Seguidores

18 setembro 2008

A volta de "Momentos da arte do filme"

Na foto, a bela e eterna Monica Vitti (a musa de Michelangelo Antonioni) ao lado de Terence Stamp (quem se lembra dele em O colecionador/The collector, 1963, de William Wyler?) Todos estão lembrados de Stamp como o anjo pasoliniano de Teorema, e naquele episódio genial, cujo nome me esqueço, uma espécie de cowboy eclesiástico, de autoria de Federico Fellini em Histórias extraordinárias (os outros são de Louis Malle e Roger Vadim, todos se não há engano do blogueiro baseados em Edgard Allan Poe).
Tudo isso para dizer que estou a retornar, após um recesso injustificável, com o meu outro blog Momentos da Arte do Filme, e o retorno se dá com um vídeo do You Tube que apresenta um momento de Modesty Blaise, filme pelo qual tenho grata recordação e, além do mais, é de autoria de Joseph Losey. Foi o que pude achar, e me lembrar, no afogadilho da pressa dessa retorno. Que se faça, então, ao link, onde mora o outro blog: http://setaroandreolivieri.blogspot.com/

17 setembro 2008

Prima della Rivoluzione



Bernardo Bertocucci é, atualmente, um dos cineastas que melhor trabalham na criação cinematográfica. Bertolucci tem um sentido aguçadíssimo de cinema, da mise-en-scène, que dificilmente pode ser encontrado entre os realizadores da chamada contemporaneidade, honradas as exceções de praxe. Se a nobreza do cinema italiano (Visconti, Fellini, Rossellini, Antonioni, etc) caiu, e caiu de forma avassaladora na atualidade, restou Bertolucci como um príncipe perdido num cipoal de mediocridades. O seu talento se verifica desde o começo, principalmente em Antes da Revolução (Prima della Rivoluzione, Itália, 1963/4), talvez a sua mais importante obra, que, por causa de uma dessas injunções do mercado exibidor brasileiro, levou 25 anos para ser lançado no Brasil - o que aconteceu em 1998.

É um cinema típico dos anos 60, a década da renovação da linguagem cinematográfica, da procura de uma expressão longe dos cânones estabelecidos, quando se queria, intensamente, romper com as estruturas acadêmicas da linguagem fílmica. O tempo, juiz supremo, se encarregou de separar o joio do trigo, o alho do bugalho, mas Prima della Rivoluzione, revisto hoje, conserva um impacto e um frescor surpreendentes. É um cinema de invenção de fórmulas, de mergulho intenso nas interrogações da vida, de perplexidade ante o estar-no-mundo.

O jovem marxista Fabrizio (Francesco Barilli) - nesta época, vale lembrar, Bernardo Bertolucci pertencia ao Partido Comunista Italiano - cujo guia ideológico, mentor intelectual, é Cesare (Morando Morandini), um professor universitário, sofre uma grave crise após o suicídio de seu melhor amigo. As certezas se tornam dúvidas e Fabrizio entra num processo de angústia. Consola-se com sua tia Gina (Adriana Asti), uma mulher bem mais velha e extremamente neurótica, que, por compaixão, aceita ter um caso com o sobrinho. Mas ela foge de Parma com Cesare para desespero de Fabrizio, que abandona seus sonhos revolucionários e se dá por vencido. O revolucionário depõe as armas e decide se aburguesar, aceitando um casamento que o integra, definitivamente, ao mundo da burguesia.

Parma é uma cidade das raízes de Bertolucci. Um ato de amor a ela está plasmado no plano inicial, quando um travelling irrompe na sua praça principal, revelando a sua beleza, a sua arquitetura e a sua poesia. O jovem Fabrizio pode ser considerado um alter ego do autor, inclusive num momento no qual discute com o amigo a função do cinema na sociedade contemporânea. A fotografia em preto e branco de Aldo Scarvada é um ponto a destacar, assim como a partitura de três grandes maestros: Ennio Morricone, Gato Barbieri e Gino Paoli.

Prima della Rivoluzione é um filme sobre as inquietudes intelectuais de uma geração, e, também, uma celebração do cinema como ato criador e transformador. Beleza, como diria Godard, ao mesmo tempo que a explicação da beleza, arte ao mesmo tempo que a explicação da arte, cinema ao mesmo tempo que a explicação do cinema. O título vem de uma frase de Tayllerand: 'Quem não viveu os anos antes da Revolução não pode compreender o que é a doçura de viver'. Esta confissão, de um filho do século como Bertolucci, pode se situar como uma moderna e pungente educação política e sentimental. O cineasta de O Último Tango em Paris analisa, neste seu segundo longa, com uma sensibilidade febril, a trajetória de um jovem de Parma (como ele) na efervescente década de 60.

Assim, Prima della Rivoluzione é, antes de tudo, um filme de sua época. E o faz através de relato em primeira pessoa de patéticos acentos autobiográficos, quando efetua o processo implacável de conceitos como a pureza da abstração revolucionária, que conduz o jovem protagonista a uma dupla derrota. Sentimental - o amor frustrado de Fabrizio por Gina - e a derrocada do ideal mítico da revolução - na qual se exemplifica toda uma página da história italiana contemporânea.A elegância dos diálogos, onde se pode sentir a influência de Stendhal e Flaubert, o sentido de observação da mise-en-scène, em momentos fortíssimos como a despedida dos amantes durante a representação da ópera Macbeth, e a poética na condução narrativa, fazem de Bernardo Bertolucci, ainda neste segundo filme, um dos mais importantes cineastas italianos de todos os tempos. Se atualmente se contempla a anemia de uma cinematografia que forneceu Antonioni, Fellini, Visconti, De Sica, Bertolucci, entre tantos outros gigantes, a visão de Prima della Rivoluzine serve, quando nada, para se sentir a grandeza de um cinema, de um tempo e de um espírito de época.

14 setembro 2008

O surrealismo no cinema

O cineasta, quando realiza um filme, traduz o real, e, no cinema, há, basicamente, quatro modos de representação da realidade: (1) o realismo e suas variadas vertentes (neo-realismo, realismo poético, realismo socialista...); (2) o idealismo (também conhecido como intimismo cujo apogeu se dá com a idade de ouro do cinema americano – anos 30 e 40); (3) o expressionismo (Alemanha nos anos 10 e 20); e (4) o surrealismo, que tem em Luis Buñuel a sua maior expressão. O grande público está mais acostumado com o realismo e o intimismo. Um filme surrealista sempre deixa nele uma impressão de confusão, pois habituado a ver tudo mastigado, com uma explicação racional e lógica para as artimanhas do enredo. Vamos ver aqui em rápidas pinceladas o que vem a ser o surrealismo no cinema.

O surrealismo parte de uma atitude revolucionária em filosofia, cujo verdadeiro objetivo não consistiria em interpretar o mundo, mas, sim, em transformá-lo. Na forma exposta por seu principal animador, André Breton, o surrealismo revela forte influência do materialismo dialético, dele retirando sua “lógica da totalidade”. Assim como o sistema social constitui um todo e nenhuma de suas partes pode ser compreendida separadamente, a arte não deve ser o reflexo de uma parcela de nossa experiência mental (a parcela consciente), mas uma síntese de todos os aspectos de nossa existência, especialmente daqueles que são mais contraditórios.

O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação, e nisto está sua capacidade de passar do estático para o dinâmico, de um sistema de lógica a um modo de ação, o que é uma característica da dialética marxista. O cinema se revelou como o instrumento ideal para a conquista da supra-realidade, pois a câmera é capaz de fundir vida e sonho, o presente e o passado se unificam e deixam de ser contraditórios, as trucagens podem abolir as leis físicas, etc.

Quando Buñuel apresentou, em Paris, O Anjo Exterminador (1961), o exibidor lhe solicitou que escrevesse alguma coisa para colocar na porta da sala de exibição. Buñuel rabiscou o seguinte: “A única explicação racional e lógica que tem este filme é que ele não tem nenhuma”. Noutra ocasião, ao ganhar o Leão de Ouro de Veneza por A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1966), lhe perguntaram o significado da caixinha de música que um japonês carrega quando no quarto com Catherine Deneuve. O cineasta respondeu que não sabia. Assim, o espectador não pode racionalizar dentro de determinada lógica nos filmes surrealistas. É claro que os significados existem, amplos, dissonantes e insólitos. E por que os convidados aristocráticos de O Anjo Exterminador, ainda que não haja nenhum obstáculo que lhes impeçam de sair, não conseguem evadir-se da mansão? Um recurso surreal para a análise da condição humana, um laboratório criado para se investigar pessoas numa situação-limite.

Excetuando-se alguns ensaios vanguardistas e sua fugidia presença em comédias de Buster Keaton, Jerry Lewis, Jim Carrey, em filmes de Carlos Saura (Mamãe Faz Cem Anos, etc), Jean Cocteau (O Sangue de um Poeta/Le sang d’un poete), entre poucos outros, o surrealismo cinematográfico está inteiramente contido em Un Chien Andalou (1928) e L’Age D’Or (1930), ambos do espanhol Luis Buñuel, com colaboração de Salvador Dali. A cena inicial do primeiro é famosíssima: o próprio Buñuel, após contemplar uma enorme lua prateada no céu, afia uma navalha e corta pelo meio o globo ocular de uma mulher que está sentada. No segundo, vemos um cão ser arremessado pelos ares, uma vaca deitada sobre a cama, um bispo e uma árvore em chamas sendo despejados por uma janela, situações de delírio erótico, baratas numa mão que toca pianola, etc.

A ambigüidade do termo surrealismo pode sugerir transcendência, predomínio da imaginação sobre a realidade. Estaria na imaginação de Séverine sua ida ao bordel todas as tardes? A rigor, isso não importa, A significação é mais ampla, conecta-se mais ao discurso do modo de tradução do real. O surrealismo pretendia um automatismo psíquico que expressasse o funcionamento real do pensamento. Você, caro leitor, às vezes não tem pensamentos indesejáveis? É o inconsciente. Assim, e isto é muito importante, o domínio do surrealismo é o que acontece na mente humana antes que o raciocínio possa exercer qualquer controle. O papa surreal André Breton dormia com um caderno em cima do criado mudo para anotar os seus sonhos, chamando, tal comportamento, de escrita automática.

O automatismo provocado pelo surrealismo implica numa transfiguração anárquica do mundo objetivo, cujo efeito imediato é o riso. Mas o humor, aqui, é uma nova ética destinada a sacudir o jugo da hipocrisia. E o sonho é encarado como uma revelação do espírito, sendo afirmada a sua riqueza sob o duplo ângulo da psicologia e da metafísica. Para chegar à consciência integral de si próprio, o homem tem de decifrar o mundo do sonho, pois deixá-lo na obscuridade representa uma mutilação do nosso ser.

Un Chien Andalou e L’Âge d’Or procuravam, pois, o homem integral, “buscando a recuperação total de nossa força psíquica por um meio que representa a vertiginosa descida para dentro de nós mesmos, a sistemática iluminação de zonas ocultas”, como consta do manifesto de Breton. Neles têm um papel saliente o grotesco, o cruel, o absurdo, tudo com um sentido de revolta e solapamento.

Segundo Breton, qualquer divisão arbitrária da personalidade humana é uma preferência idealista. Se o propósito é o conhecimento da realidade, devemos incluir nela todos os aspectos de nossa experiência, mesmo os elementos da vida subconsciente. Essa é a pretensão do surrealismo, movimento artístico que abrangeu além da pintura, escultura e cinema, também a prosa, a poesia, e até a política e a filosofia.