Acabei de assistir A maratona da morte (Marathon man, 1976), do notável John Schlesinger, thriller que tem um ritmo impressionante, um timing surpreendente. O elenco é de primeira, com Dustin Hoffman, Laurence Olivier, Roy Scheider, William Devine, entre outros, e o roteiro, enxuto, dotado de indicações precisas, é de autoria de William Goldman, que, por sua vez, adaptou o próprio romance. Olivier faz um carrasco nazista, Mengele, dentista, que numa antológica seqüência tenta torturar Hoffman com apenas uma frase, is it seft?, mudando, apenas, a sua tonalidade vocal. A princípio, di-la com quase delicadeza e, aos poucos, o seu tom vai se modificando até se tornar assustadora. Quando visto na televisão dublada, a seqüência perdeu todo o seu impacto. Prova de que a dublagem destrói a obra cinematográfica, interferindo na sua integralidade. A voz que dubla Olivier tirou toda a surprêsa com uma tonalidade uniforme. O que cria a tensão neste momento é o trabalho de voz de um intérprete da categoria de Laurence Olivier. Dublado, tudo some, tudo desaparece.
Schlesinger executa a sua mise-en-scène como se um fio de alta tensão estive a impregnar a estrutura narrativa. Há, durante todo o seu desenrolar, uma tensão inusitada, característica, aliás, desse imenso artesão, que se poderia comparar a um William Friedklin ou a John Frankenheimer. O momento no final, quando Hoffman está no reservatório de água com Olivier, e obriga este a engolir, se não quiser perdê-los, os diamantes, é um duelo denso e de perfeita combinação da arte da expectativa e da arte de construir o tempo, dispondo da planificação como um recurso de fragmentar com o propósito da eficácia dramática. A fotografia de Conrad Hall é um outro luxo a que não se pode dispor tanto no cinema contemporâneo, pois a padronização da imagem tem preferência em detrimento aos efeitos de iluminação tão caros a um Hall, a um Greg Tolland, entre tantos artistas e mestres.
Hoffman, um ator adepto do hiperepresentação, mas que, aqui, está perfeito, é um universitário que se encontra a escrever uma dissertação sobre o macarthismo (seu pai, perseguido nos anos 50, termina por se suicidar após ser expulso da universidade), e que, nas horas vagas, faz seu cooper no Central Park. Um seu irmão (Roy Scheider, que estava muito prestigiado na época, principalmente depois que trabalhou em Tubarão/Jaws), que ele pensa viver em Washington, é um agente perigoso que tem relaçoes com o cruel nazista Laurence Olivier, cujo personagem é inspirado em Joseph Mengele. As informações vão sendo dadas aos poucos até que se entrelaçam. Tudo muito bem articulado. As imagens iniciais já são suficientes para reconhecer a marca de Schlesinger, o seu calculado sentido de tempo cinematográfico, o timing como condição única da emergência da emoção: uma discussão racista entre dois velhos motoristas termina em desastre e incêndio, conseqüência da explosão de um caminhão-tanque de gasolina.
A partitura original é de Michael Small (aperte aqui com um clique para saber de quem se trata), mas Schlesinger usa muito Schubert, o que enriquece muito a narração. Entre os outros do cast, William Devane, que trabalharia em Trama diabólica (The family plot), derradeiro filme do grande mestre Hitch filmado no mesmo ano. E Marthe Keller, bonita, que fez sucesso na década de 70 em vários filmes, notadamente em Domingo sangrento, de John Frankenheimer. Vi Marathon man no Telecine Cult e a cópia está muito boa e se pode contemplá-la na sua inteireza, considerando que não é filme originariamente filmado com lente anamórfica, que o Telecine costuma mostrá-lo em tela cheia (full screen), destruindo. Até o Canal Brasil assim está a proceder.
Schlesinger é um narrador de escol, ainda que, no último filme, parecesse irreconhecível e impossível de ser identificado, Sobrou para você (The nest best thing, 2000), com Madonna e o adamascado Rupert Everett. Mas quem pode esquecê-lo em Ainda resta uma esperança (A king of loving, 1962), Darling (1965), com uma divina Julie Christie, Longe deste insensato mundo (Far from the madding crowd, 1967), Perdidos na noite (Midnight cowboy, 1969), Domingo maldito (Sunday, bloody sunday, 1972), entre tantos outros? Schlesinger é um mestre na manipulação do tempo e espaço cinematográficos, um autêntico metteur-en-scène cuja mise-en-scène nos deixa literalmente aparvalhados. Mas é verdade, também, que nos últimos filmes perdeu o pique inicial, mas nunca a chegar ao nível zero de Sobrou para você, opus final de uma carreira tumultuada e irregular pelas injunções industriais do cinema.