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05 junho 2013

Narrativa e fábula

Se o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme é o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem fílmica - e não, como já se disse, o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, torna-se imprescindível o discernimento, por parte daqueles que pretendem compreender e entender a arte do filme, entre o plano da fábula e o plano da narrativa.


O plano da fábula refere-se à coisa da narração - quer dizer, à história - e o plano da narrativa refere-se ao como - quer dizer, ao conjunto das modalidades de língua e de estilo que caracterizam o texto narrativo. De um lado, tem-se a story e, do outro o discourse. Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula-story mas, sim, o plano da narrativa-discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma, esclareça-se, não a que em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional.


O fundamental é compreender que o lugar geométrico onde se individualiza a poética de um autor é, por conseguinte, representado pela esfera da linguagem por ele utilizada, sempre na condição de o ser em sentido polívoco e não banal. A polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade relativamente a qualquer sistema expressivo. A distinção entre fábula e narrativa pode parecer artificial, no entanto, quando se está diante de obras em que os dois planos caminham paralelos e em perfeita harmonia. Ocorre sempre nos filmes que seguem os cânones do naturalismo, nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como ou, melhor, a história, a fábula, exerce, uma ascendência sobre a narrativa. Isso pode ser constatado nos filmes nos quais a ação da linguagem está completamente a serviço dos personagens, sendo estes últimos apresentados como pré-existentes à obra e dotados de uma autonomia extrapoética. Nestes casos, tem-se evidente a mistificação pelo uso passivo e mentiroso da linguagem, considerando-se que a função precípua das linguagens artísticas é a de recriar o mundo e não copiá-lo nas suas aparências.


Por outro lado, a distinção entre fábula e narrativa se encontra plenamente legitimada nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se - ou, pelo menos, controlar-se - alternadamente. Pode acontecer, de fato, que, no decorrer do filme, a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa. Neste caso, a narrativa provoca sutilmente a erosão da fábula a ponto, inclusive, de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura fílmica limitada exclusivamente aos valores da história - ou da fábula.


Em A laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, filme que permaneceu nove anos proibido de exibição no Brasil - justamente por causa da acidez de sua fábula, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula. À guisa de ilustração: Alex e seus amigos, rebeldes sem causa, adeptos da ultraviolência, invadem a casa de um famoso escritor, espancando este e sua esposa com requinte de perversidade. Mas enquanto Kubrick mostra a violência do ataque a trilha sonora apresenta a voz de Gene Kelly cantando na chuva. Em outro filme,Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, o personagem vivido por Paulo Autran, um político arrivista e demagogo, é visto sob a ótica de várias tomadas (ou planos) enquanto uma voz em off, radiofônica e séria contrasta com o tom de deboche do personagem que ri às gargalhadas. Já em Mouchette (1967), de Robert Bresson, a verdadeira crueldade não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano do discurso.


Donde se pode concluir: o verdadeiro significado de um filme situa-se, portanto, numa área marginal relativamente ao seu centro aparente. Há que se ter a consciência da distinção narrativa-fábula porque essencial para compreender a poética de um filme. Na filmografia do cineasta Alfred Hitchcock, segundo análise de Eric Rohmer e Claude Chabrol, o conteúdo é a forma, o que, a rigor, não se aplica apenas a esse autor de filmes mas a todas as obras de autênticos autores da história do cinema, obras cujo distintivo consiste numa carga de sentido que só se esgota mediante uma leitura em profundidade. É o discurso, nesse sentido, que, nas obras plenas de artisticidade, por assim dizer, escolhe a fábula que lhe pareça mais funcional.

02 junho 2013

O Cinema Baiano em Xeque

Por Davi Caires

O que seria esse Cinema Baiano que por muitas vezes é tão aclamado em coros por essas bandas de cá? Faço-me essa pergunta diariamente. E quanto mais eu reflito sobre a questão (e permaneço às margens da cena ), mais convicto fico em querer continuar afastado dessa taxionomia equivocada  e de todas as ilusões e inconveniências que ela traz em si. Daí, seguem-se algumas outras questões posteriores à primeira. Por exemplo: Cinema Baiano é um gênero cinematográfico ou uma título oportunista para se fazer frente aos sulistas em discussões setoriais sobre a partilha de verbas do audiovisual, provenientes do Governo Federal? A primeira questão creio que seja simples: Cinema Baiano não é um gênero. Não pode ser. Onde já se viu o nome de um Estado  -— o território definido de uma Federação qualquer — servir para qualificar e representar as qualidades estéticas e intelectuais de um gênero cinematográfico? Será que há algo como: Cinema Texaniano, ou Xangaiano, ou Cinema do Principado de Kiev? Creio que não. Na música, aqui, o caso se repete. Música baiana não é um gênero. O Axé, sim. Este é um gênero que compreende um tipo específico de bandas, as quais executam arranjos particulares, entoam melodias equivalentes, pregam uma visão de mundo mais ou menos igual e geralmente tocam em carnavais, micaretas ou em grandes shows. Assim como o Axé, também são gêneros musicais: o Arrocha, o Pagode, o Pagodão (há uma infinita distinção entre esses dois últimos), o Forro, o Pé de Serra, o Bloco Afro, o Samba-de-Roda, a World Music, entre outros.  Ou seja, a constatação dessa afirmação de que somos carentes de um autêntico gênero cinematográfico me leva a crer que o “Cinema Baiano” é um termo usado estritamente para fins políticos e que não traz em sua essência nenhuma preocupação com a forma, conteúdo e muito menos com o discurso da linguagem. E essa é a grande armadilha semântica dessa história toda. Alguém dirá: “Cinema Baiano são todas as obras realizadas no estado, cuja maioria da equipe técnica é baiana e as produtoras responsáveis pelos filmes são sediadas na Bahia, portanto somos um só e vamos lutar pela classe, independente se há ou não um gênero específico”. Bom, isso me soa como pensamento de torcida de time de futebol. Cada vez que algum “cineasta baiano” ganha qualquer prêmio em qualquer festival fora do Estado, logo brotam à luz os chefes das torcidas: “Viva O Cinema Baiano! Longa vida ao Cinema Baiano! Nosso cinema vai de vento em popa!” E isso não é um fato. Com essas políticas de fomento a filmes via leis de incentivos e editais públicos criou-se, infelizmente, uma classe de cineastas parasitas, lobistas e políticos. (O termo “político” ao qual me refiro aqui corresponde ao seu significado mais rasante: o político de gabinete; ou aqueles que dão tapinhas nas costas de diretores de emissoras públicas; ou os que se aliam às figuras do alto clero para lhes sugarem um trocado ou pedir-lhes qualquer sorte de benefícios.) Como me recuso em ser esse personagem oportunista então sinto-me confortável em dar continuidade à prosa.

Sendo assim, não está havendo espaços, nem iniciativas, nem reflexões interessantes para se pensar o cinema além do Minc, ou da Secretária de Cultura, ou dos próximos editais. Mais uma vez, alguém daí falará com o peito inflado e o indicador em riste: “Porém, o que hoje conseguimos é um heróico avanço. Passamos décadas vivendo sob as trevas e que ACM foi o culpado por dizimar a cultura do estado e então veio Wagner, e veio Gil e alavancaram uma revolução na cultura, através das políticas publicas...”. Esse discurso é furado. Um: A presença de um tirano ou de um governo autoritário não é a razão maior para justificar o grande período de seca da cultura do estado. Basta lembrar-se de que uma das épocas mais férteis da cultura brasileira deu-se durante o regime militar. Dois: se pensarmos mais cinicamente (e é essa dose de sarcasmo que sinto falta nas discussões por aqui) os editais exercem a mesma função da “bolsa família”, em sua versão, “bolsa cineasta”: o governo dá o dinheiro, contudo não oferece instruções em como os realizadores possam seguir o caminho com as próprias pernas. Não seria bacana se metade das verbas destinadas à produções de filmes fosse encaminhada para cursos de capacitação técnica? Que legal seria se tivéssemos durante todo o ano oficinas, cursos, workshops gratuitos com renomeados roteiristas, brilhantes fotógrafos, exímios maquinistas, competentes produtores... Não. Isso não acontece por aqui. Insistentemente, haverá os ufanistas que dirão que sim; mas não lhes levem a sério; vá por mim. Quem realmente está exercendo o cinema constantemente nessa cidade? (os que fazem apenas publicidade e propaganda política estão fora desse questão, afinal esses não fazem cinema, mas sim, dinheiro) Quase ninguém. De caju em caju alguém ganha uma verba aqui e faz um curta acolá; às vezes, muito raramente, alguém faz uma assistência em um longa; de vez em quando, junta uma turminha e faz um filme na brodagem, no esquema coletivo, e só. Se for inevitável aliar-se ao governo para estimular a sobrevivência da prática então que se comesse a pensar em forma reversa. Dentro dessa idéia em dividir a grana dos incentivos, que hoje praticamente é destinada exclusivamente à produção de filmes, bem que se poderia investir em um grande estúdio público, com diversos galpões, para que os realizadores possam de fato exercitar o cinema. Qualquer cineasta ou produtor cadastrado poderia usar as instalações desses estúdios para realizarem suas obras e até mesmo para estudarem e exercerem as técnicas do cinema. Em troca os realizadores prestariam serviços ao governo; voltaríamos às épocas dos escambos: um diretor de fotografia que usasse os estúdios durante oito horas teria que prestar três horas de trabalho para alguma peça do governo ou alguma cobertura de evento, por exemplo. Isso faria com que se intensificasse a prática do audiovisual em um grau muito mais elevado do que acontece hoje. Precisamos urgente sim ir aos estúdios. É um momento de total controle sobre os objetos, e a atenção se concentra sobretudo nas resoluções práticas e dramáticas das cenas. Sem essa experiência de estúdio, seremos eternos filmadores de externas — dependentes da luz natural, reféns do barulho alheio e perseguidores de um tempo que anda cada dia mais escasso.

Sem essa experiência transformadora dos estudos, e com o governo ditando as regras, e com a  inexistência de um movimento estético e intelectual da pesada,  está se fazendo obras fracas que não estão a atrair nem mesmo os conterrâneos. O mesmo cidadão chato do dedo em riste exclamaria novamente: “O problema são os enlatados americano que ocupam todas as salas de cinema e as pessoas hoje não querem mais ver um cinema pensante! ”  Mais uma reflexão obsoleta. Não é esse o néctar da discórdia. Depois desse lamento, a prosa sente a necessidade em retornar ao modo cínico para tentar enxergar outras variações sobre esse mesmo tema. Ora! Tanto na maioria dos longas e nos curtas que são realizados no estado, os atores e personagens são mal construídos e dirigidos (em decorrência dessa falta de prática a qual comentei ou será mesmo a falta de um talento?) — parecem que vivem em outra estratosfera e, sobretudo, não sabem contracenar: um ator fala, o outro espera e depois fala o seu texto; marcado ao extremo. Aonde é que diálogos assim são proferidos? Como esses personagens conseguirão convencer o público de que são reais e merecedores de atenção? Aqui, há uma tendência estilística em amplificar as interpretações dos atores e criar personagens míticos, oníricos e catastróficos. Por que será que “O som ao redor” está circulando pelos cinco continentes? Por que os personagens são críveis. E essa é uma das virtudes do cineasta em questão — retratar a classe média, dentro da qual ele tem total domínio sobre a forma; e mostrar situações dramáticas que são comuns em todo o planeta.  Aqui, parece que: ou não se sabe ou tem-se medo ou vergonha em retratar esse universo dentro dos filmes. Talvez os cineastas locais se ponham em um degrau tão elevado que não lhes permite aceitar a condição de serem classe-média. Não que todos os filmes têm de representar personagem da nossa vida cotidiana, todavia, mesmo quando não o representam, eles têm a obrigação em ganhar a confiança do público no quesito verossimilhança. E isso não está acontecendo. Sempre é aquela coisa trabalhada nos clichês da interpretação teatral, no aprisionamento do ator ao texto e nas impostações absurdas de vozes. Por outro lado, os cineastas persistem na escolha de temas que estão em voga em editais e na construção de roteiros soníferos, prolixos e tecnicamente defeituosos. O resultado final são filmes mal feitos. A equação é simples: se queremos mais espectadores nos nossos filmes então que se façam obras que dialoguem com eles; e isso não significa fazer filmes simplórios ou caricatos, ou para a cultura de massa. Basta apenas contar uma boa história com personagens interessantes. Sem esses índices de pagantes em salas de cinema, jamais teremos a chance de deixarmos de ser dependentes do governo e de tentar na praça barganhar outros modelos de investimentos. Sem adquirir a confiança desses outros possíveis fomentadores, volta-se ao impasse de apenas continuar sendo o governo a única fonte de liberação de recursos. Por que, afinal, para ele tanto faz se os filmes dêem ou não público, ou sejam bem feitos ou artesanalmente mal elaborados. O governo exige apenas que seu carimbo esteja estampado nas peças de propagandas e que as prestações de contas sejam coerentes e não contenha, por exemplo, na rubrica de “transporte” uma nota fiscal de duas garrafas de Red Label. A necessidade em se fazer bons roteiros e o refinamento na direção de atores são imprescindíveis para se começar a imaginar um sistema de financiamento e produção que se distinga daquele que impera hoje no  Cinema Baiano — o assistencialismo estatal.

Compete aos cineastas daqui romperem com esse padrão, buscarem a ampliação das suas referências e deixarem de acreditar que a revolução virá dos seus “subversivos” filmes,  ou de uma reunião com o Governador, ou das mesas de bares do Rio Vermelho ou das telas luminosas dos seus smartphones. É preciso se distanciar da boçalidade e do cinema “em primeira pessoa”, perseguir outros colóquios que não se refiram apenas aos conhecidos vocábulos e começar a pensar em cinema em seus contornos mais elementares.

Ano que vem chega uma safra de novos filmes nossos no mercado. Torço a favor de todos, como sempre o fiz  — torcer contra é burrice e é um sintoma indelicado de um povo provinciano com síndromes da inveja. No entanto, mesmo a tentar acreditar no que verei, costumo entrar na sala de cinema com o coração aberto mas, invariavelmente saio com ele partido e cada vez mais desacreditado na capacidade artística das pessoas; e crente de que está tudo ao avesso nesse paradigma da cena do Cinema na Bahia. Espero que essa sensação mude com as obras que virão. Se não será tarde demais. E a única saída para essa disfunção sistemática será mesmo rumar ao aeroporto da cidade: está bem díficil competir com as rêmoras; elas estão cada dia mais famintas...

E são por algumas dessas razões citadas nessa texto que não acredito no otimismo, nem nos ideais práticos (e políticos) desse movimento corporativista proclamado de “Cinema Baiano”.

Me desculpem, mas a impressão que tenho é de que muita gente nessa cidade está iludida, procurando soluções inadequadas em equações inexistentes.

Davi Caires é natural de Salvador, Bahia. Formou-se em música erudita; porém, em 2006, a partir de um evento ocorrido no Aeroporto Internacional de Madrid, em que ficou confinado no alojamento da imigração por três dias, descobriu que o cinema é a sua verdadeira expressão artística. Atualmente, está em fase de captação de recursos para produzir "Perversa", seu primeiro longametragem.

Blog de Davi Caires: http://emboscadafilmes.wix.com/davicaires
Fotos de autoria de Natália Reis (Octopus Estúdio)