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20 julho 2007

Ansiedade por Resnais

Atualmente poucos são os filmes que me entusiasmam. Se, antigamente, os filmes exerceram forte influência na minha formação cultural (ao lado da literatura) e, numa semana, por exemplo, havia sempre uma película a ver quase obrigatoriamente (a rigor ia ao cinema todo santo dia), nos dias que correm meses se passam sem que possa apontar uma obra cinematográfica interessante. Basta dizer da dificuldade para montar a lista dos dez melhores do ano, pois cada vez mais difícil se atingir a dezena. Ao contrário do que acontecia nos anos 60, por exemplo, quando a lista se enchia de perto de três dezenas de filmes e o comentarista ficava com pena de fazer a triagem para chegar a dez tantas eram as obras importantes. Este fato reflete a imensa decadência do cinema contemporâneo. Decididamente: não se vai mais ao cinema com o mesmo entusiasmo de antes e, para muitos, que amavam o cinema, ir a uma sala exibidora se constitui em atividade bissexta. Conheço diversas pessoas, que conhecem bem a arte do filme, que já deixaram há muito de frequentar as casas exibidoras. Para eles, o cinema acabou. Mas não deixam de tê-lo presente pelo DVD através do qual revisitam sempre seus filmes favoritos.


Há, no momento, em cartaz no sul, mas que ainda não chegou à Bahia, um filme que espero com grande ansiedade. Trata-se de Medos privados em lugares públicos (Coeurs, 2006), de Alain Resnais, do grande Resnais, que, talvez, seja o cineasta que mais admiro em todos os tempos. O último Resnais que vi faz tempo: Amores parisienses (On connâit la chanson, 1997), que considerei simplesmente fascinante.
Sobre Resnais e o filme, boas análises na Revista Paisà que está on line: http://www.revistapaisa.com.br

Tributo a Walter da Silveira


Dê um clique na imagem para vê-la ampliada.

18 julho 2007

Homenagem a Walter da Silveira






Pioneira como casa alternativa de exibição cinematográfica, a Sala Walter da Silveira, que funciona no prédio da Biblioteca Central, Barris, Rua General Labatut, cujo nome é uma justa homenagem ao grande ensaísta baiano, tem um fim de semana bem sortido, com muitos programas e alguma agitação para tirar o marasmo cultural da província. O seminário da semana passada agitou suficientemente a ponto de já se tornar um programa do calendário no que diz respeito ao campo do cinema. Para o week-end, a Sala Walter da Silveira programou passar, e em 35mm, Quanto mais quente melhor (Some like it hot, 1959), deliciosa comédia de Billy Wilder, com Jack Lemmon, Tony Curtis e Marilyn Monroe, Os espiões, filme mudo de Fritz Lang, A grande feira, de Roberto Pires, e Tenda dos milagres, que Nelson Pereira dos Santos filmou na Bahia segundo os ditames do livro homônimo de Jorge Amado. Pode assim, à primeira vista, parecer um programa híbrido, e não deixa de sê-lo, mas tem tudo a ver.
Quanto mais quente melhor faz parte da programação normal da semana, e fica em cartaz entre os dias 20 e 27 de julho em diversos horários. Ainda que bastante conhecida, a comédia há muito que não é exibida em 35mm em telão de cinema mesmo, ficando restrita ao DVD ou ao VHS ou, ainda, tv a assinatura ou cabo. A oportunidade, portanto, é única, e o programador da referida sala promete trazer muitos clássicos em película, em verdadeiro celulóide. Já está acertado - maiores detalhes depois - uma mostra importantíssima de Kenji Mizoguchi, algo assim para nenhum cinéfilo botar defeito. Programação de dar água na boca. Numa parceria com a Embaixada do Japão em Recife, vários mizoguchis com legendas em português.
Tenda dos milagres, de Nelson Pereira dos Santos, é uma promoção da Jornada Internacional de Cinema da Bahia (leia-se Guido Araújo) pelos 30 anos de seu lançamento, que ocorreu em 1977 (agora me assustei, realmente, pois me lembro de uma sessão especial no cinema Excelsior, que ficava na Praça da Sé, quando o filme foi apresentado para a imprensa baiana). Todo rodado em Salvador, a equipe de Nelson se estabeleceu no Pelourinho e o filme, se outros atributos não possuisse, é um manancial de curiosidade das coisas da Bahia, gente famosa, pontas, locações, etc. A construção se dá no movimento temporal, com o jogo entre presente e passado e, também, uma espécie assim de reflexão sobre o fazer cinema. Nelson estava numa fase muito baiana e pouco tempo depois se estabeleceria em Cachoeira, cidade histórica, para rodar, com capital misto entre brasileiros e franceses, Jubiabá, que foi tremenda decepção quando apresentado na sala do Clube Bahiano de Tênis, antes deste clube dar existência à sala alternativa que foi ceifada pela Perini, empresa de delicatessen que, alugando todo o espaço do clube social, mandou às favas uma salinha que passava filmes alternativos que se diziam de arte.

O grande dia, porém, é o domingo, dia 22, data aniversária de Walter da Silveira, que, se vivo fosse, estaria completando (é de 1915) 92 anos. Para homenagear o grande ensaísta, que dá nome, inclusive, ao cinema, vai haver, a partir das 17 horas, o relançamento de sua obra completa reunida, por José Umberto Dias, em preciosos quatro volumes. O lançamento, que ocorreu em dezembro do ano passado, às pressas e no apagar das luzes do governo que foi substituído, deixou muita gente sem saber (o bloguista, para dar um exemplo, estava hospitalizado, esperando suas pontes de safena, que viriam, lépidas, dias mais tarde a ser implantadas em seu pobre coração, vítima de herança genética cruel, e incentivado pelos excelentes coadjuvantes que são o álcool e o cigarro). Kátia da Silveira, filha do crítico, que batalha há mais de uma década para ver a obra do pai publicada há de estar presente, assim como o organizador, o cineasta José Umberto, que vem de terminar as filmagens de seu segundo longa metragem, Revoada, que retoma, em grande estilo, o nordestern, o filme de cangaceiro.

Mas para homenager Walter da Silveira, além do relançamento de sua obra completa (em pesados volumes), dois filmes foram escolhidos: Espiões (Spione, 1928), de Fritz Lang (17:30) e A grande feira (20:00). O primeiro, obra de um imenso cineasta em sua fase muda, quando ainda na Alemanha do expressionismo. O outro, filme baiano, no qual Walter da Silveira trabalha numa ponta como o dono de um boteco instalado na Feira de Água de Meninos. Walter participaria ainda como ator de O pagador de promessas, como um padre, que delibera com outros clérigos importantes sobre o destino a ser dado a Zé do Burro, que incomodava a Igreja com a sua presença nas escadarias do Passo.
As fotos, uma de Walter, a outra, hiperealista, da sala.

17 julho 2007

Deu no "Estadão"



Sob o título de 'Bate-boca em encontro na Bahia', saiu na edição de hoje, dia 17 de julho, terça, de O Estado de S.Paulo, no seu caderno 2, uma matéria assinada pelo jornalista Tiago Décimo sobre o bafafá entre este bloguista e o cineasta Edgard Navarro no seminário da semana passada. Leiam o texto:

"Exibições de filmes premiados brasileiros e europeus, palestras sobre técnicas de elaboração de roteiros, encontro de produtores e distribuidores, que reuniu 50 empresas de sete países. O 3º Seminário Internacional de Cinema levou à capital baiana, entre os dias 9 e 14, um pouco de diversão a um público carente de cinema de arte e de discussões sobre temas relacionados à grande tela.

Mas o destaque do encontro não foi um lançamento de livro - como o do ator Paulo César Pereio, a biografia Por Que se Mete, Porra? -, nem presenças estreladas ou ausências sentidas (como o do mais importante convidado internacional do evento, o cineasta e escritor paquistanês Tariq Ali, que alegou problemas de saúde). O que mais atraiu atenção foi o bate-boca no debate Cinema Baiano: ontem e hoje, protagonizado pelo cineasta baiano Edgard Navarro (de Eu me Lembro, vencedor do Festival de Brasília em 2005) e pelo professor e crítico de cinema André Setaro. O motivo: um artigo assinado, no qual Setaro chamou de 'mendigos da boa vontade' os cineastas do Estado, por eles dependerem de editais públicos para realizar suas produções.

'Escrevi aquilo para provocar discussão. Vocês não entenderam a piada', defendeu-se o professor. Não adiantou. Foi hostilizado pelos diretores e apoiado pela platéia. As vaias foram para Navarro, que afirmou que Setaro não era 'digno de estar na mesa'. Diante da reprovação de parte da platéia, o cineasta dirigiu palavrões aos que vaiavam. Depois, andando pelo palco, passou a ironizar cada fala de Setaro, com mímicas.

Para o realizador do evento, o cineasta Walter Lima Jr., até a discussão acalorada foi positiva. 'Seminários como este têm de incentivar a discussão e a busca de caminhos.' Ele destaca, também, as palestras dos cineastas Fernando Trueba, espanhol, e Mimmo Calopresti, italiano, como alguns dos pontos altos do evento e promete avanços para as próximas edições do seminário. 'Temos a idéia de integrar uma mostra competitiva ao evento, talvez já a partir do próximo ano.' "

De saco cheio


Sem querer tirar o mérito do seminário internacional de cinema e audiovisual que se realizou em Salvador - e no qual fui agredido durante uma mesa redonda sobre cinema baiano, com gente de nomeada, evento importante para a Bahia, que não se discute, gostaria de comentar sobre o excesso de mostras, festivais, e que mais outros nomes tenham, que se verifica pelo Brasil afora. Em qualquer 'cafundó de Judas' há um festival, quando não uma mostra, ou uma retrospectiva de qualquer coisa. É a festa patrocinada pelos cofres públicos. Em alguns casos, os eventos servem para se ganhar dinheiro. A coisa é muito simples, bastando, para isso, que o organizador tenha aptidão para captar recursos, seja pessoa dinâmica - como se exige de um corretor de imóveis e, antigamente, de um vendedor de enciclopédias, e, por falar nisso, onde é que este último anda? Abre-se uma empresa, devidamente registrada, cujo objetivo seja a organização de um evento cinematográfico etc e tal. Pronto. A captação pode ser feita por meio de legislação que facilita o processo, e há empresas públicas doidas para patrocinar, a exemplo da Petrobrás, e algumas privadas. Basta observar no cartaz de um desses eventos a quantidade de empresas patrocinadoras. É o que se dizia em priscas eras: uma mão na roda.

Mas o que queria também comentar aqui, além do excesso, é que os festivais atuais (sejam eles intitulados de seminários, mostras, retrospectivas, panoramas, etc) abusam na programação concentrada. A mostra internacional de São Paulo, por exemplo, tem perto de 500 longas, sem contar os curtas, os eventos paralelos. Quem participa dela tem ficar full time à disposição, a ver filmes de manhã, de tarde, e de noite. Creio salutar que, nas mostras do tipo, haja espaço para se tomar uma cervejinha, curtir a ressaca no dia seguinte (geralmente quem vai às mostras é pessoa de fora que fica em hotel a gozar de certas mordomias) no hotel, etc. Mas da forma que elas são programadas há a exigência de que seu participante seja um maratonista, ainda que a ficar sentado por horas seguidas a ver um filme. Para fugir ao aspecto mundano dos festivais de cinema, Guido Araújo, há trinta anos atrás, ao criar o evento que viria a ser conhecida como Jornada de Cinema da Bahia quis enfatizar com Jornada a seriedade do evento com o objetivo de não passar a imagem de festival mundano. Mas, na minha opinião, creio que um certo mundanismo é necessário para se relaxar, conhecer pessoas, beber, tomar um drink à beira da piscina.

Quando se fazia um festival de cinema em décadas passadas, geralmente as programações eram mais suaves de modo a permitir o 'relax'. E em mostras de filmes, nas quais não havia mesas redondas nem quadradas, geralmente se programava um filme por noite, dois no máximo. Finda a sessão, as pessoas se reuniam num barzinho aconchegante e tinham o dia seguinte para dar uma volta pela cidade, curtir um pouco a paisagem. É um problema meu, sei disso, mas não tenho mais saco nem paciência para acompanhar mostras, seminários, festivais. Quando muito seleciono alguns programas, embora, hora chegada, bate-me o abacate da preguiça de locomoção.

16 julho 2007

Vacas premiadas


Já queria ter colocado um ponto final no affair ocorrido durante o III Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que aconteceu semana passada em Salvador, mas não poderia deixar de publicar, aqui, o excelente artigo do jornalista Cláudio Leal que saiu, sábado, dia 14, na página de Opinião do jornal A Tarde sob o título bem sugestivo de Vacas Premiadas. Leal é um dos jornalistas mais lúcidos e coerentes da nova geração. Abrindo logo as devidas e obrigatórias aspas:

"s nsultos do cineasta Edgard Navarro ao crítico André Setaro, no Teatro Castro Alves, ajudaram a engrossar o anedotário de criticados dispostos a quebrar um dos mandamentos da lei de Deus.“Vou matar Moniz Vianna!”, gritou Glauber Rocha, em 1968, prestes a apunhalar o crítico do Correio da Manhã, que surrara o filme Garota de Ipanema, de Leon Hirszman. Sem a saúde de vaca premiada, Nelson Rodrigues resolveu, literariamente, o eterno conflito. Na peça Viúva, porém honesta, criou Dorothy Dalton, “crítico da nova geração”, inspirado em Paulo Francis. Matou-o com um carrinho de Chicabom. Doce Nelson.

Retirado o folclore, os gestos apopléticos de Navarro expressam um sentimento nada semelhante à fúria santa de Glauber. O diretor de Su peroutro exigiu, no palco e nos bastidores, o banimento de Setaro dos debates sobre o cinema baiano. Deve estar decepcionado por não haver campo de trabalho forçado para satisfazer seu impulso totalitário, falsamente anárquico. Atinge quem ajudou a eleger seu belo longa Eu me lembro, no Prêmio Carlos Vasconcelos Domingues.

A ausência da crítica, em todos os setores da nossa vida cultural, grassou nos governos militares e nem mesmo o retorno à democracia conseguiu recuperar o alto nível alcançado nos anos 50 e 60. Navarro e sua patota desejam apagar o que resta de maturidade intelectual e aprofundar o paternalismo dos jornalistas.
Dizer que os cineastas baianos viraram “mendigos de editais”, como o fez Setaro no III Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, é questionar os limites da intervenção do Estado na gestação da arte. O debate é válido. E não há dúvidas quanto à dependência suicida do cinema baiano à caridade do governo. Basta notar a revoada de produtores para as hostes petistas, depois de longo namoro com o carlismo.

Somados ao interesse zero dos empresários por cultura, a espera por editais e o uso de gazua para pressionar a Secretaria da Cultura minimizaram os riscos pessoais de fazer cinema sem recorrer a dinheiro público. Neste ponto, vale destacar a dignidade do produtor Rex Schindler, que esboçou, há 50 anos, com seus próprios recursos, as bases de uma cinematografia local. E, igualmente, lembrar o pioneirismo de Roberto Pires, agora pranteado, mas insultado no final de sua vida por burocratas-cineastas da província. “Você já era”, decretaram numa célebre reunião.

Alternativas a essa dependência começam a germinar. Entre elas, a criação de um fundo do audiovisual que capte também recursos da iniciativa privada. Estacionamos, porém, no anarcooficialismo e nas orações para a Petrobras. Orgulhoso de ter amigos no poder, Edgard Navarro sintetizou o espírito da “novíssima onda”, ao fechar recente artigo com uma pergunta lapidar: “Quem sabe o governo Wagner entrará para a história como aquele que irá inserir a nova cinematografia baiana no cenário mundial?”

Está explicado por que o governador não deve ler jornais antes do café da manhã. "

O esporte favorito do homem





De repente, e sem saber estar programado, vejo O esporte favorito do homem (Man's favorite sport, 1964), de Howard Hawks, no Telecine Cult. Uma surpresa, pois filme difícil de ser visto e que há tempo não dá notícias - a Globo há muito o passou dublado. Velho como estou, vi no seu lançamento, em fins de 1964, aqui em Salvador, no simpático cinema Tamoio, e fiquei impressionado com a modernidade da dinâmica cômica de Hawks, principalmente, na visão do jovem, quando Rock Hudson beija Paula Prentiss e a imagem que se segue é a de trens se espatifando ou, no final, com a imagem repetida e um casal a dizer que o filme acabou. Hawks, cineasta admirável, que incursiou por diversos gêneros sem deixar de ser considerado um autor, tem duas maneiras de conduzir a sua filmografia, por assim dizer. Quando se trata de comédia, há a irrupção de uma certa loucura nos personagens, estabelecendo uma anarquia do mundo, dos homens e das coisas, como são notáveis, a este respeito, Levada de breca, Bola de fogo, O inventor da mocidade, entre tantas outras. Poder-se-ia dizer que o homus hawkisiano é um na comédia e outro nos diversos gêneros percorridos pelo brilhante realizador. Um de meus filmes favoritos, de todos os tempos, é Hatari! (1962), que vi pela primeira vez no Bruni Flamengo, quando este cinema se inaugurou. Há um estilo palpável em Hawks, uma característica que percorre toda a sua filmografia. Em Rio Bravo (Onde começa o inferno, 1959), talvez uma das obras mais que perfeitas da história do cinema, muito mais do que um filme de ação, é uma fita que se passa quase toda em recintos fechados (a delegacia, o hotel), havendo, apenas, o grande tiroteio final. Em Hatari!, o que mais interessa é o que acontece nos intervalos das caçadas.

15 julho 2007

Introdução ao Cinema (4)

Ainda em torno do segundo elemento determinante da especificidade da linguagem cinematográfica: os movimentos de câmera. Ficamos na panorâmica semana passada. Existem, porém, outros exemplos desse movimento específico e de fundamental importância. Vejamos. Há também uma panorâmica chamada circular, que, sobre ser mais complexa na sua execução, não é menos eficiente do ponto de vista da significação. Neste caso, a câmera observa à sua volta num ângulo de 360 graus, normalmente com motivos mais do que válidos. A panorâmica circular é utilizada pelos cineastas para captar os diferentes estados de espírito de uma personagem sem interromper a continuidade espacial, deixando-a alegre para voltar a vê-la triste depois de ter percorrido integralmente a sala onde se encontra. Este é o procedimento que a câmera segue de bom grado nas obras de índole "comportamentista", nas quais os protagonistas nunca são perdidos de vista em todas as suas evoluções físicas e psíquicas (Acossado/A Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard, 1959, é, nesse particular, um exemplo notável). Ou, então, a panorâmica circular é usada para fazer denotar uma situação labiríntica em que o protagonista vive, a despeito das aparências tranqüilizantes. Assim, os repetidos movimentos circulares da câmera em Mundo ao Telefone(Welt am Drht, de Rainer Fassbinder, 1973), não tem outra função que não seja a de denunciar a insuspeita condição de robots manipulados por outrem que aflige todas as personagens do filme.
Passemos, finalmente, ao travelling, outro movimento de câmera importante que constitui fator dramático muito poderoso e pode ser feito para a frente (passagem de um plano geral para um close) ou para trás (passagem de um close para um plano geral). Também, existe o travelling lateral, quando a câmera acompanha o andar de um ator, sem haver, propriamente, uma mudança de plano. A rigor, o travelling se dá através de uma plataforma de quatro rodas, que anda me trilhos ou sobre tábuas, na qual é colocada a câmera para as tomadas me movimento. Há o travelling para a frente, o travelling para trás (ou a ré) e o travelling lateral. Por extensão, compreende-se travelling qualquer movimento de câmera colocada sobre um carro ou veículo (trem, automóvel etc). Os movimentos também podem ser obtidos dispensando-se a base móvel e o tripé de apoio: é o caso da câmera na mão, recurso estilístico e ao mesmo tempo econômico. A câmera na mão é umas das características estilísticas do Cinema Novo brasileiro a partir mesmo do slogan glauberiano: "uma câmera na mão e uma idéia na cabeça".
Diversas combinações desses movimentos são possíveis e determinadas pela necessidade de acompanhar o movimento do objeto filmado ou pela intenção de abarcar um maior campo visual. É de se ressaltar, no entanto, que a mesma tomada pode constar de vários planos interligados, não se podendo confundir, portanto, unidade de tomada com unidade de plano. Para melhor exemplificar os movimentos de câmera, e sua funcionalidade na expressão cinematográfica, que se tome, aqui, um exemplo magnífico de um filme de Claude Chabrol: O Açougueiro (Le Boucher, 1969) no qual há uma cena primorosa no que concerne ao uso, pelo cineasta, da possibilidade locomotiva da câmera. "Le Boucher" é um filme sobre um açougueiro torturado pela mania homicida. Um belo dia, ele confessa o seu afeto à ignara professora da aldeia, declaração que tem lugar num bosque onde os dois se deslocaram para colher legumes. A atmosfera, portanto, seria das mais tranqüilizantes não fora passar-se - durante o colóquio entre ambos -algo que não pode deixar de alarmar o espectador atento. E esse algo não se refere ao comportamento dos personagens - que continuam a dialogar num cenário idílico -mas, e precisamente, ao comportamento da câmera, da máquina de filmar, que, quase inadvertidamente, começa a deslocar-se lateralmente até o primeiro plano de um tronco de árvore se interpor entre ela - a câmera - e o par, escondendo o homem cujas palavras, no entanto, continua-se a ouvir. A vista é desimpedida com a saída do tronco do campo de visão, mas pouco depois desaparece novamente quando o movimento se repete me sentido contrário, conduzindo a câmera à posição inicial. Eis um caso me que um simples travelling se encarrega de denunciar ao espectador a atitude reticente da personagem, encobrindo-a da vista no momento em que se revela ao ouvido.
Esta denúncia, e aqui, neste travelling, se encontra uma das chaves para a compreensão do cinema, considerando a distinção entre narrativa e fábula (que se verá depois me outra oportunidade). Pois bem! A denúncia é dirigida ao público e não,infelizmente, à desventurada professora, que se manterá por um bom tempo na ignorância das verdadeiras intenções do carniceiro degolador. Um movimento inesperado, repentino, da câmera de filmar, é suficiente para colocar o espectador de sobreaviso e o deixar em melhores condições que a vítima inconsciente - como é o caso de Le Boucher. Semelhantes advertências - ou avisos - feitos pela narrativa e não pela história - não se limitam aos filmes ditos policiais, mas se encontram disseminadas, em medida diversa, por todos os textos fílmicos que pretendem seguir a trajetória que conduz da aparência à essência, isto é, que pretendem desmascarar uma realidade falsa.