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01 novembro 2012

Cinema ao alcance de qualquer "Zé Mané"


A avalanche de filmes digitais é impressionante. Qualquer pessoa pode, agora, fazer um filme e se intitular cineasta. O fazer cinema perdeu seu mistério e a sua magia. Claro, há a possibilidade de que qualquer se expresse por meio das imagens em movimento, o que é democrático. Ouso comparar o fazer cinema, hoje, com os poetas de antigamente. Em tempos não tão priscas assim, as pessoas viviam a cometer poesias e ficavam satisfeitas quando uma delas era publicada em jornais e revistas. Mas se existia muitos versos, poucos os poetas verdadeiros. Tinha-se, na verdade, uma enxurrada de versejadas.
Aplico o dito aos filmes feitos em digital por qualquer mané. O lixo da história está cheio desses arroubos expressivos e o tempo será o seu maior juiz. Pelo que tenho visto, a maioria dos filmes realizados em digital é de péssima execução cinematográfica, principalmente os curtas realizados por amadores. Para se fazer um filme é necessário, salvo raras exceções (como o documentário filmado in loco), uma elaboração a priori, um pensar cinematográfico antes da execução propriamente dita. Os cineastas digitalizados, porém, na sua grande maioria, preferem pegar a câmera e ir logo filmando. Os resultados, como não poderiam deixar de ser de outra forma, são lamentáveis.
Nelson Pereira dos Santos, numa palestra no Memorial da América Latina, há algum tempo, disse que não gostava da expressão audiovisual para a denominação de tudo que fosse imagem em movimento. Qualquer filme é chamado de produto audiovisual, o que, para ele, não expressava bem o significado e a dimensão do cinema. Quando se fala cinema, segundo Nelson, vem logo à mente nomes como Orson Welles, Fellini, Luchino Visconti, Roberto Rossellini, entre outros, ao passo que quando se fala em audiovisual nada vem à lembrança. Concordo em gênero, número e grau com esta opinião.
Está a acontecer uma revolução no audiovisual e ainda não cheguei a um processo mais consciente do que se encontra por vir. As imagens em movimento perderam a sua magia de somente serem vistas nas salas exibidoras e tomaram uma amplitude nunca dantes imaginada. Estão por toda parte: nas gigantescas televisões de plasma, nos DVDs, nos celulares, nos computadores. Baixa-se filmes a torno e a direito pela internet. O filme, algo meio inacessível, como em coluna passada me referi com um caso, hoje se vulgarizou a tal maneira que se pode encontrar no balaio das Lojas Americanas obras-primas a preço de banana. Ou espalhadas pelo chão das ruas e avenidas das cidades em cópias piratas. É verdade que, nesta oferta, predominam os filmes inferiores, para consumo imediato, mas, de repente, vê-se um grande momento do cinema à disposição do cliente transeunte.
Os eventos cinematográficos se proliferam e em qualquer cafundó de judas há atualmente a realização de um festival de cinema (apoiados, diga-se assim de passagem, pelas burras da Viúva). Muitos deles são bons e proveitosos, mas não se pode negar que alguns cheiram a picaretagem. Abre-se uma produtora com fito cultural e basta apenas captar patrocínios. Os organizadores gastam o necessário e o troco fica com eles. Urge que os órgãos governamentais tenham mais rigor ao patrocinar tais eventos, pois muitos não passam de pura picaretagem.
Há também uma profusão de oficinas, mesas redondas e quadradas, seminários disso e daquilo, alguns chatíssimos, recorrentes, repetitivos. Para ficar num só exemplo: a das oficinas de crítica cinematográfica., que, geralmente, são realizadas em dois, três dias. Creio-as um absurdo, um non sense. Como se pode ensinar a ver um filme em tão pouco tempo? E, principalmente, criticá-lo? A crítica é a arte da paciência, como disse uma vez o grande Inácio Araújo. Antes de mais nada, o vestibulando a crítico deve ver e ver filmes e, para alcançar um razoável repertório cinematográfico somente o tempo está a seu favor. É preciso se entender que o cinema é uma estrutura audiovisual, que tem uma linguagem autônoma. A crítica, portanto, é um processo a posteriori. Mas, na geleia geral na qual se afundou o audiovisual, assim como todo brasileiro se considera um técnico de futebol, também se acha apto para criticar um filme. Confesso que ministrei uma oficina de crítica, mas, num processo de autocrítica, nunca mais a farei. Tenho, também, culpa no cartório, mas, creio no meu bom senso, e, se o tenho, não participo mais de tais oficinas, que, no meu bom tempo, conhecia-as para conserto de carros e bicicletas.
A concentração de filmes numa determinada mostra é contraproducente. Segundo Georges Sadoul, famoso historiador de cinema francês, na introdução de seu Dicionário de Filmes, os filmes gravados na memória tendem a se confundir. Conta que passou décadas a analisar uma sequência de determinada obra cinematográfica vista há muito tempo e que a tinha como fundamental. Quando teve a oportunidade de vê-la, constatou, estupefato, que ela não existia no filme que anunciava. Pertencia a outro.
Como no título da antologia de críticas de Antonio Moniz Vianna, um filme por dia é o ideal de contemplação de um cinéfilo - até poderia conceder: no máximo dois. Há pouco tempo, no entanto, os eventos cinematográficos que se faziam no Brasil não empurravam, cinéfilo abaixo, uma avalanche de filmes. É bem verdade que da profusão pode aquele que se interessa escolher os mais interessantes e deixar os outros para uma próxima ocasião - se a houver.
Cada vez mais fica imperativo que se refine o que se vai ver. O ideal também é que se refinasse mais o que está a ser produzido. Uma das metas do cinema brasileiro deveria ser esta: não aporrinhar o pobre do cinéfilo já tão aporrinhado com as coisas da vida

30 outubro 2012

Robert Mulligan: evocação e sentimento

Natalie Wood em À procura de um destino (Inside daisy clover, 1966), de Robert Mulligan

Realizador evocativo, cultor das memórias de tempos idos em alguns filmes, dotado de pleno domínio formal de seu meio de expressão, Robert Mulligan (1925/2008) foi-se embora neste mês de dezembro. O que resta, findo Mulligan, da tradição do heróico cinema americano, o cinema do grande segredo na expressão feliz de François Truffaut? Apesar de não ter alcançado a glória de seus ilustres colegas (Billy Wilder, Hitchcock, George Stevens, Cukor...), poder-se-ia considerá-lo um cineasta bem acima da média e que não foi devidamente valorizado, fora alguns filmes ocasionais mais louvados por outros motivos que pela mise-en-scène (como são os casos de O sol é para todos, que deu o Oscar a Gregory Peck, e Houve uma vez um verão).


O blogueiro (ou blogüista), por coincidência, começou a sua trajetória de cinéfilo na mesma época em que Robert Mulligan deu início a seu percurso como realizador cinematográfico, ou seja, em 1957. E, portanto, acompanhou toda a sua filmografia, ainda que os primeiros filmes tenham sido vistos nas constantes reprises que existiam no cinema do passado (a televisão matou a reprise dos filmes). A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.
Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O'Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedy que causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em CinemaScope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.


Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista emO homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em Ocaminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.

“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."

28 outubro 2012

O Futuro esteve em Orson Welles


Uma mostra quase completa de Orson Welles é uma coisa extraordinária. O Cine Futuro, que acontece entre 9 e 15 de novembro no Espaço Itaú Glauber Rocha, realiza retrospectiva imperdível do autor de Citizen Kane. O gênio wellesiano previu o futuro do cinema e não seria exagero dizer que Cidadão Kane foi o ponto de partida da linguagem do cinema contemporâneo. Parabéns a José Walter Pinto Lima pela realização de mais uma edição do Cine Futuro (gostava mais do outro nome: Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual). 
Orson Welles (numa interpretação inexcedível, obeso, desfigurado, para dar a impressão da configuração da maldade) é Hank Quinlan, policial de uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, que tem o costume de fabricaras provas com as quais acusa os supostos culpados perseguidos. Um colega mexicano, Vargas (Charlton Heston, que mostra não ser apenas ator de épicos hollywoodianos, mas um ator de amplos recursos), que acaba de se casar com uma jovem americana, Suzie (Janet Leigh), vem a descobrir os arranjos de Quinlan e ameaça desmascará-lo. Com a ajuda de Grandi (Akim Tamiroff), um traficante local que serve à polícia com informações, Quinlan faz seqüestrar e drogar Suzie, matando logo em seguida seu cúmplice no quarto do hotel onde ela se encontra trancafiada. Uma sucessão de acontecimentos proporciona a um fiel subordinado de Quinlan, Menzies (Joseph Callea) a constatação de seu caráter e acaba ajudando Vargas no total desmascaramento de Quinlan.
Touch of evil (o toque do mal, se traduzido ipsis litteris) marca o retorno de Orson Welles a Hollywood após uma ausência de dez anos. Os constantes estouros nos orçamentos, o seu comportamento muito além dos parâmetros convencionais, e as ameaças de interferência dos estúdios em seus trabalhos, fizeram-no se afastar da meca do cinema. Na década que fica fora (1948/1958) realiza, porém, na Europa, alguns filmes, a exemplo de Othello (personalíssima versão do texto célebre de William Shakespeare, que leva dois anos para ser realizada: 49/51), eGrilhões do passado (Mr. Arkadin ou Confidential report, 1955).
A marca da maldade é montado, na sua versão final, à revelia de seu autor. Há alguns anos, encontradas as anotações de Welles sobre como proceder à montagem do filme, Touch of evil é remontado tal qual a concepção do realizador de Cidadão Kane (as duas versões são exibidas, há cinco anos, no Telecine, quando este ainda é Classic e não Cult, com um documentário especial sobre as diferenças entre as duas cópias).
Apesar de sua base literária como ponto de partida do roteiro, uma sub-literatura de Whit Masterson (aliás, Hitchcock sempre diz que nunca gosta de fazer adaptações de grandes livros, a preferir a sub-literatura encontradiça em bancas de jornais, as chamadas pulp-fictions, mas a sua extração é sempre de um procedimento cinematográfico exemplar e reveladora de uma escrita que estabelece uma mise-en-scène de puro cinema, de pura estesia), A marca da maldade é uma de suas obras mais interessantes e reveladoras. Alguns historiadores, inclusive, estão a considerá-la como mais importante ainda do queCitizen Kane (o que se nos afigura um absurdo, ainda que Touch of evil seja um filme excepcional, e grandioso, e impactante, e genial).
A figura de Quinlan representa à perfeição a postura wellesiana ante a sociedade em que vive. Não que o autor se identifique com o personagem. É que, através de sua monstruosa personalidade, submete, com ela, a crítica ao mundo que o rodeia e no qual certos valores deixam de ter vigência. Em torno da figura de Quinlan, evolui uma série de personagens que, na verdade, não são mais que elementos de uma antítese mediante a qual Welles pretende chegar a uma visão dialética. E quem faz o resumo desta visão é a cigana interpretada por Marlene Dietrich no final do filme numa espécie de epitáfio cínico e emocionado.
O fabuloso plano-seqüência inicial, longo e complicado, fica definitivamente nos anais da história do cinema mundial. E dá a tônica estilística de A marca da maldade, uma das mais barrocas de seu autor (a influência do expressionismo alemão, com o contraste das sombras e das luzes, é impressionante). Welles utiliza os inquietantes elementos de uma trama enviezada e a particular estranheza dos cenários para compor uma obra em que tudo está deformado por uma ótica com freqüência aberrante.
Com a oportunidade de comparar as duas versões de A marca da maldade (a montada à revelia e a montada segundo as anotações do diretor), vê-se que o plano-seqüência do início, na versão oficial, é desfigurado com a colocação dos letreiros de apresentação, a ofuscar a visão das pessoas, do movimento, e dos objetos dentro do enquadramento. Welles, como de hábito, na sua concepção original, elabora o plano-seqüência absolutamente desprovido de qualquer material de procedência que não a da imagem.
A aparência exterior de simples drama policial, quando do seu lançamento (depois viria a ser reavaliado e considerado até melhor do que Kane), faz com que muitos críticos venham a considerar Touch of evil como uma obra menor dentro da filmografia de Orson Welles. Nada mais equivocado, pois A marca da maldade é um filme que expõe com grande força o seu pensamento e o seu estilo.
A seqüência de Janet Leigh no motel parece ter inspirado Alfred Hitchcock a convidar a atriz para o elenco de Psicose (Psycho). Não resta dúvida de que tudo indica que a atmosfera reinante no motel wellesiano de A marca da maldade tem tudo a ver com o motel hitchcockiano, com Norman Bates à la carte, de Psycho e, inclusive, a distância entre os dois filmes é curta: dois anos. O velho Hitch há, também, de sofrer a angústia da influência de Harold Bloom.
O cineasta brasileiro Rogério Sganzerla, fã incondicional de Orson Welles, tem um enquadramento em sua obra-prima, O bandido da luz vermelha, no qual o ângulo oblíquo faz ver a sair do carro o detetive interpretado por Luiz Linhares, um enquadramento visivelmente inspirado em A marca da maldade, quando o inspetor Quinlan aparece pela primeira vez. Sganzerla, aliás, realiza dois longas tributários ao grande cineasta, entre eles Nem tudo é verdade, com Arrigo Barnabé no papel do autor de Cidadão Kane, uma mistura de material de arquivo com reconstituição ficcional.
Muitos críticos e historiadores, a exemplo de Peter Bognadovich, acreditam que A marca da maldade possui uma chegada de Welles a este momento de sua vida com o mesmo cansaço que Quinlan experimenta em relação a Kane, cansaço que emerge dos anos transcorridos, da reflexão, da angústia e da desesperança.