminação também são parecidos, concluindo-se que Robert Burks, iluminador de Psycho, pediu emprestada a inspiração de Russell Metty, o diretor de fotografia que trabalhou com Orson Welles.

Assim, vê-se que, no cinema, como também nas outras artes, uma coisa influencia a outra sem, contudo, tirar o mérito de seus artistas. Há o caso da cópia descarada, do plágio indefensável, mas outra história. Os grandes filmes, aqueles chamados divisores de água, exercem influência notória sobre toda uma geração. Nota-se, por exemplo, influência do expressionismo alemão, principalmente de Murnau, em Hitchcock. Basta lembrar a sua inclinação para filmar em câmera alta quando de momentos de tensão (os telhados e os personagens minúsculos em Um Corpo que Cai e Ladrão de Casaca...) ou o telão pintado no fim de Marnie - Confissões de uma Ladra, onde se percebe claramente o porto, o navio, em suma, o fundo do cenário se apresenta como uma pintura, e o cineasta o deixa bem à vista na sua “irrealidade”.

Este cinema de mise-en-scène, que aos poucos está se acabando com o estabelecimento da estética do videoclipe, é que consolidou muitos monstros sagrados da história das imagens em movimento. A sequência da morte de Akim Tamiroff no quarto de hotel onde está drogada, e na cama, Janet Leigh, em A Marca da Maldade só tem uma palavra: é genial. E se esta é genial, o que dizer da sequência - sem cortes - de abertura na fronteira entre o México e os Estados Unidos? É de tirar o fôlego! Um plano-sequência admirável, talvez o mais impactante de toda a história. A revisão dessa obra-prima wellesiana é reconfortante e importante para se poder compreender melhor o cinema contemporâneo. Há necessidade de uma base referencial sem a qual fica impossível o entendimento do cinema que hoje se pratica. Um filme como A Marca da Maldade é um referencial fundamental, assim como Acossado, de Jean-Luc Godard, Cidadão Kane, do mesmo Welles, O ano passado em Marienbad e Hiroshima, mon amour, ambos de Alain Resnais, A morte num beijo, de Robert Aldrich, assim como tantos outros.

O ensaísta e professor americano Harold Bloom em A Angústia da Influência (ou mesmo em O Cânone Ocidental) considera que todo escritor possui o que ele chama de “angústia da influência”, isto é: todo escritor (e se pode, por extensão, também considerar o realizador cinematográfico, assim como o pintor, o músico etc) sempre está influenciado, no seu processo de criação, pelo que se escreveu antes dele ou por aquilo que ele leu e depositou em seu inconsciente as coisas lidas e admiradas. Bloom tem a opinião de que tudo, mas tudo mesmo, que se escreveu no ocidente está relacionado a Hamlet, de William Shakespeare, o grande arquetípico da literatura ocidental. Tudo que se escreveu vem em decorrência dos arquétipos hamletianos.

E o cinema contemporâneo está completamente contaminado pelas influências pretéritas. A época dos grandes inventores de fórmulas já acabou em meados dos anos 60 com O ano passado em Marienbad (1961), do grande Resnais que nos premiou, há alguns poucos anos, com o magnífico e extremamente cinematográfico e inventivo As Ervas Daninhas (Les Herbes Folles),  ou, para alguns, Persona (1966), de Ingmar Bergman

Esgotava a invenção de fórmulas, a partir dos anos 70 – e mesmo em fins dos 60 – os cineastas começaram a revisitar gêneros e a fazer alusões aos filmes do pretérito. Entrou-se, segundo os estudiosos do assunto, na fase do pós-moderno. O fato de Hitchcock ter se inspirado em A Marca da Maldade, de Orson Welles, não se constitui em nenhum demérito para o artista que ele foi. Sofreu da “angústia da influência bloominiana”.

Como gostava de dizer o crítico José Lino Grunewald, "cinema se aprende indo ao cinema". É um processo acumulativo cujo tempo se encarrega de embasar o cinéfilo. Com o advento do DVD ficou, agora, mais fácil se estudar os realizadores, sentir de perto a sua genialidade sem aquela espera de antigamente, quando o que se podia ver ficava ao sabor dos lançamentos nos cinemas.

15 setembro 2013

Tópicos diversos


1) Sempre fico com uma pulga atrás da orelha quando vou ver um remake de um filme famoso. Na verdade, não gosto de remakes, salvo quando feitos pelo próprio realizador, a exemplo de Alfred Hitchcock, que refez O homem que sabia demais (The man who know too much) em meados da década de 50, porque, segundo ele, a primeira versão, de sua fase inglesa, ainda que elogiada pela crítica, poderia ser aperfeiçoada com os recursos de produção do cinema americano. Gus Van Sant, o prestigiado diretor de Elephant, cometeu, na minha opinião, um assassinato fílmico no remake de Psicose (Psycho, 1960), que está a completar, no ano em curso, 50 anos. Mas, li numa revista francesa, que Van Sant realizou Psicose para mostrar a impossibilidade, mesmo copiando plano por plano, como ele fez, de se refazer uma obra do quilate de Psycho.

2) O remake é feito por uma questão cultural, para adaptar os comportamentos e os gestos à cultura contemporânea. Mas, neste ponto, sou irredutível. Certos filmes, por antológicos, não podem ser refeitos e qualquer interferência para uma adaptação soa como uma espécie de anátema. Como pensar, por exemplo, num remake de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles? Como admitir uma releitura de Um corpo que cai (Vertigo), a obra-prima de Hitchcock? Como aceitar uma nova versão de Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais. E de tantos outros momentos antológicos da sétima arte.

3) Mas o pretensioso Rob Marshall foi mexer logo em Oito e meio (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini, a transformá-lo em Nine (Nove), um musical. Diretor de um outro filme do gênero, Chicago, que ganhou o Oscar, Marshall teve a coragem de refilmar Oito e meio em nova roupagem. Otto e mezzo trata de uma crise de um cineasta impotente que se debate em angústia pela impossibilidade de fazer um novo filme. Trata-se de uma reflexão bem felliniana sobre o próprio processo de criação no cinema. Considero-o um filme-farol, uma das obras mais importantes de toda a história do cinema.  Fellini, depois de A doce vida, tinha medo de não poder mais exercer a criação plena. E Otto e mezzo é um reflexo dessa angústia. Mas o resultado é magnífico e se tornou um filme divisor de águas, um filme essencial, uma obra de arte, um momento sublime na história da arte do filme.

4) Nine, justiça se lhe faça, tem bons momentos musicais, mas um filme não se completa apenas por boas sequências. No cômputo geral, Nine não justifica os esforços de Rob Marshall e, além do mais, encontra-se léguas de distância de um Vincente Minnelli, Stanley Donen, George Sidney, entre outros mestres do gênero. Chicago, numa época em que o musical já se tinha encerrado como gênero, agradou por tê-lo revivido, mas nada de compará-lo com os grandes espetáculos do gênero do pretérito. Marshall, no entanto, vence pela teimosia e algum talento. Mas não poderia ter feito o mesmo filme sem fazer alusão à obra de Federico Fellini? Gosto, em Nine, particularmente da performance de Stacy Ferguson como a inesquecível Saraghina.

5) No lugar do divino Marcello Mastroianni (que em Otto e mezzo faz o cineasta Guido Anselmi), Daniel Day-Lewis (aquele excelente ator de Sangue negro e Meu pé esquerdo, entre outros), que enfrenta a crise da meia idade aos 50 anos. Para amenizá-la, envolve-se romanticamente com várias mulheres, a incluir, neste harém, sua esposa Luisa (Anouk Aimée no filme de Fellini, Marion Cotillard, que fez Edith Piaf), a amante Carla (ao invés da esfuziante Sandro Milo, Penépole Cruz), a sua musa como estrela (Nicole Kidman), a confidente (a esplendorosa Judi Dench), uma jornalista de moda made in USA (Kate Hudson), a prostituta de seus belos anos, Saraghina (Stacy Ferguson), e last but not least, sua mamma (Sophia Loren). Como se pode observar um elenco maravilhoso.

3) Quando Vincente Minnelli chegou a Hollywood, vindo da Broadway, revolucionou o musical americano ao integrar os números musicais à ação dramática. Marshall faz o contrário em Nine e os números são partes dissociadas da ação. Não se pode negar, por outro lado, que Nine tem alguns momentos inspirados no tocante à coreografia da música e da dança.  Alterna o preto e branco, durante a narrativa, com o colorido, porque, segundo Marshall, o touch ficaria mais artístico e charmoso.

4) Que Nine, pelo menos, sirva para que os cinéfilos procurem o DVD do original Oito e meio, esta, sim, uma verdadeira obra-prima. Vi este momento antológico do cinema, literalmente de boca aberta, estupefato, ainda adolescente, no extinto cinema Liceu da rua Saldanha da Gama numa sessão domingo de manhã, às 10 horas. Antigamente, os lançamentos eram feitos nas segundas e. no domingo anterior. tinha sempre uma pré-estréia. Muitas pessoas saíram sem compreender o filme, porque o tempo não é narrativo, mas psicológico. A mesma coisa aconteceu quando da apresentação de O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, anos antes. Mas Oito e meio, na verdade, é límpido como uma água, não há nenhuma confusão, mas, na época, as pessoas não estavam bem acostumadas a filmes que fugissem do esquema narrativo linear padronizado pelo cinema americano.

5) O filme custou cerca de R$ 174 milhões, tem direção de Rob Marshall e é uma versão do original apresentado na Broadway em 1982, vencedor de cinco prêmios Tony Awards, incluindo o de Melhor Musical. As mulheres que circundam o depressivo cineasta interpretado por Daniel Day-Lewis são fabulosas e, na verdade, não fosse a diegese estabelecida, seriam capazes de curar qualquer depressivo no fundo do poço.

6) Quando a indústria cinematográfica hollywoodiana se viu ameaçada pela concorrência da televisão, tratou logo de lançar a tela larga (o CinemaScope - que se projeta através de lente anamórfica) e o som estereofônico e, ainda, o Cinerama (três telas côncavas e três projetores). E até mesmo o cinema com cheiro, que não deu certo. Atualmente, com o surgimento de novos suportes (DVD, Blue-Ray, possibilidade de se baixar filmes da internet), aciona a Terceira Dimensão. Seria esta o cinema do futuro? Seria Avatar um dos pontos de partida do que vem por aí em termos de espetáculo cinematográfico? É esperar para ver. E, desde já, vou me demitir de tais espetáculos.

7) Acabou de chegar, em encomenda via internet do site da Livraria Cultura, o importante livro A mise en scène no cinema - Do clássico ao cinema de fluxo, de Luiz Carlos Oliveira Jr, ensaísta cinematográfica que escreve, entre outras, na revista Contracampo, que oferece uma abordagem histórica, estética e crítica de um dos principais conceitos do vocabulário fílmico: a ideia de mise en scène. Não há, na escassa bibliografia brasileira, uma obra que trate do assunto com tanta amplitude e importância. Obrigatório para todos aqueles que pensam um dia entender de cinema.