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08 março 2008

Sobre o genial Frank Tashlin



Um grande cineasta que se encontra na vala comum do esquecimento é Frank Tashlin. Ainda que goste muitíssimo de Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960), para mim o melhor filme de Billy Wilder, vejo, porém, nele, notórias influências de Em busca de um homem (Will success spoil Rock Hunter?, 1957), com Jayne Mansfield (que Tashlin conseguiu a proeza de fazê-la uma comediante neste e em outro filme), Tony Randall. Esta obra importante, sobre ser uma comédia deliciosa, é um espetáculo metalinguístico avant la lettre. Trata, assim como na fita de Wilder, de ascensão profissional dentro de uma empresa, e a cena da chave do banheiro executivo é hilariante (I. A. L. Diamond e Wilder a copiaram, sem desmérito para o filme, de Will success spoil Rock Hunter?) É uma pena que não possa ser encontrado em DVD - pelo menos não tenho disso conhecimento - e a causa é o esquecimento completo de Frank Tashlin. Mas este realizador fez a alegria dos cinéfilos dos anos 50 e 60. Não apenas por este primor que é Will success spoil Rock Hunter? (o título em português é totalmente idiota), mas também por outros exercícios de metacinema e de humor contagiante realizados por Tashlin, a exemplo de Sabes o que eu quero (The girl can't help it, 1956), também com Mansfield, Tom Ewell (aquele de O pecado mora ao lado cuja família sai de férias e ele descobre, sozinho, que a sua vizinha é a esfuziante Marilyn Monroe em obra também do grande Wilder). Em The girl can't help it o filme começa em tela plana e preto e branco com Tom Ewell a falar para o espectador, a dizer que o filme é em cinemascope colorido. É então que a tela se abre na largura do formato. Tashlin é de um humor devastador e foi ele quem sinalizou para Jerry Lewis, genial, a verdade do processo de criação no cinema. Mas Lewis extrapolou o humor explosivo do mestre, transcendendo-o. Se a gag tashliniana quase chega a provocar uma explosão em Lewis esta ocorre realmente num non sense paradoxal. Basta dizer que no ano de sua morte, 1974 (nasceu em 1913), Tashlin já estava esquecido. É muito possível que o especialista Romero Azevedo o conheça e o tenha de cor pelo menos nos seus principais filmes.
Will success spoil Rock Hunter? passou há cinco anos no extinto Telecine Classic, quando pude revê-lo, pois meu conhecimento desta obra quase prima se deu em verdes anos. A exibição se deu na mesma época de The girl can't help it e, até hoje, me arrependo de não tê-los gravado em fita magnética. Neste último trabalha também Edmond O'Brien (o inesquecível jornalista bêbado de O homem que matou o facínora, de John Ford) numa caracterização totalmente anárquica.
Nesta época de intensa globalização e perda de humanismo no cinema e em tudo dificilmente seria realizado um filme como Will success spoil Rock Hunter?, pois a sua mensagem, à parte toda a anarquia da comédia e da sua metalinguagem - de repente o filme se interrompe como se o projetor estivesse quebrado, é pelo humanismo e contra o sistema. O dono da empresa, no final, a abandona para fazer o que mais gosta: cultivar rosas em seu jardim.

Não posso citar todos os grandes filmes de Frank Tashlin, mas que venham aqui alguns de minha preferência: Artistas e modelos (Artists and models, 1955), com Lewis e Dean Martin, O tenente era ela (The lieutenant wore skirts, 1956), com Sheree North e Tom Ewell, Ou vai ou racha (Hollywood or bust, 1956), de Martin e Lewis, e, ainda, Anita Ekberg pré-doce vida, Bancando a ama-sêca (Rock a bye baby, 1958), com Lewis solo, o surpreendente O rei dos mágicos (The geisha boy, 1958). Neste, em Tóquio, um japonês gordo cai na piscina do hotel e inunda toda a cidade. E Armadilha para solteiros (Bachelor flat, 1962), com a gostosíssima Tuesday Weld e Richard Beymer (que tinha acabado de trabalhar em West Side Story).

Romero e suas mulheres cinematográficas

Para homenagear o dia das Mulheres, que transcorre hoje, sábado, Romero Azevedo faz aqui suas divagações cinematográficas sobre elas.
Nossa homenagem a todas as mulheres do mundo...
Entre elas: Dona Flor e seus dois maridos, Anahy de las misiones, Soninha toda pura, As moças daquela hora, As amorosas, Ana e os lobos, Hannah e suas irmãs, As cariocas, Telma e Louise, Mademoiselle cinéma, Lucíola o anjo pecador, Leila para sempre Diniz, A mãe, A filha do advogado, Ângela, Anésia um vôo no tempo, Ana Terra, Cleópatra, Julieta dos espíritos, Ana a libertina, A mulher de todos, Cabíria, Annie Hall, Lisbela e o prisioneiro, Marnie, Barbarella, A dama das camélias, Cat Balou, A princesa e o plebeu, A bela e a fera, Elivira Madigan, Branca de Neve, Tati a garota, My fair lady, Maria 38, A noviça rebelde, A mulher de quinze metros, Olivia Palito, A freira que queria casar, Helena de Tróia, Ana dos mil dias, Elizabeth, Rosa Meia-Noite, Miranda, Kika, Rosa Luxemburgo, Pagu, A dama de Shanghai, A dama do cine Shanghai, Miss Daisy, Lili Carabina, A velha dama indigna, Anna Sullivan, Joana Francesa, A dama enjaulada, As libertinas, Lucia MacCartney, Fulaninha, Stelinha, Betty Boop, Cinderela, Modesty Blaise, Bety Blue, Monela a travessa, Carlota Joaquina princesa do Brazil, Menina de ouro, Mulan, A pequena sereia, Madame Rosa, A noiva cadáver, Bete Balanço, Nikita programada para matar, A penúltima donzela, Emanuele, Madame X, Emanuele tropical, A garota da motocicleta, Lady L, Lilian M, A mulher do tenente francês, Garotas do ABC, As safadas, Garota de Ipanema, Lolita, Katie Elder, Tammy, Jane, Nyoca, Paulina, A noiva da cidade, Mulheres à beira de um ataque de nervos, As seis mulheres de Adão, As meninas de madame Laura, Ivone a rainha do pecado, Iracema a virgem de lábios de mel, A dama do lotação, A viúva virgem, Gabriela, Tieta do agreste, Nina, Olga, Engraçadinha, Gigi, Dalila, A noiva de Frankenstein, Mulher Maravilha,, Arabella, Bonequinha de luxo, Bridget Jones, Bonequinha de seda, Mary Poppins, A menina do lado, A inconquistável Molly, Mulher nota 10, Anuska manequim e mulher, A malvada, Roxanne, Mulher Morcego, Rita Sue, Sweet Charity, Minha doce gueixa, Camille, A dama de vermelho, A viúva Valentina, Uma certa Lucrecia, Mona Lisa, As deusas, A estrela nua, Pretty Woman.........e Viva Maria !

07 março 2008

O "Pensador"

Expressiva foto para hoje, dia de absoluta falta de assunto. E uma imagem, diziam, acho que os chineses, vale mais do que mil palavras. Pensei numa versão patética do Pensador, de Rodin. O fato é que quem tirou a fotografia teve um momento de inspiração. Na verdade, sempre há um assunto, alguma coisa para dizer, mas o blogueiro está com muita preguiça. Para vê-la melhor é bom dar um clique na fotografia que ela se abre maior e com mais definição em outra janela de seu computador.
O artista é Ron Mueck

"Ron Mueck was born in Melbourne and moved to England in the early1980s. He became a successful model maker but found the work-to-orderregime a challenging one. Eager to make more personal sculptures, hisextraordinary Dead Dad, a small-scale hyper-real sculpture of his deadand naked father was the surprise show stopper at the London RoyalAcademy's controversial show Sensation (1997) which featured worksfrom the collection of Charles SaatchiPregnant woman is Mueck's most ambitious work to date. The sculptureis monumental (2.5m high), utterly imposing and even intimidating whenfirst experienced by the viewer. After a while, however, this majesticEarth Mother becomes familiar, unthreatening and endearing. She isexhausted, hands held back over her head; the face is tender andvulnerable. Her presence is a powerful one indeed, and she evokes amultitude of thoughts, ranging from the wonder of maternity andprocreation to population control and the burden of femaleresponsibility"

06 março 2008

E o sangue semeou a terra



O western, o cinema americano por excelência, na definição do crítico francês André Bazin, tem em Anthony Mann (1906-1967) um de seus expoentes (ao lado de Ford, o maior de todos, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher, entre muitos outros), como comprova a visão de E o Sangue Semeou a Terra (Bend of the River, 1951), um dos muitos filmes do gênero que realizou com James Stewart (a parceria entre os dois ainda se dá em Winchester 73, 1950, O preço de um Homem/The Naked Spur, 1952, Região do Ódio/The Far Country, 1954), etc, westerns exemplares e que configuram o sentido de espetáculo do cineasta.

Em E o Sangue Semeou a Terra, trata-se da marcha de uma caravana de lavradores do Missouri até o Oregon, através de índios, caçadores de ouro, linchamentos e ladrões. No itinerário, Stewart, o herói de Mann, se depara com, e tem de enfrentar, vencendo-os, vários obstáculos, mas encontra a ajuda de um amigo (Arthur Kennedy) e de um jogador de San Francisco (interpretado pelo futuro galã das comédias sofisticadas e dos filmes de Douglas Sirk, Rock Hudson). Os westerns de Mann com James Stewart possuem uma homogeneidade no trato narrativo e na estruturação os personagens, conjugando, como se pode observar em E o Sangue Semeou a Terra, o homem e a paisagem.

O realizador fez renascer o gênero, que parecia esgotado nos anos 50 (e que se perderia definitivamente nas décadas seguintes). Mann dá vida ao western, oferecendo-lhe um alento épico dentro do cotidiano. Mas a concepção do herói para o cineasta contraria o lugar comum ao gênero, pois seus personagens têm muito pouco do herói clássico, sempre a emergir, deles, as fragilidades humanas. Os personagens de Mann são, simplesmente, homens consagrados a uma tarefa, a uma missão, que tentam levar ao fim, apesar das dificuldades e dos desalentos.

O western, no entanto, que define melhor o realizador é O Homem do Oeste (Man of the West, 1958), com a presença de Gary Cooper. Neste, o tema do aventureiro envelhecido, a amargar o passar do tempo, possui alentos trágicos se comparado com a trajetória dos outros personagens dos filmes feitos com Stewart, por exemplo, homens de pradaria e dos espaços abertos. Em O Homem do Oeste, há uma concentração mais interiorizada do personagem e Cooper vive uma, por assim dizer, crise existencial. Um western, portanto, com tintas psicológicas.
A partir de Cimarron, em 1960, com Glenn Ford, o legendário ator hollywoodiano que morreu em 2006 aos 90 anos, Anthony Mann, sem mais arranjar produção para continuar fazendo westerns (também já incursionou por outros gêneros, a exemplo de Música e Lágrimas, sobre a vida de Glenn Miller), foi contratado por Samuel Bronston, famoso produtor, na época, de superproduções colossais. Mas se saiu bem nas duas que fez, ambas épicas: El Cid, com Charlton Heston e Sophia Loren e A Queda do Império Romano.

02 março 2008

Você sabe o que foi a "Nouvelle Vague"?

Eclosão de talentos díspares, detonada por cineastas dotados de estilos particulares, a Nouvelle Vague, que surge na França em fins dos anos 50 (1959), e que faz, agora, neste ano de 2005, 46 anos, aproximando-se de meio século, tem, no entanto, um denominador comum: a alteração no sistema de produção, o tratamento de temas considerados tabus, a experimentação na linguagem cinematográfica, o enfoque do homem contemporâneo, etc. Os 46 anos da Nouvelle Vague, neste momento de deslumbramento tecnológico, hegemonia da indústria cultural dos blockbusters e, em conseqüência, da perda da humanidade dos filmes, devem ser registrados como um exemplo único de modernidade, de criatividade, de impacto na sociedade de sua época, de renovação da linguagem fílmica e, principalmente, do império do cinema como um gênero técnico-formal mais virado para a expressão do que para a comunicação.Diante da crise da contemporaneidade na qual o cinema, como expressão da imagem humana, se afunda numa profusão de títeres, marionetes e efeitos especiais, na qual o homem desaparece, vale lembrar que a sobrevivência do cinema como arte está estreitamente ligada à tutela da sua função mitopoética e ao reconhecimento do seu papel de grande matriz moderna da cultura.
Há, na trajetória da história do cinema, momentos culminantes que o transformam e, entre esses momentos, está o do aparecimento da Nouvelle Vague, quando se pode dizer que existe um cinema antes da Nouvelle Vague e um cinema depois de sua eclosão. Assim, como a linguagem é uma antes de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, e outra, após a realização desta obra fundamental, ponto de partida da cinematografia moderna. Os momentos divisores-de-água se espalham pela história: o expressionismo alemão (dos anos 10 e 20), a escola documentarista britânica (quando se consolida o realismo) na década de 20 (John Grierson, Paul Rotha, Alberto Cavalcanti...), a introdução da profundidade de campo (Welles, Renoir, William Wyler...), nos 40, o neo-realismo italiano...
A Nouvelle Vague faz parte de um sopro renovador que atinge o cinema nos anos 50 e que influi em toda uma geração de cineastas da década de 60 (Cinema Novo, no Brasil, Free Cinema, na Inglaterra, o cinema underground nova-iorquino, o novo cinema alemão...). Com seus cineastas oriundos da crítica (da revista Cahiers du Cinema), cinéfilos por vocação, o sopro de modernidade francês determina uma nova maneira de narrar a partir de fragmentos dessemelhantes não mais unidos por um esquema dramático rígido, mas pelo próprio evoluir dos personagens em torno de núcleos de impulsos e de idéias.
Do ponto de vista teórico, é um artigo de François Truffaut, questionando o cinema clássico dos estúdios franceses, que não oferece oportunidade aos iniciantes, o provocador da primeira polêmica em torno da necessidade de mudança no sistema de produção. Assim, a exigência de uma solução econômica surge como a manifestação inicial da Nouvelle Vague. Os produtores, a fim de investir com garantias de reembolso do seu capital, sempre desconfiam daqueles que, sem experiência e sem renome, denotam sintomas de personalidade e de audácia – os filmes são confiados, assim, a cineastas já credenciados, de longo tirocínio. Investindo contra esse sistema, os críticos do Cahiers du Cinema, com parcos recursos (tirados da família, da criação de cooperativas, do próprio bolso...) começam, então, a transferência da teoria à praxis cinematográfica.

A Nouvelle Vague faz uma apologia da liberdade existencial do homem contemporâneo (aquele de 1959) e, nos seus filmes, o tratamento temático se desvincula dos padrões gramaticais estabelecidos. Consolida-se o não-herói em oposição ao herói clássico ou, mesmo, o anti-herói. O retrato de uma situação, a descrição e análise de um momento da vida, e o estudo de comportamentos ambíguos triunfam sobre o argumento tradicional. A fórmula griffithiana (de David Wark Griffith, americano, pai da linguagem cinematográfica com O nascimento de uma nação, 1914, e Intolerância, 1916) da lei de progressão dramática (exposição, intriga, clímax e desenlace) é posta de lado, com os personagens das fitas da Nouvelle Vague não mais com uma unidade psicológica e emocional precisa, mas como um feixe de sentimentos explicitados, contraditórios, ambíguos.

Rompe-se a relação dramática entre personagem e herói e a visão dos seres e objetos se purifica, é desdramatizada – o que determina uma apresentação de fatos e personagens sem enfeites adjetivos. Não mais existe, por conseguinte, o herói em oposição ao vilão, encaixando-se o homem num quadro existencial em que o bem e o mal são ficções puramente lógicas.

Os precursores da Nouvelle Vague já podem ser encontrados em fins dos anos 40, em Alexandre Astruc, principalmente, que, em 1948, lança sua teoria da camera-stylo ('o cinema se libertará pouco a pouco da tirania do visual, da imagem pela imagem, do enredo imediato e concreto, para tornar-se um meio de escritura tão leve e tão sutil quanto a linguagem escrita.'). E em Jean-Pierre Melville (que aparece, em Acossado, de Godard, como o escritor entrevistado por Jean Seberg numa homenagem significativa) que, em 1946, em 24 heures de la vie d’un clown emprega métodos modernos assemelhados aos da vaga francesa. Também em Agnès Varda que, em 1955, realiza La ponte courte, que configura um sentido de um cinema com um frescor e liberdade nada parecidos com as películas dos realizadores franceses da velha guarda. E, ainda, em Roger Vadim e Louis Malle, os quais, em 56 e 57, respectivamente, em ...E Deus criou a mulher (...Et Dieu créa la femme) e Ascensor para o cadafalso (Ascenseur pour l’échefaud) utilizam uma linguagem desamarrada dos cânones narrativos tradicionais.

...E Deus criou a mulher lança o mito de Brigitte Bardot e um plano de sua imagem nua, secando ao sol, causa escândalo e proibições. Alain Resnais, Georges Franju, entre outros, experimentam novas modalidades de produção, usando a bitola de 16mm. E, finalmente, o grupo da revista Cahiers du Cinema, os, por assim dizer, detonadores da Nouvelle Vague: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Doniol-Valcroze, Pierre Kast. O crítico André Bazin, fundador da revista, que falece em 1958 prematuramente aos 40 anos, é considerado o pai espiritual do grupo.

A Nouvelle Vague aparece oficialmente no Festival de Cannes, em 1959, com a Palma de Ouro conferida a Os incompreendidos (Le quatre-cents coups), de François Truffaut, na categoria de 'melhor direção' (o de 'melhor filme' é conquistada por Marcel Camus por Orfeu Negro, a versão da peça de Vinicius de Moraes que Cacá Diegues adapta com profunda falta de inspiração). Com a premiação de Truffaut, as portas dos estúdios, antes tão fechadas aos iniciantes, começam a se abrir para alguns realizadores novos. Ainda que se denomine a efervescência criadora francesa de movimento, a rigor, a Nouvelle Vague foge às características deste, pois seus membros não se atêm a regras ou postulados de criação comuns, nem se guiam pelas mesmas tendências estéticas. E, por isso mesmo, também não pode ser chamada de uma escola.

É, na verdade, uma camada de renovação que se sobrepõe à tradição dos filmes franceses, que, com a elipse de suas vigas mestras, o naturalismo e o realismo poético, já não se sustentam. A Nouvelle Vague opera uma ruptura violenta, sinônimo de rebeldia nas feições dos velhos sistemas de produção. A nova geração não se comunica com a anterior, mas, ao contrário, a substitui. É a Nouvelle Vague, quando aparece em 59, um estado de espírito, um conjunto de afirmações inconformistas partidas de cineastas como Melville, Astruc, Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer...

O fascínio que os realizadores dessa vaga consagram ao cinema é um fascínio desconhecido das gerações precedentes, pois esta geração se forma com o cinema num ambiente de cinematecas e cineclubes, no exercício da crítica e na permanente reflexão sobre a arte do filme – o que nunca ocorrera. A Nouvelle Vague também tem a vantagem de se principiar numa arte já instituída e organizada, o que permite, como conseqüência, ao cinema moderno, aproximar-se sensivelmente da plena realidade humana.

Há, por exemplo, em Louis Malle e Roger Vadim, um erotismo sadio e libertário (os hipócritas de todos os tipos e os falsos moralistas viram 'indecência' e pornografia na bela cena na qual Jeanne Moreau, em Os amantes, pratica um fellatio em seu amante). Em Jean-Luc Godard, um cinismo irônico, quase amoral, bem típico da geração da vaga (quando Jean-Paul Belmondo, no princípio de Acossado (A bout de souffle), atira contra o sol está indicado, aí, o início). Já em François Truffaut pode ser encontrada uma espécie de lirismo de impacto, ainda que não leve o tema à conclusão, deixando ao espectador a tarefa de resolvê-lo, como em Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961). O novo conceito de personagem advindo dos filmes de Godard, Truffaut, Chabrol, Malle, entre outros, exige, por sua vez, um novo estilo de fotografia (Raoul Coutard) e um novo estilo narrativo.

Questiona-se o caráter de movimento da Nouvelle Vague por se levar em conta mais a exigência de uma solução econômica para o cinema francês do que mesmo estética. É verdade que o aspecto econômico tem fundamental importância na eclosão dessa nova vaga, pois aqui se institui uma estética da necessidade (não se pode deixar de levar em conta a sua influência no Cinema Novo brasileiro e a estética da fome glauberiana, ainda que com acentos diferenciadores marcantes, é uma decorrência da alteração proporcionada pelos cineastas franceses no sistema de produção). Por outro lado, existe um despojamento dos processos de filmagem que funda uma nova estética – despojamento pela carência de grandes equipamentos e pela exigüidade orçamentária, limitada a equipe de trabalho a prazo e acessórios restritos.
A política da câmera na mão (que os cineastas dinamarqueses pregam no manifesto Dogma 95 como novidade é, como se vê, antiga e também praticada pelos cinemanovistas), da iluminação natural, da concisão dos efeitos estéticos pretendidos até o máximo de concentração, num mínimo de takes, uma vez colocada em desdobramento, não apenas subverte os métodos 'profissionais' mas, e principalmente, determina o vocabulário e a síntese da Nouvelle Vague, fazendo-a particular.

Assim, a tão utilizada montagem fracionada, ou seja, a montagem de instantes (vide a seqüência longa de Belmondo e Seberg no hotel em Acossado), purificando a ação aos seus movimentos essenciais, bem como a extrema mobilidade da câmera e a duração prolongada das tomadas (takes), acham-se condicionadas ao método mais livre e improvisado da filmagem. A estética da Nouvelle Vague em seus predicados evidentes e, como se disse, é uma estética da necessidade. François Truffaut sempre diz:”todo bom filme deve saber exprimir ao mesmo tempo uma visão do mundo e uma visão do cinema.” E Godard, no início dos anos 60: 'nós somos os primeiros cineastas a saber que Griffith existe.' Uma nova consciência da linguagem cinematográfica acompanha e alimenta boa parte da produção de diretores da nova onda.

Se Os incompreendidos, de François Truffaut, ao ganhar a Palma de Ouro, deflagra a Nouvelle Vague, é, no entanto, Acossado, de Godard, que se apresenta como o filme mais significativo da rebeldia dos jovens críticos franceses – para os quais cada obra cinematográfica é, também, um ensaio sobre imagens e sobre o cinema, sobre a relação entre o diretor e as histórias narradas, entre o autor e a personagem interpretada, entre a relação das palavras e das imagens... Acossado (que, visto recentemente, conserva todo o seu impacto e já se encontra incluso em todas as antologias e enciclopédias sobre a sétima arte), filmado em quatro semanas entre Paris e Marselha, quase todo rodado com a câmera na mão, pode ser definido como um thriller que se concentra apenas na trama e no princípio da ação física, denunciando, com isso, uma irresistível tentação da mise-en-scène. Michel Poiccard (vivido por Jean Paul Belmondo), imagem do homem contemporâneo com suas dúvidas, ambigüidades, contradições, é um ladrão de carros anarquista que mata um policial motorizado que o persegue. Encontra, em Paris, a amiga americana Patricia (Jean Seberg) e consegue voltar a ser seu amante. Convence-a ir para a Itália com ele, mas a polícia, por delação dela, descobre Michel e o abate numa rua parisiense. A forma de Acossado condiz com a imagem do comportamento de Michel. A desordem do tempo, os desenvolvimentos e as mudanças impostas pela modernidade excedem Michel e, mais particularmente, Patricia, vítimas da desordem. O filme, nesse particular, é um ponto de vista sobre a desordem, tanto interior como exterior, identificando-se, dessa maneira, com Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais e, mesmo, com Os incompreendidos, filmes que, na verdade, são esforços imaginativos e cinematográficos em busca do domínio dessa desordem.

A herança da Nouvelle Vague é imensa, pois influencia todo o cinema que lhe vem depois. O manifesto dos jovens cineastas alemães que despreza o filme estereotipado, e que procura, com Alexandre Kluge, Volker Schloendorff, Werner Herzog e, mais tarde, Wim Wenders, Rainer Fassbinder, apreender, em suas obras, a angústia da sociedade contemporânea, não se pode negar, é uma decorrência da Nouvelle Vague. Também a renovação da cinematografia britânica, com Karel Reisz, John Schlesinger, Tony Richardson, entre outros, no Free Cinema, recebe os ventos libertadores de uma estética estruturada em velhos hábitos.
Se já se identifica, nos anos 50, um movimento em torno da desdramatização (que tem no italiano Michelangelo Antonioni o grande mestre com sua trilogia A aventura, A noite e O eclipse), cujo pioneirismo está em Roberto Rossellini (Romance na Itália, 1953, o famoso Viaggio in Italia), a desconstrução do esquema griffithiano se dá com mais vigor e uniformidade na eclosão da Nouvelle Vague. O próprio Cinema Novo, se é influenciado pelo neo-realismo italiano (principalmente Rossellini), pela estética revolucionária de Serguei Eisenstein (principalmente em Glauber Rocha) e no exemplo de Humberto Mauro, não deixa, porém, de sentir forte a presença da Nouvelle Vague (o que é Os cafajestes, de Ruy Guerra, senão um filme nouvelle vague feito no Rio?).
Filmografia essencial
1) Acossado (A bout de soufle, 1959) de Jean-Luc Godard
2) Nas garras do vício (Le beau Serge, 1959) de Claude Chabrol
3) Os Incompreendidos (Les quatre-cents coups, 58) de François Truffaut
4) Hiroshima, mon amour (idem, 1959) de Alain Resnais
5) O Pequeno soldado (Le petit soldat, 1960) de Jean-Luc Godard
6) Amor livre (L’eau à la bouche, 1959) de Jacques Domiol-Valcroze
7) Paris nous appartient (idem, 1958-1960) de Jacques Rivette
8) Cleo de 5 às 7 (idem, 1961), de Agnès Varda
9) Amores fracassados (Le bel âge, 1959) de Pierre Kast
10) Le signe de lion (idem, 1959-1962) de Erich Rohmer
11) As quatro estações do amor (La morte saison des amours) de Pierre Kast
12) Os primos (Les cousins, 1959) de Claude Chabrol
13) Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 61) de Jean-Luc Godard
14) Zazie dans le metro (idem, 1960) de Louis Malle
15) Os amantes (Les amants, 1959) de Louis Malle
16) Atire no pianista (Tirez sur le pianiste, 1960) de François Truffaut
17) Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961) de François Truffaut
18) Lola (idem, 1960) de Jacques Demy
19) Viver a vida (Vivre la vie, 1962) de Jean-Luc Godard
20) Leon morin, prête (idem, 1961) de Jean Pierre Melville
21) O Ano passado em Marienbad (L’année dernière a Marienbad, 1961) de Alain Resnais
22) Quem matou Leda? (A double tour, 1959) de Claude Chabrol
23) Demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965) de Jean-Luc Godard
24) O Desprezo (Le mépris, 1963), de Jean-Luc Godard
25) Trinta anos esta noite (Le feu follet), de Louis Malle