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Telha sobre telha
O texto que vai abaixo é de autoria de um connaisseur da arte do filme, o meu amigo Ronaldo Barreto Leite Filho. Bom divertimento!
"Assistir a um filme contemporâneo é muito mais do que apreciar uma obra cinematográfica específica. Como acontece em praticamente toda arte, uma obra carrega muito do que foi feito antes, dentro da mesma forma de expressão. Pelo menos assim diria Mikhail Bakhtin, o pensador russo do Dialogismo, segundo o qual uma obra – se referindo principalmente à literatura – sempre dialoga com outras; as diversas obras interagem, havendo sempre mais de uma voz (polifonia) num texto, a despeito das intenções do autor ou mesmo de operações mais explícitas de dialogismo, como a paródia ou a paráfrase. O fato é que no cinema isso também acontece com frequência, não obstante o fenômeno seja muito mais claro em certas obras, mais sofisticadas, do que outras.
Este preâmbulo serviu pra falar justamente de como o espectador pode se surpreender – e se divertir – vendo certos filmes depois de ter visto certos outros filmes. Outro dia este escrevinhador reviu Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), obra maiúscula do – já muito mais do que um jovem promissor – cineasta contemporâneo Paul Thomas Anderson. Autor de Magnólia (1999) e Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002), o norte-americano realizou um filme vigoroso, destacável que seria em qualquer época da história do cinema. O caso é que revendo este filme, que já considerava grande, percebi que o era não só pelo talento e criatividade do autor, já mostrada em filmes anteriores, mas também por andar de mãos dadas com os grandes do passado. Qual não foi a boa surpresa que tive ao sentir nele eflúvios de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles? Sim, aquele mesmo tal filme que aparece invariavelmente nas listas pelo mundo como o maior filme de todos os tempos. A começar pela moral do filme, cuja história mostra o lado humano e o lado negro de homens capitalistas e ambiciosos. O Plainview de Daniel Day-Lewis (em atuação inexcedível) se aproxima bastante do Kane de Welles (diretor-protagonista): ambos, após um passado sofrido, se tornam máquinas que vão atrás de um objetivo sem que nada lhes faça parar, nem o bom senso nem os entes queridos. Parecem sempre estar tentando provar algo e alternam entre atos de bondade e ternura com atos de pura mesquinharia e ganância, mostrando-se no fim das contas serem verdadeiros solitários: de self-made men a lonely men. Personagens confusos e controversos, que no caso de Kane, a narrativa em puzzle, por meio de flashbacks, só explicita este caráter nebuloso. Após o fim de ambos os filmes achamos os protagonistas ao mesmo tempo tão familiares e tão distantes. Isso, sem contar aspectos não semelhantes, porém análogos, como fotografias e trilhas sonoras expressivas, grandes atuações e ritmos (timing) perfeitos, sem um segundo a sobrar ou faltar.
E qual seria a cara de Cidadão Kane se não houvesse acontecido antes o Expressionismo Alemão, com seus cenários distorcidos e sua fotografia em fortes contrastes de claro e escuro? Estilo de fotografia este que, embora pouco usado hoje em dia, foi característica forte do cinema americano dos anos 40, principalmente nos filmes noir, aqueles filmes de trama policial, femme fatale, clima de decadência e cinismo, e mistério a ser solucionado ao final.
Então, rever Sangue Negro e reencontrar Kane me levou a associações aparentemente desencadeadas, mas não fora desse espírito. Quem, mesmo sem conhecer bem o filme, nunca escutou a trilha sonora de Tubarão (Jaws, 1975) do Midas Steven Spielberg? O autor desta trilha, Mr. John Super-Indiana-ET-Nas_estrelas Williams, que tinha o inigualável Bernard Herrmann como referência, inspirou-se no conceito da igualmente famosa trilha sonora de Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, para dar aquele clima de tensão e violência iminente no filme – em que o tubarão propriamente dito demora bastante a aparecer e, no fim das contas, mata poucas pessoas. Falando no mestre gordo inglês, no mesmo Tubarão, Spielberg teve como referência outra grande obra hitchcockiana, Os Pássaros (The Birds, 1963). Hitchcock praticamente inaugurou o filme-catástrofe com Os Pássaros, mas sem cair no ridículo da maioria que foi feita posteriormente: filme em que a natureza se volta inexplicavelmente contra o homem, que pouco pode fazer além de tentar sobreviver. Assim também é Tubarão, em que um exemplar da espécie se torna misteriosamente sádico e sanguinário. Nenhum dos dois filmes se preocupa em dar explicações pseudo-científicas para o fenômeno – Hitchcock faz é piada com isso na cena do café, com a velha ornitóloga – e ambos são aulas de suspense, de como saber elevar a tensão ao ápice, alternando com momentos de relaxamento e até humor.
Alfred Hitchcock, por sinal, foi um dos cineastas mais influentes da história do cinema. Assim como Orson Welles – e cada um ao seu modo – soube assimilar o que de mais importante já havia sido feito até sua época, construiu um estilo próprio e rico, marcando para sempre o cinema, e influenciando cineastas mesmo os que não pensam conscientemente no autor de Janela Indiscreta. Aliás, a consciência do autor de ter como referência algo do passado talvez seja o que menos importa, pois quem se expressa é a obra, ela que dialoga com outra, e as influências estão no ar, na época, no conhecimento de mundo, no estudo, na vivência e na bagagem cultural do artista, é algo muito mais difuso e espontâneo do que o caso mais óbvio de uma referência como a que faz Brian De Palma em Os Intocáveis (Untouchables, 1987), na cena da estação de trem, que parafraseia a antológica seqüência das escadarias de Odessa, de O Encouraçado Potenkim (Bronenosets Potyokim, 1927), do pioneiro da montagem Sergei Eisentein. Este, outro cineasta de influência crucial para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, que marcou profundamente, por exemplo, a obra de Alfred Hitchcock. Realmente muito pequeno este mundo... E já que citei De Palma, este é o cineasta ainda na ativa de maior e mais assumida influência de Hitchcock, notadamente em filmes como Dublê de Corpo (Body Double, 1984), Vestida para Matar (Dressed to Kill, 1980) e Um tiro na noite (Blow Out, 1981) – o primeiro, uma espécie de mistura entre Um Corpo que cai (Vertigo, 1958) e Janela Indiscreta (Rear Window, 1955), e o segundo, uma referência clara a Psicose.
E o que teria sido do cinema senão uma mera forma de fotografar o movimento ou no máximo uma diversão circense não fosse por D.W. Griffith, que mostrou de uma vez por todas que o cinema se prestava à narratividade? Ele que encaixou no filme o hoje óbvios início-desenvolvimento-clímax e a narrativa paralela? Forma de narrar clássica, linear, essencialmente americana, que figuras como John Ford e William Wyler levaram à quintessência, algum tempo depois, há que se lembrar.
Assim foi. A partir da descoberta da narrativa o cinema foi aprendendo gradativamente coisas novas, aprendeu muito mais do que narrar. Imbricar é o verbo. Assim é construída a estética do cinema, como um telhado."
Clique na imagem para vê-la maior e mais bela.
28 junho 2009
Quando James Stewart veio ao Rio de Janeiro
O fato é que Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai (considerado pela Cahiers du Cinema um dos mais belos filmes de todos os tempos), O Terceiro Tiro, O Homem que Sabia Demais e Festim Diabólico, obras imprescindíveis de Hitch, relançadas em cópias novas, duas décadas depois, estavam livres, afinal, para serem reavaliadas e vistas pela primeira vez por toda uma geração de cinéfilos.
Para prestigiar o lançamento do pacote, James Stewart esteve no Rio de Janeiro reunido com jornalistas das principais capitais do Brasil. O gerente regional da CIC, em Salvador, resolveu me convidar como o crítico representante da Bahia - tinha, para quem não sabe, uma coluna diária e enorme na Tribuna da Bahia.
Fiquei entusiasmadíssimo, alvoroçado, pela oportunidade que teria de passar, um dia inteiro, com um veterano e mitológico intérprete, uma legenda do cinema americano. A empresa me reservou uma passagem de ida e volta - SSA-Rio-SSA, hotel de cinco estrelas - o mesmo onde ficaria hospedado o homem que matou o facínora, e a promessa de reembolso imediato nos gastos de locomoção e alimentação.
Lembro-me bem do dia: 21 de outubro de 1984. Estava chovendo. Vento leste. Medo de voar naquelas condições que se foi vencendo com várias tulipas de chope no barzinho do aeroporto. Para um amante do cinema, um presente de Zeus. Apertando o cinto, feita a aterrissagem, cheguei ao Galeão, descortinando, antes de pousar, a bela paisagem da Cidade Maravilhosa.
O Rio de Janeiro é de uma beleza indescritível. Mas a chuva continuava. Pensava em James Stewart, relembrava seus filmes enquanto sorvia mais algumas tulipas desta vez no bar do aeroporto do Rio. Telefonei para a CIC e me mandaram pegar um táxi, pois a reserva já se encontrava feita. Num hotel luxuoso em Copacabana - diria mesmo: seis estrelas. Quem sou eu, pobre comentarista de cinema, para gozar de tais mordomias! Gozei-as, entretanto. E como!
Cheguei num domingo. Dia livre, segundo a assessora de imprensa da CIC. Aproveitei para ver, no cinema Veneza, Janela Indiscreta (Rear Window). A sala estava lotada e, antes de entrar, fiquei observando as pessoas que saiam circunspectas, caladas ou comentando. Via pelas suas fisionomias que tinham acabado de assistir a um grande filme.
Já na sala escura, as imagens de Janela Indiscreta me provocaram forte emoção - já o tinha visto nos anos 60 antes de sua retirada de circulação. Apesar de uma matinée num domingo, havia silêncio na sala, respeito pelo que se estava a ver. Há vinte e cinco anos passados. A patuléia, porque ainda não nascida, ainda não comandava o espetáculo!
Saindo do cinema, fui andando até o hotel no posto seis de Copacabana. Uma caminhada e tanto. Ia pensando no encontro da segunda, o Dia D, cujas atividades se estenderiam pelo dia todo: de manhã, de tarde e de noite. Atravessei o comprido túnel, e, adentrando a Av. Atlântida, a pé, andei pelas suas calçadas cheias de bares com aquele chopinho único e especial que só se encontra no Rio de Janeiro (na Bahia não há chopp que preste, porque, na maioria das vezes, as pessoas não possuem o savoir-faire para tirá-lo). Há uma cultura do chopp entre os cariocas inexistente, por exemplo, em Salvador. Difícil - ou impossível - se encontrar, aqui, um chopp que possa ser bebido com tanto prazer como em relação ao carioca.
Assim, não resisti, cervejeiro que sou - e que, naquele tempo, jovem e disposto, era mais ainda, e sentei-me, lembro-me bem, no Cabral 1500. Impossível se ficar em apenas um chopinho. Este desce com uma leveza impressionante e, por isso, as tulipas se multiplicaram. Quando me levantei, a noite, ainda uma criança, dava sinais de que precisava parar e ir para o hotel descansar para o grande dia.
Acordei com o dia e por causa de um telefonema da assessora, Hannah de não-sei-o quê. Ela me disse que ficasse esperando uma caminhonete no saguão do hotel. Para ir ao centro da cidade à cabine da Paramount. Quando desci, encontrei um monte de gente também esperando: os críticos de outros estados que, a julgar pelos seus gestos e palavras, estavam eufóricos. Um, de Manaus, estava com vários colares e cocares indígenas para presentear James Stewart.
Chegando à cabine, uma sala de projeção com poltronas de veludo, James Stewart estava lá ao lado da assessora de imprensa que nos apresentou, um a um, explicando a ele o que as pessoas faziam e de onde vinham. Entramos na cabine onde ia ser exibido Um Corpo que Cai (Vertigo). O filme se iniciou com a fabulosa perseguição pelos telhados e, em seguida, a apresentação dos créditos feita por Saul Bass, uma novidade.
De repente, minha atenção se perturbou, pois James Stewart se sentou, por acaso, a meu lado. Enquanto o via na tela, sentia a sua presença. Não assistiu ao filme até o fim, retirando-se no primeiro terço e, na hora de sair, bateu em meu ombro e disse: "I see you later" ("Eu vejo você mais tarde").
Referia-se à grande entrevista coletiva que ia acontecer no salão do hotel no horário vespertino. A tarde chegou cedo, e o meu tempo, o psicológico, por fugaz, fez com que, mal terminada a projeção, já estivesse a postos no grande salão onde se realizaria a entrevista. Os lugares, todos marcados com os nomes dos jornalistas e, em cada cadeira, uma pasta contendo dados sobre os filmes e sobre Stewart, além de muitas fotografias.
Lembro-me de Ruy Castro, que, naquele tempo, era free lance da Folha de S. Paulo. Cada jornalista tinha de esperar a sua vez. Quando chegou a minha, perguntei a Stewart qual o seu filme preferido de Hitch. Olhando-me com aqueles dois olhos azuis resplandecentes, respondeu-me que Janela Indiscreta, fazendo longas considerações pelo motivo de sua preferência.
À noite, um jantar no hotel. Conversei um pouco com Stewart, que, nessa ocasião, me apresentou à sua esposa, Gloria, de longa data. Fiquei de olho em Stewart e nas bandejas circulantes dos garçons, que continham um delicioso scotch. Depois da quarta dose, aproximei-me dele, que estava em pé, disponível, ao lado da intérprete.
Foi então que conversamos mais. Ele me falou de sua infância difícil, da conquista, nos anos 40 (por A Mulher Faz o Homem/Mr.Smith goes to Washington, 1939, de Frank Capra) do Oscar de melhor ator, que o enviou ao pai, dono de uma loja comercial, que colocou a estatueta na vitrine. Falou-me de Hitch, de Capra, de John Ford (tinha medo de trabalhar com Ford e só entrou no cast de O Homem que Matou o Facínora por insistência de John Wayne, mas Ford gostou dele, e o convidou para mais filmes).
Dentro do avião de volta, peguei a Folha de S.Paulo para ler. Fui direto à Ilustrada, que estampava: "O melhor filme de Hitch para Jimmy é Janela Indiscreta". Minha pergunta fora roubada, pensei com meus aflitos botões. Mas já era tarde demais.
Naquela época não havia internet e a matéria que fiz para o jornal, que tomou toda a capa do segundo caderno, foi batida à máquina, quando já de volta ao lar.