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20 setembro 2007

Maratona da morte




Acabei de assistir A maratona da morte (Marathon man, 1976), do notável John Schlesinger, thriller que tem um ritmo impressionante, um timing surpreendente. O elenco é de primeira, com Dustin Hoffman, Laurence Olivier, Roy Scheider, William Devine, entre outros, e o roteiro, enxuto, dotado de indicações precisas, é de autoria de William Goldman, que, por sua vez, adaptou o próprio romance. Olivier faz um carrasco nazista, Mengele, dentista, que numa antológica seqüência tenta torturar Hoffman com apenas uma frase, is it seft?, mudando, apenas, a sua tonalidade vocal. A princípio, di-la com quase delicadeza e, aos poucos, o seu tom vai se modificando até se tornar assustadora. Quando visto na televisão dublada, a seqüência perdeu todo o seu impacto. Prova de que a dublagem destrói a obra cinematográfica, interferindo na sua integralidade. A voz que dubla Olivier tirou toda a surprêsa com uma tonalidade uniforme. O que cria a tensão neste momento é o trabalho de voz de um intérprete da categoria de Laurence Olivier. Dublado, tudo some, tudo desaparece.
Schlesinger executa a sua mise-en-scène como se um fio de alta tensão estive a impregnar a estrutura narrativa. Há, durante todo o seu desenrolar, uma tensão inusitada, característica, aliás, desse imenso artesão, que se poderia comparar a um William Friedklin ou a John Frankenheimer. O momento no final, quando Hoffman está no reservatório de água com Olivier, e obriga este a engolir, se não quiser perdê-los, os diamantes, é um duelo denso e de perfeita combinação da arte da expectativa e da arte de construir o tempo, dispondo da planificação como um recurso de fragmentar com o propósito da eficácia dramática. A fotografia de Conrad Hall é um outro luxo a que não se pode dispor tanto no cinema contemporâneo, pois a padronização da imagem tem preferência em detrimento aos efeitos de iluminação tão caros a um Hall, a um Greg Tolland, entre tantos artistas e mestres.
Hoffman, um ator adepto do hiperepresentação, mas que, aqui, está perfeito, é um universitário que se encontra a escrever uma dissertação sobre o macarthismo (seu pai, perseguido nos anos 50, termina por se suicidar após ser expulso da universidade), e que, nas horas vagas, faz seu cooper no Central Park. Um seu irmão (Roy Scheider, que estava muito prestigiado na época, principalmente depois que trabalhou em Tubarão/Jaws), que ele pensa viver em Washington, é um agente perigoso que tem relaçoes com o cruel nazista Laurence Olivier, cujo personagem é inspirado em Joseph Mengele. As informações vão sendo dadas aos poucos até que se entrelaçam. Tudo muito bem articulado. As imagens iniciais já são suficientes para reconhecer a marca de Schlesinger, o seu calculado sentido de tempo cinematográfico, o timing como condição única da emergência da emoção: uma discussão racista entre dois velhos motoristas termina em desastre e incêndio, conseqüência da explosão de um caminhão-tanque de gasolina.
A partitura original é de Michael Small (aperte aqui com um clique para saber de quem se trata), mas Schlesinger usa muito Schubert, o que enriquece muito a narração. Entre os outros do cast, William Devane, que trabalharia em Trama diabólica (The family plot), derradeiro filme do grande mestre Hitch filmado no mesmo ano. E Marthe Keller, bonita, que fez sucesso na década de 70 em vários filmes, notadamente em Domingo sangrento, de John Frankenheimer. Vi Marathon man no Telecine Cult e a cópia está muito boa e se pode contemplá-la na sua inteireza, considerando que não é filme originariamente filmado com lente anamórfica, que o Telecine costuma mostrá-lo em tela cheia (full screen), destruindo. Até o Canal Brasil assim está a proceder.
Schlesinger é um narrador de escol, ainda que, no último filme, parecesse irreconhecível e impossível de ser identificado, Sobrou para você (The nest best thing, 2000), com Madonna e o adamascado Rupert Everett. Mas quem pode esquecê-lo em Ainda resta uma esperança (A king of loving, 1962), Darling (1965), com uma divina Julie Christie, Longe deste insensato mundo (Far from the madding crowd, 1967), Perdidos na noite (Midnight cowboy, 1969), Domingo maldito (Sunday, bloody sunday, 1972), entre tantos outros? Schlesinger é um mestre na manipulação do tempo e espaço cinematográficos, um autêntico metteur-en-scène cuja mise-en-scène nos deixa literalmente aparvalhados. Mas é verdade, também, que nos últimos filmes perdeu o pique inicial, mas nunca a chegar ao nível zero de Sobrou para você, opus final de uma carreira tumultuada e irregular pelas injunções industriais do cinema.

19 setembro 2007

Escritor deixou a marca do Zorro na literatura



O velho Tuna Espinheira lutou muito para registrar nas imagens em movimento o romance Cascalho, de Herberto Sales. Ele nos conta aqui a sua aventura. Exibido em Brasília duas vezes, e em sessões especiais - aqui na Bahia na Sala Walter da Silveira há alguns anos para convidados, Cascalho precisa ainda enfrentar talvez a sua mais difícil empreitada: ser distribuído e exibido nas principais salas do país.
"Exatamente há dez anos, juntamente com meu saudoso amigo Irving São Paulo, avistei-me, pela derradeira vez, em encontro pessoal, com Herberto Sales. Era uma data emblemática: naquele 21 de setembro, ele completaria 80 anos.
Já em São Pedro da Aldeia, na paradisíaca Região dos Lagos, à porta da belíssima casa, construída, homeopaticamente, ao longo de mais de uma dezena de anos, nos deparamos com o indefectível aviso: ”deixar jornais e revistas do lado de fora.“ Era estranho para um homem que viveu intensamente os meios da imprensa escrita, principalmente, com fortes ligações com os Diários Associados, com a revista O Cruzeiro, tendo sido diretor da revista A Cigarra, etc.etc.
Para os desavisados, aquela advertência poderia indicar que naquela casa morava um ermitão, um Dom Casmurro, para os que o conheciam, aquilo não tinha a menor importância. Era apenas mais uma das suas legítimas esquisitices ou, simplesmente, um "calundu". A bem da verdade, ele vivia indignado com o ostracismo dos bons escritores, com os livros esgotados e sem novas edições, enquanto outros, estranhos no ninho, pertencentes à mídia massiva, publicavam e vendiam desbragadamente.
Esta dura realidade, refletida em todas as linguagens artísticas, retrata o momento de pobreza cultural em que penamos. Para Herberto, esta coisa feria, o fazia triste, deprimido.
Adentramos e nos misturamos à comemoração que transcorria em ritual de alegria, brindamos várias vezes, embora, já então, problemas ligados com a saúde, já deixavam bastante avexado o dono da festa.
Sem mexer no humor, na cordialidade, no hedonismo prazeroso de bater um papo.
Minha aproximação com Herberto deu-se por conta e obra do seu romance Cascalho. Quando de uma das suas passagens pela terrinha, tive a oportunidade de conversar com ele, falei da minha vontade de levar seu romance às telas. Ele topou laconicamente: "faça o roteiro". Dito e feito. Adaptado, roteirizado e devidamente aprovado pelo autor, partimos atrás dos meios necessários para realizar a produção.
Foram anos para remover a pedra no meio do caminho. Tempo agônico. Herberto já não estava entre nós quando seus personagens se encarnaram em Wilson Mello, Othon Bastos, Gildásio Leite, Lúcio Tranchesi, Irving São Paulo, Arildo Deda, Agnaldo Lopes, Emanuel Cavalcanti, Caco Monteiro, Rosa Espinheira, Jorge Coutinho, Bertho Filho, Julio Gois e povoaram a cidade de Andaraí, na Chapada Diamantina, onde se passa a estória, nos anos 30.
As filmagens mexeram com o imaginário da população, de um modo geral, acreditava-se que nenhum dos personagens era propriamente de ficção, os mais velhos diziam haver conhecido muitos, outros tantos eram parentes e aderentes. Por aí afora.
Para eles Herberto apenas mudara os nomes, as pessoas tinham tido uma existência real e pronto. A empatia foi total, o clima foi de conivência e cumplicidade entre a equipe e a população local, permitindo formar-se um estúdio ao natural. Pedia-se silêncio e todos colaboravam, o filme foi rodado, inteiramente, em som-direto, no sistema digital. Duas são as provas deste abençoado relacionamento, a primeira foi o aproveitamento integral das gravações que não tiveram necessidade de dublagens, a outra, um verdadeiro alumbramento: uma das mais alentadas pousadas que já tinha outro nome escolhido, antes da inauguração, passou a se chamar Pousada Cascalho. E lá está, imponente e, sem dúvida alguma, a mais importante homenagem, até então, prestada ao autor do romance pela sua cidade natal.
Conhecer Herberto foi uma passagem enriquecedora na minha estrada, motivo de orgulho! Afinal, não é todo dia que se convive, mesmo por curto tempo, com um escritor que, no meu entender, e de tantos outros, escreveu, pelo menos três obras-primas: Cascalho, Dados Biográficos do Finado Marcolino e Os Pareceres do Tempo. Com certeza, deixou a marca do Zorro na literatura. O tempo, crítico soberano, sábio dos sábios, já confirmou, assinou e deu fé."
Tuna Espinheira adaptou, roteirizou e dirigiu o filme Cascalho, em vias de sair do prelo