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27 fevereiro 2009

A estesia que Minnelli provoca

Por falar em Lana Turner no post anterior, despertou-me o desejo de rever Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), de Vincente Minnelli, que já vi mais de vinte vezes. A edição do DVD, que saiu há mais de cinco anos, é primorosa, com extras sobre o caso da morte do amante mafioso de Turner, trailers de A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town), também de Minnelli, o original de The bad..., e a partitura de David Raksin (uma das melhores já feitas para o cinema em toda a sua história) detalhada em seus temas. O que posso dizer é que o assombro me tomou conta, ainda que o filme seja por demais meu conhecido. E dificilmente, hoje, emociono-me no cinema. No passado, quando via determinado filme que causava impacto, este ficava meses e meses no meu pensamento. Os filmes atuais, salvo raras exceções, não são capazes de assombrar, esta a verdade ou, talvez, esteja a acontecer somente comigo, que tenho, modéstia à parte, a considerar meus 58 anos, meio século de cinema - já que comecei a frequentá-lo, com consciência, aos 7, 8 anos.

Filme de poderosa mise-en-scène, bombástica, estilizada, pode parecer, aos olhos de hoje, uma obra que não atenda aos apetites realistas do gado cinéfilo, que se lambuza com bobagens como Quem quer ser milionário?, do palerma Danny Boyle. Mas para se ter uma idéia das injustiças do Oscar, recomendo uma visita ao blog de Saymon Nascimento: http://esperandogodard.blogspot.com/

O título é sugestivo e me faz pensar no Esperando Godot, de Samuel Beckett. Mas Saymon prefere esperar Godard. A vida tem mistérios indecifráveis, não é verdade?

25 fevereiro 2009

Faits Divers


1) Nunca gostei de Danny Boyle. Vi, hoje pela manhã, na casa de um amigo, Quem quer ser milionário? (Slumdog millionaire) e achei simplesmente um lixo. Sem papas na língua, e meio deseducado, creio que o espetáculo cinematográfico está, realmente, em processo de regressão. Boyle, e pela cara dele se vê que é um nerd, porém um nerd esperto e oportunista, atento às circunstâncias, aos modismos, às oportunidades temáticas. Vê-se isso desde Trainspotting (1996), que causou, na época de seu lançamento, uma espécie de frenesi, quando, na verdade, não passa de um filme oportunista e datado. Há aquela cena na qual Ewen McGregor (revelado por Boyle) afunda numa latrina e viaja pelos excrementos fecais. Em Quem quer ser um milionário? também há um momento em que o menino sabichão pula em enorme quantidade de fezes (que causa ojeriza no espectador) para entrar em contato com um ídolo. Boyle gosta, desculpem a expressão, mas a expressão da verdade, Boyle gosta mesmo é de merda. Arrependi-me de ter saído de meu apartamento para ir ver este filme de Boyle, ainda que na casa de um amigo afável e simpático. É que prefiro esperar para ver o filme no cinema. Já tive oportunidade, por exemplo, de ser convidado para ver Gran Torino, de Clint Eastwood, baixado da internet, e me recusei. Há casos em que aceito, quando não há possibilidade de contemplação em DVD ou telão de cinema. De forma que fiquei decepcionado com a premiação dessa merda (estou realmente contrariado não com a Academia de Hollywood, mas com o filme de Boyle) com tantos Oscars. Sinal, realmente, dos tempos! Dificilmente, ainda que os critérios da Academia sejam altamente discutíveis, viu-se, na história do cinema, um filme tão ruim ser amplamente premiado. Chego, inclusive, a perder a compostura para falar de Slumdog millionaire. E a indignação inibe o comentarista.

2) Houve protestos da gandaia politicamente correta contra a entrega do Oscar para Jerry Lewis, porque este tinha declarado que quem anda de cadeira de rodas vive numa prisão. Jerry deu o troco na sua fala, quando disse que a sua contribuição para as pessoas que tinham a doença muscular paralisante não foi feita para ganhar prêmio. E realmente! Como um gênio de sua raça não ter já recebido vários Oscars em sua fulgurante carreira? Também a genialidade do cinema que era praticado em épocas passadas não mais se configura nos tempos contemporâneos. Para as pessoas que curtem cinema nos tempos modernos, Jerry Lewis é uma peça de museu. A bem dizer, a nova geração pensa que a história do cinema começou com Blade Runner, de Ridley Scott, em 1982. Lewis merecia uma retrospectiva em imagens de alguns momentos antológicos de sua carreira. Mas, de qualquer forma e de qualquer maneira, a sua entrada em cena fez com que todos presentes se levantassem e o aplaudissem de pé (Sophia Loren, Anthony Hopkins, entre eles). O cinema, que é mise-en-scène, recebeu um grande impacto quando Jerry Lewis passou a dirigir seus filmes a partir de 1959 em O mensageiro trapalhão(The bell boy), cuja culminância se dá na obra-prima que é O otário (The patsy, 1964), passando por outras, entre as quais, O professor aloprado e O terror das mulheres. O aloprado, na expressão da palavra, é Danny Boyle, este, sim, um nutty.

3) Nunca tinha visto, por incrível que pareça, Imitação da vida (Imitation of life, 1959), de Douglas Sirk, melodrama soberbo, com Lana Turner, John Gavin, entre outros, e o vi graças ao Telecine Cult, que o tem em sua grade programativa. É um filme de uma beleza indescritível. Conhecia quase todos os outros de Sirk, principalmente Palavras ao vento, Almas maculadas, Tudo que o céu permite, revistos várias vezes. Mas Imitation of life é a sua obra-prima. Uma mulher, Lana Turner, viúva, com uma filha pequena, encontra, por acaso, na praia de Coney Island, no Carnaval de lá (Mardigras), em 1949, uma outra mulher, negra, que tem uma filha branca. Esta vai trabalhar na casa de Lana e entre ambas se desenvolve uma grande amizade. O problema começa quando a filha da mulher negra, que passa por branca, se revolta com a sua condição de ser filha de uma pessoa de cor. Os conflitos começam, então, a surgir. Uma obra que reflete não apenas sobre o racismo na sociedade americana, mas também sobre a ambição, sobre o orgulho e a vaidade. E indescrítível a beleza da posta-em-cena, o uso da cor como sugestão dramática, etc. Depois de ver Imitação da vida é que vi Quem quer ser um milionário? Água e vinho, quantidades heterogêneas. Genialidade e incompetência. Beleza e fealdade. Dois filmes antípodas.

Na foto Lana Turner e Sandra Dee em Imitação da vida.

24 fevereiro 2009

Carnaval e indigência


No Carnaval baiano reina a discriminação. Os espaços nobres são loteados para os turistas e a classe dominante. Os camarotes, de alto luxo, são mordomias que não estão à disposição dos menos aquinhoadas pela sorte. A tradição escravista é exemplar. Creio salutar transcrever, hoje, terça gorda de Carnaval, artigo do Professor Fernando Conceição, lúcido e coerente, que saiu em A Tarde:
"Carnaval e outra vez, como nas últimas duas décadas e meia – com a industrialização dessa festa popular -, quem tem olhos e sensibilidade viu. Foi a repetição do espetáculo daquilo que Maria de Azevedo Brandão uma vez classificou de uma das faces da propalada “baianidade”: o lado perverso de convenções naturalizadas no cotidiano das relações sociais dessa porção territorial denominada de recôncavo, Salvador incluso. Região onde ainda hoje predominam fortes resquícios das tradições escravocratas.

Não apenas os chamados “cordeiros”, atividade em vias de sindicalização por espertalhões politiqueiros, são a imagem gritante de uma sociedade zelosa na manutenção de hábitos medievais. Os farrapos humanos pululam em todas as esquinas e desvãos da festa, para o deleite de uma ordem-de-coisas que determina o lugar do branco e do negro, do rico e do pobre, do turista e do nativo. A “terra da alegria” e de “todos nós” dos slogans governamentais convive, de forma conveniente, pari pasu com o chicote (real ou mental) no lombo da maioria.

A afirmação, por vezes orgulhosa, de que “a África é aqui”, registra também o que há de mais horroroso no olhar colonialista do passado: a inferiorização e a brutalização do colono, do serviçal, do escravo. De fato, no circuito da folia, enquanto brilham as estrelas nominadas pela indústria cultural, com seu aparato midiático composto por profissionais que vão de áreas tão distintas como o marketing, jornalismo, “promoters” e grupos de segurança, de um lado das cordas e lá em cima nos camarotes tudo é alegria. O que há de lacônico, lúgubre, nefasto, transita do lado de fora.

O Carnaval soteropolitano é a síntese dos nossos contrastes. É exemplo da clássica microfísica de poder foucaultina, na qual quem pode pisa no que está abaixo ou ao lado. Tais contrastes estão presentes antes e depois do interregno da festa. No regime servil há como se um acordo tácito entre o algoz e a suposta vítima, que aceita servir, às vezes abrindo os dentes (banguela?). O gado humano, pisoteado nas cancelas dos ferry-boats, estádios de futebol, teatros, festas populares, mesmo que pagando ingresso, tudo aceita do nhô-nhô.

Assim, enquanto os capitalistas da hotelaria, da indústria fonográfica, do comércio de drogas e do turismo sexual vêem seu saldo bancário engordar, os vendedores ambulantes, famílias inteiras à cata das sobras dos foliões, serão citados pelas estatísticas da propaganda oficial como partícipes do saldo econômico gerado nesses dias. Números diversos, à potência de milhões, serão trazidos em linguagem de economês para asseverar o êxito do evento, que tudo pára e ao mesmo tempo mobiliza. Empresários, intelectuóides da cultura e políticos contabilizarão como lucro o que, em realidade, é a pura indigência de muitos."

FC I Jornalista, professor da Ufba, pesquisador-visitante na Universidade Livre Berlim (Alemanha).
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22 fevereiro 2009

O rei da comédia

Sérgio Augusto, discípulo de Antonio Moniz Vianna, o maior crítico de cinema que o Brasil já teve (Walter da Silveira foi um ensaísta, bem entendido), famoso jornalista carioca, exerceu também a crítica cinematográfica nas décadas de 60 e 70, considerado um dos mais perspicazes analistas da arte do filme. No momento em que Jerry Lewis fez 80 anos, ele, o mais competente exegeta do comediante, escreveu, no Estadão (25.03.2006), um excelente artigo, cujos principais textos vou transcrevê-los aqui nesta coluna, tomando, porém, o cuidado de apor, neles, as devidas aspas.

Quando o conheceu pessoalmente, em carne e osso:

Hollywood, sábado, 2 de novembro de 1963, por volta das 18 horas. A alguns metros de mim, Jerry Lewis em carne, osso, volteios e caretas. Dos jornalistas convidados para a estréia mundial do filme Deu a Louca no Mundo, eu era o mais jovem, quase uma criança, e, certamente, o mais ardoroso fã de Lewis na platéia de seu show de TV, naquela noite dedicado à multiestelar comédia de Stanley Kramer. O que significa que ao show compareceu quase todo o elenco do filme: de Milton Berle e Sid Caesar a Mickey Rooney e Jimmy Durante, passando por Ethel Merman, que nos brindou com um pot-pourri de Cole Porter. Não obstante, o infante aqui só tinha olhos para o mestre-de-cerimônias. Que não me decepcionou, roubando a cena com os pés nas costas - ou quase isso literalmente. Agitado, sarcástico, inteligente (145 de Q.I., a mesma marca de Benjamin Franklin e Galileu), cheio de cacoetes, inteligente, fumando sem parar. Nenhuma decepção: era esse mesmo o Jerry Lewis que eu imaginara encontrar - o meninão espasmódico, o bagunceiro arrumadinho, o biruta absurdista. Podem ficar com Jim Carrey. Não aceito imitações.”

E mais: “Como explicar, sem a psicanálise, as freqüentes posições fetais de seus personagens, o gosto pelas calças curtas e meias soquetes, as carências afetivas, os constantes conflitos familiares, os pesadelos, as fobias, as transferências, a fixação em heróis dos quadrinhos? Seu incontrolável narcisismo seria o único responsável por sua volúpia transformista? Lewis se desdobrava em dois em Mensageiro Trapalhão, O Professor Aloprado e O Fofoqueiro, e em sete em Uma Família Fulera. Ok, Alec Guinness encarou oito papéis em As Oito Vítimas, mas nunca encarnou, de lambujem, a própria mãe, como Lewis fez em O Terror das Mulheres.”

Descoberto pelos franceses: “Desprezado pelos críticos americanos, inclusive por aqueles mais afinados com o gosto da crítica francesa, como Andrew Sarris, Lewis transformou-se na segunda maior idiossincrasia francesa aos olhos dos francófobos da direita americana. A primeira continua sendo o escargot, que talvez já tivesse perdido a supremacia se Lewis ainda fosse o que era na década de 60. O governo francês lhe deu a Légion d'Honneur, a Cinemateca Francesa dedicou-lhe uma retrospectiva em 1964 e o Festival de Cannes o convidou para jurado e para receber um prêmio especial em 1979. Saiu na França, em 1970, o primeiro ensaio monográfico a seu respeito: o volume 59 da coleção Cinéma d'Aujourd'hui, da Seghers, escrito por Gérard Recasens.”

Ainda mais: “Por estas bandas, as mais simpáticas acolhidas às comédias de Lewis traziam a assinatura de Moniz Vianna, que aprendera a gostar do comediante nasmelhores patuscadas (Artistas e Modelos e Ou Vai ou Racha) da dupla JerryLewis-Dean Martin dirigidas por Frank Tashlin, e José Lino Grünewald, para quem Lewis cineasta, discípulo assumido, porém mais ousado, de Tashlin, até porque mais metalingüístico, "fez o cinema absorver o moderno com uma precisão avassaladora" - notadamente a partir de O Terror das Mulheres, atingindo o ápice com a mais inventiva e perturbadora adaptação de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson: O Professor Aloprado. Claro que não foi da refilmagem de The Nutty Professor, com Eddie Murphy, que tiraram o professor John Frink da série Os Simpsons.

“A dupla Martin-Lewis (sim, por incrível que pareça, era nessa ordem) encheu de alegria a minha infância. Revistas com olhar adulto, só as duas citadas comédias de Tashlin, marcadamente influenciadas pelo desenho animado, talvez se salvem sem arranhões. Não eram sucedâneos de Laurel & Hardy (o Gordo e o Magro), admirados com igual intensidade. Nem de Abbott-Costello, embora também fosse de origem italiana o sem graça da dupla, Lou Costello. Mas um abismo separava os talentos de Bud Abbott e Lewis. Martin e Lewis trabalharam juntos dez anos. Em clubes noturnos, no rádio, na TV, nos estúdios da Paramount (onde rodaram 16 filmes) e em Las Vegas. Arrasaram na bilheteria entre 1950 e 1956, façanha que Lewis esticou, sozinho, até 1964.”

Jerry na velhice: “Como está? Fora de forma, gordo e safenado, vivendo de rendas, pequenas aparições em filmes alheios (negocia uma aparição relâmpago no paródico Horrorween, a ser rodado no ano que vem), homenagens e publicidade (enfiou um copo na boca para anunciar a vodca Absolut). Por pouco não morreu antes de Martin, vitimado por uma droga (Percodan, substituto da morfina, que tomava contra as seqüelas de uma queda de mau jeito no programa de Andy Williams), por um enfarte, após as filmagens de O Rei da Comédia, de Martin Scorsese, em 1982, e por um câncer da próstata, extirpado com êxito em 1992. Hoje luta contra o diabete e uma fibrose pulmonar. Nunca ter perdido o senso de humor é a melhor prova de sua saúde psíquica.”