Muito mais do que uma data comemorativa, os 63 anos de "Ladrões de bicicleta" ("Ladri di biciclette", 1948), que se completam neste 2011, que já se encontra no ocaso, refletem a dimensão temporal de um marco do neo-realismo italiano que modificou profundamente a maneira de se fazer cinema.
Sobre ser um filme que ultrapassa o documento de uma época, para se revelar um monumento divisor-de-água do cinema moderno, pleno de um humanismo desaparecido da cinematografia contemporânea, esta obra de autoria de Vittorio De Sica (diretor) e Cesare Zavattini (roteirista) oferece à história do cinema não somente uma evolução como também, e principalmente, um modelo que iria influenciar sobremaneira toda a geração de realizadores posteriores.
Talvez o Cinema Novo não existisse sem o neo-realismo italiano, assim como o Free Cinema inglês e outras manifestações referentes a uma nova postura diante da realidade, uma inédita representação do real. O neo-realismo tem tanta força que influencia até os dias atuais o cinema no mundo (a maioria dos filmes que se faz no Irã que outra característica tem senão o forte acento neo-realista?).
Por outro lado, é verdade que o ponto de partida neo-realista (sem falar dos seus precursores) é "Roma, cidade aberta" ("Roma, città aperta"), de Roberto Rossellini, que data de 1945. Esta obra, de um mestre renovador (que instaurou, nos anos 50, ao lado de Michelangelo Antonioni, a desdramatização e a liberdade em relação ao "roteiro de ferro"), não possui, entretanto, com o passar dos anos, a mesma atualidade, a mesma envolvência, o mesmo espanto que ainda causa, nos dias de hoje, "Ladri di biciclette". "Roma, città aperta" é um grande filme, um momento de extrema urgência para o realismo cinematográfico, mas um filme circunscrito aos fatos da época ou, numa palavra, datado.
O neo-realismo (termo criado pelo esteta Umberto Barbaro) caracteriza um cinema que procura focalizar a realidade de um momento histórico, qual sejam as condições de vida na Itália logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Na década de 40, o cinema era Hollywood, o "star-system" (o sistema de astros e estrelas), o "system-studio" (o sistema de estúdios), com o predomínio do cinema de gênero e os filmes todos feitos nos interiores dos estúdios.
Nos postulados de Zavattini, havia a necessidade de os realizadores cinematográficos abordarem a realidade "in loco" sem enfeites, com as filmagens nas ruas, na cidade. Seu manifesto do "descer às ruas" é eloqüente nesse sentido, além de, também, procurar dar ênfase ao humanismo. A utilização de atores não-profissionais tinha a função de desglamurizar o espetáculo cinematográfico.
Do interior hollywoodiano, passava-se ao exterior das ruas de Roma, e, por extensão, das ruas de todas as cidades cujos cineastas apostaram na concepção neo-realista do cinema. A influência desta vai até ao cinema de Hitchcock (cineasta, por excelência, de estúdio), que, com "O homem errado" ("The wrong man"), filmado em Nova York, adere, ainda que por pouco tempo e por um único filme, à necessidade de representar o homem no seu "habitat" natural.
Claude Beylie, exegeta francês, disse que "Ladri di biciclette" é uma parábola sobre a solidariedade humana, chegando a compará-lo a uma obra-prima inconteste do cinema: "Em busca do ouro" ("The gold rush", 1925), de Charles Chaplin. E disse mais sobre este filme "sessentão": "Sob a máscara da constatação objetiva de um país arruinado pela guerra," Ladrões de bicicleta", como, mais tarde, "Milagre em Milão" (1951) e "Umberto D" (1952) - todos de DeSica, denuncia, na verdade, a impotência das instituições para resolverem dignamente os dramas do proletariado".
Ettore Scola, em 1974, com seu poético "Nós que nos amávamos tanto" ("C'eravamo tanto amanti!") faz alusão a este filme de Vittorio DeSica através de um crítico de cinema que o tem como um de seus filmes preferidos e chega, inclusive, a participar de um programa de televisão para responder sobre o método que o diretor empregou para fazer o filho do operário, Enzo Staiola, chorar. A sua resposta, porém, não o faz vencedor, mas anos mais tarde, vem assistir ao próprio DeSica (em sua última aparição nas telas) contar como fez para extrair a emoção de seu pequeno personagem.
Em Roma, um operário desempregado (Lamberto Maggiorani) consegue um emprego para o qual é preciso possuir uma bicicleta. Para consegui-la, sua mulher penhora seus bens domésticos, mas logo no primeiro dia do trabalho a bicicleta lhe é roubada. O filme é a história da busca do veículo até que, ao constatar que este é praticamente irrecuperável, o operário decide, por sua vez, roubar uma bicicleta em dia de muita agitação às portas de um estádio de futebol. Mas é surpreendido e recriminado por seu filho, com o qual, lado a lado, efetuou a procura de seu instrumento de trabalho.
Há, evidente, e ao contrário do esquema narrativo "in crescendo" hollywwodiano, uma certa desdramatização do tema, com os atores e cenários naturais, inseridos num contexto social determinado. A busca é um pretexto para a exposição das mazelas deixadas pela guerra recém-findada. O que faz de "Ladri di biciclette" uma obra tão expressiva e de impressionante atualidade é que os personagens são seres vivos (atualmente na maioria dos filmes oriundos da industrial cultural de Hollywood os personagens são títeres e meros condutores da ação). E a cenografia está eleita por um critério tal que transcende o mero naturalismo para se converter em verdadeiro elemento expressivo.