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20 novembro 2013

Mostra completa de Walter Pinto Lima em São Paulo

Chico Drummond se ajoelha frente a Antonio Conselheiro interpretado pelo ator baiano Carlos Petrovich
O Cine Olido (Av. São João, 473 - São Paulo), entre os dias 19 e 26 de novembro, homenageia, com a projeção de toda a sua filmografia, o realizador baiano José Walter Pinto Lima, cineasta, artista plástico e gestor cultural. É uma grande oportunidade de se conhecer o seu pensamento cinematográfico, a sua maneira de ver o mundo, estando no mundo das imagens em movimento. Walter Lima pensa em cinema desde os anos 60, quando acompanhou as filmagens do clássico O carroceiro, de Ney Negrão, e participava ativamente do Geiciba, grupo de estudos sobre a arte do filme fundado em 1965. Realizou, em sua trajetória, vários curtas, e foi pioneiro na criação do vídeo-experimental com Brasilienses (em parceria com o saudoso Carlos Vasconcelos Domingues), registrado no já desaparecido U-Matic. Tem dois longas: Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão e Um vento sagrado, este último um documentário sobre Agenor Miranda Rocha (Pai Agenor), um dos mais importantes nomes do candomblé no país. Com fotografia de Mario Cravo Neto, o filme é resultado de pesquisas realizadas pelo diretor ao longo de três anos em São Paulo, Salvador e Roma. É de ressaltar que Walter Lima, quando à frente da Coordenação da Imagem e Som, promoveu, para os cinéfilos baianos, uma excelente programação cinematográfica na Sala Walter da Silveira e Cinema do Museu, oferecendo aos soteropolitanos as últimas novidades do cinema contemporâneo e a exibição de clássicos e filmes-faróis (retrospectivas de grandes nomes da cinematografia etc). Em 2005, criou o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual (que passou a se chamar Cine Futuro), mas que, inexplicavelmente, pela inércia dos patrocinadores da dita cultura, não pôde ser realizado no ano em curso já no ocaso, criando, com isso, imensa lacuna na programação cinematográfica dos baianos interessados em ver um cinema mais criativo e alternativo. Entre os seus curtas, O alquimista do som, documentário feito em 1978, sobre Walter Smetak, um dos poucos registros que se tem sobre a figura do grande músico e instrumentista que está, em 2013, fazendo o seu centenário. Publico abaixo um comentário que escrevi quando do lançamento de Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, no circuito nacional.

Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, de José Walter Lima, sobre ser um filme genuinamente baiano, não corrompe a sua baianidade com propostas desvinculadas de suas raízes culturais, pois é uma obra que incursiona no universo de Canudos e de seu líder máximo. O discurso cinematográfico de José Walter Lima, porém, vincula-se mais a um cinema de poesia (na tradição glauberiana e, mesmo, pasoliniana), caracterizando-se por ser um filme mais voltado para a retórica do que para a fabulação. Na sua estrutura narrativa, materiais de origens diversas se conjugam com esta finalidade. Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões aproveita, em grande parte de sua narrativa, um material dramático e ficcional realizado há duas décadas, que é complementado por imagens tomadas recentemente. O que poderia dar ao filme uma feição desconjuntada resultou no oposto, tornando-se, no discurso poético, um elemento a mais da sua produção de sentidos, considerando que, no cômputo geral, há um passado (a história do Conselheiro e a sua luta desesperada) e um outro passado (um pretérito que se espraia como um pretérito do próprio cinema baiano). A presentificação do filme vem da montagem contemporânea. E o filme de José Walter Lima, justamente por não se ater a uma linguagem discursiva dentro dos moldes tradicionais da narrativa, toma um voo poético e retórico que retoma, em certo sentido, o cinema declamatório de um Glauber Rocha. As torrentes verbais da fala do Conselheiro são transpostas de um tempo passado para suscitar um impacto nos tempos atuais, um impacto de uma guerra sem fim que se tornou um ponto de referência na História do Brasil: a guerra de Canudos, tantas vezes estudada por pesquisadores, como adaptada para o cinema e televisão e até mesmo assunto principal de um livro de Mario Vargas Llosa.
Por ser um tema conhecido, e talvez mesmo batido, os prognósticos poderiam estar contra o filme de José Walter Lima, mas, surpreendentemente, o realizador baiano sai pela tangente da mesmice (como fizera Sergio Rezende emA guerra de Canudos, uma superprodução que se perdeu no próprio tempo, ou os inúmeros documentários que apreciam Canudos em sua caturrice cinematográfica) para, fugindo da caturrice, situar-se como obra que promove o discurso à condição de mola propulsora da narrativa fílmica. O espectador que o contempla deve fazê-lo com os olhos de um espectador que ouve um discurso sendo proclamado e, ao mesmo tempo, contempla imagens pictóricas. A diegese perde, nesse particular, a condição de univocidade para se diluir num passado quase marienbático.
Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, segundo longa metragem de José Walter Lima, não é uma obra cinematográfica para ser apreciada por quem procura os modelos tradicionais da narrativa fílmica. É um filme que se situa em outros parâmetros de construção, rasgando o evoluir dramático griffithiano (de David Wark Griffith, pai da narrativa clássica com O nascimento de uma nação/The birth of a nation, 1914), para se situar como filme-poema, discurso apoteótico, e barroco, em torno de Antonio Conselheiro. 
O filme começou a ser rodado há mais de vinte anos, mas circunstâncias de ordem econômica determinaram-lhe a paralisação. Somente no ano retrasado, o autor resolveu tentar solucionar os obstáculos, para, aproveitando o material já filmado, dar a seu trabalho um acabamento final. Inconcluso há décadas atrás, Walter Lima precisou filmar novas cenas com a finalidade de concluir o longa. Várias dificuldades, porém, se interpuseram, como o fato de vários atores já terem morrido durante o período, inclusive Carlos Petrovich, que faz o papel principal, o de Antonio Conselheiro. E Álvaro Guimarães, o Moreira César, entre outros.
Na apreciação de Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, nota-se diferenças na qualidade da fotografia, pois o desgaste pelo tempo tirou as características originais da iluminação de Vito Diniz (que também já faleceu). Há, portanto, um contraste entre o que foi filmado no pretérito e o que foi filmado no presente. À primeira vista, o fato poderia prejudicar a uniformidade da obra, constituindo-se num defeito de estrutura, todavia o default se transforma em estética. Mas o discurso apoteótico, no entanto, não enfatiza verossimilhanças no corpus estrutural, mas solicita, inclusive, a fragmentação de sua narrativa que pode ser lida em três níveis: a história em si de Antonio Conselheiro massacrado pelas tropas do exército; a collage de fragmentos diversos numa perspectiva mais de retórica do que de lógica; e, também, num subtexto, a exaltação da memória como elo não perdido e, por extensão, a memória de um tempo que excede o da ação para se encontrar um tempo da história do próprio processo de criação cinematográfico do cinema baiano.
A utilização do cinema de animação na descrição das batalhas, por exemplo, dá uma idéia da estrutura de Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, como uma estrutura fragmentária, e, com isso, desloca o centro nevrálgico do discurso da opacidade em função da transparência. O autor não se intimida com a urgência do brado, e, no seu filme, a estrutura da fragmentação dá o tom da irrealidade para que a retórica prevaleça sobre os conflitos básicos e se estabeleça uma poética: a poética que é específica do cinema. O tênue limite que separa o documentário da ficção se parte, estilhaça-se, e, por assim dizer, explode na narrativa do filme, mais acentuada de um propósito poético-retórico do que propriamente descritivo.
O espectador que não está acostumado a um cinema de poesia pode até recusar, a princípio, as diretrizes da mise-en-scène de Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertões. E não seria, por acaso, um filme dentro do filme? Há, neste particular, uma metalinguagem que se faz sentir na história de Canudos e no processo de criação do filme. Na evocação do mitológico Conselheiro, José Walter Lima procede a uma espécie de delírio de imagens e sons. E confirma, neste tour de force, a assertiva de que o cinema é uma estrutura audiovisual.
Há muitas décadas no batente cinematográfico, José Walter Lima é um homem de mil instrumentos, pois, além de realizador, é produtor cultural e cinematográfico (é o principal organizador do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual), acaba de produzir, em parceria, um filme internacional, Ilha Dawson, do chileno Miguel Littin, exerceu, durante muito tempo, a coordenação do DIMAS da Fundação Cultural do Estado da Bahia e, justiça se lhe faça, na sua melhor fase. No campo estritamente cinematográfico, o de fazer filmes, escreveu vários roteiros com seu amigo e parceiro Carlos Vasconcelos Domingues (de saudosa memória) e realizou, soloO alquimista do som (documento raro sobre o músico de vanguarda Walter Smetak), Nós, por exemplo, entre outros. O filme sobre Canudos começou como uma proposta de média metragem, O império do Belo Monte, que se estendeu como um longa.
Não se poderia deixar de destacar a contribuição de Carlos Vasconcelos Domingos, parceiro de José Walter Lima na elaboração do roteiro e no acompanhamento das filmagens primeiras. Seria, de fato, o co-diretor do filme não tivesse a morte ceifado-lhe a vida. No elenco, Carlos Petrovich, um dos atores baianos mais consagrados, faz o personagem título, com a sua pachorra habitual; Harildo Deda, outro ator marcante da história do teatro baiano. Mas muitos dos intérpretes já desapareceram, a começar mesmo do principal, Petrovich. Assim como Álvaro Guimarães (o autor de Caveira, my friend, no papel de Moreira César), Wilson Mello, Haydil Linhares. Entre outros, comparecem o sempre talentoso Bertrand Duarte (o padre de O homem que não dormia e O Superoutro, de Edgar Navarro), Leonel Nunes, Chico Drummond, Passos Neto, Iami Rebouças, Ari Barata, Júlio Goes, Jorge Gaspari, Alberto Luiz Viana, Nilson Mendes, Antonia Adorno. A fotografia do material filmado há vinte anos é de Vito Diniz (grande iluminador da maioria dos filmes baianos pós-ciclo), complementada pela luz de Pedro Semanovchi.
Há, também, em Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, uma plástica da imagem que desenvolve a temática por meio de uma profusão de cores, de grafites, de desenhos, de materiais diversos, em suma, aos termos da ação propriamente dita. A montagem, como já foi referida, segue o princípio da collage. E o espírito do Conselheiro permanece vivo nas imagens compostas pelo cineasta José Walter Lima.
Eis a programação completa:
17h00 O ALQUIMISTA DO SOM BRASILIENSES | SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES 
21.11 | QUINTA
17h00 ANTÔNIO CONSELHEIRO – O TAUMATURGO DO SERTÃO
19h00 NÓS, POR EXEMPLO METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO

22.11 | SEXTA
17h00 O ALQUIMISTA DO SOM BRASILIENSES | SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES
19h00 UM VENTO SAGRADO

23.11 | SÁBADO
15h00 NÓS, POR EXEMPLO METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO
17h00 UM VENTO SAGRADO
19h00 ANTÔNIO CONSELHEIRO – O TAUMATURGO DO SERTÃO

24.11 | DOMINGO
15h00 O ALQUIMISTA DO SOM BRASILIENSES | SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES
17h00 UM VENTO SAGRADO

26.11 TERÇA
17h00 NÓS, POR EXEMPLO METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO

FICHAS TÉCNICA E SINOPSES

NÓS, POR EXEMPLO
(Brasil, 1979, 10min, DVD). Dir.: José Walter Lima. Com Edgar Navarro, Marcia Vergner, Michel Argouges
+ 14 anos
Caminhando pelas ruas, um jovem protesta. Em seu apartamento, reflete sobre a alienação do homem tomado pelo desejo de consumo e propriedade. Grávida, sua companheira o avisa de que um perigo o espreita.
| Dia 19, 17h
| Dia 21, 19h
| Dia 23, 15h
| Dia 26, 17h
METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO
(Brasil, 1969, 80min, DVD). Dir.: André Luiz Oliveira. Com Antonio Luiz Martins, Sonia Dias, José Wagner
+ 16 anos
Estudante universitário vaga sem destino pelas ruas de Salvador. Durante a viagem, atravessa a cidade tendo delírios libertários. Meteorango Kid – Herói intergalático é um dos principais representantes do cinema baiano de vanguarda dos anos 1960 e 1970. Em diálogo com as tendências artísticas da época – como a Tropicália e a contracultura – o filme revela os impasses da arte e do jovem brasileiro durante os anos de chumbo.
| Dia 19, 17h
| Dia 21, 19h
| Dia 23, 15h
| Dia 26, 17h
ANTÔNIO CONSELHEIRO – O TAUMATURGO DO SERTÃO
(Brasil, 2010, 86min, Blu-ray). Dir.: José Walter Lima. Com Carlos Petrovich, Harildo Deda, Leonel Nunes
+ 14 anos
A Guerra de Canudos e o embate entre dois de seus mitológicos personagens, Antônio Conselheiro, líder da comunidade, e o Coronel Moreira César, responsável por coordenar as tropas militares durante o massacre.
| Dia 19, 19h
| Dia 21, 17h
| Dia 23, 19h
O ALQUIMISTA DO SOM
(Brasil, 1978, 11min, DVD). Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Documentário sobre o músico Anton Walter Smetak (1913-1984). Nascido na Suíça, Smetak mudou-se para o Brasil em 1937, radicando-se em Salvador. Pesquisador de sons, criador de instrumentos musicais, escritor e escultor, também lecionou na Universidade Federal da Bahia. Foi professor de nomes importantes para a música brasileira, como Tom Zé.
| Dia 20, 17h
| Dia 22, 17h
| Dia 24, 15h
BRASILIENSES
(Brasil, 1984, 28min, DVD) Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Um vídeo-ensaio sobre aspectos diversos da cultura brasileira.
| Dia 20, 17h
| Dia 22, 17h
| Dia 24, 15h
SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES
(Brasil, 1999, 26min, DVD). Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Videoarte sobre o pintor, ator, gravurista, cenógrafo e professor Sante Scaldaferri (1928). Formado na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, Scaldaferri foi assistente da arquiteta Lino Bo Bardi. No cinema, trabalhou como cenógrafo em produções do Cinema Novo e como ator em filmes de Glauber Rocha.
| Dia 20, 17h
| Dia 22, 17h
| Dia 24, 15h
UM VENTO SAGRADO
(Brasil, 2001, 90min, DVD). Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Documentário sobre a trajetória de Agenor Miranda Rocha (Pai Agenor), um dos mais importantes nomes do candomblé no país. Com fotografia de Mario Cravo Neto, o filme é resultado de pesquisas realizadas pelo diretor ao longo de três anos em São Paulo, Salvador e Roma.
| Dia 22, 19h
| Dia 23, 17h
| Dia 24, 17h

17 novembro 2013

Nicholas Ray: o lirismo de um homem ferido

Nicholas Ray - cujo verdadeiro nome era Raymond Nicholas Kienzie - nasceu em Wisconsin em 1911. Se vivo estivesse, estaria com 102 anos. Mas morreu em 1979, aos 67, vitimado pelo excesso de álcool e cigarro. Fumava sem parar: um atrás do outro. Resultado: um virulento câncer no pulmão matou-o. Wim Wenders, seu amigo, registrou, em Nick's movie, os últimos suspiros de Nicholas Ray. Sua esposa, que esteve presente na abertura da mostra a ele dedicada, afirmou, em entrevista, que Wenders foi cruel com Ray ao registrar os derradeiros momentos do marido.
Formado pela Universidade de Chicago, em Arquitetura, chegou a trabalhar com o famoso Frank Lloyd Wright, um dos mais célebres arquitetos do século passado. Foi na casa dele, uma mansão suntuosa, que Alfred Hitchcock, em Intriga internacional, filmou a sequência na qual James Mason e seus capangas se reúnem nos momentos finais do filme e Cary Grant consegue se infiltrar. O aprendizado no trabalho com Wright deu a Ray o gosto pela plástica da imagem, pelo sentido da composição do enquadramento, pela disposição dos objetos e pessoas em cena. Um fotograma de um quadro fílmico em Ray, se porventura em cinemascope, não pode ser destruído pela exibição televisiva no horrendo full screen (tela cheia).

Raymond Nicholas Kienzie iniciou suas atividades artísticas quando já estourada a Segunda Guerra Mundial, fazendo programas de rádio para a CBS. Interessado pelo teatro, montou várias peças, nesse período, em colaboração com John Houseman (que fazia parte do Mercury Theatre de Orson Welles, produtor eficiente e soberbo ator). Assistente de direção de Elia Kazan em Laços humanos (A tree growns in Brooklin, 1945), aprendeu com o grande diretor de atores a maneira de lhes fazer emergir uma personalidade forte em cena. Em seguida, dirigiu para a televisão, em 1946, Sorry, wrong number - adaptação de uma obra teatral que inspirou logo o filme de Anatole Litvak Uma vida por um fio (1948), com Barbara Stanwick e Burt Lancaster. Dore Schary, o novo poderoso chefe de produção da RKO, insuflado por John Houseman, deu-lhe a direção de Amarga esperança (They live by night, 1948), que focaliza o drama de jovens sem esperança com um clima lírico que fizera habitual em sua obra. É então que Nicholas Ray se associa a Humphrey Bogart , que, convertido em produtor, é dirigido por Ray em uma de suas melhores criações: o advogado de O crime não compensa (Knock on any door, 1949), melodrama de denúncia social transcendido por uma penetrante descrição de ambientes e comportamentos. 

No silêncio da noite (In a lonely place, 1950), novamente uma associação com Humphrey Bogart, dá a Raymond Nicholas Kienzie a fama de um diretor acima da média no circuito hollywoodiano ao introduzir no relato uma reflexão sobre o próprio cinema. Bogart faz um roteirista amargurado com as engrenagens da indústria que, após alguns filmes de sucesso, entra em crise criativa. A estrutura narrativa toma a forma de um autêntico film noir, mas a concepção do próprio roteiro e a montagem permitem uma transgressão ao gênero. Contracenando com Bogart, Gloria Grahame, que viria a ser esposa de Ray.

Outra pérola do film noirCinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952) mostra o calvário de um detetive particular (Robert Ryan), que, desiludido com a escória reinante na cidade, é designado para investigar a morte de uma mulher no interior. E se apaixona, no intricado do enredo, por uma mulher cega (interpretada por Ida Lupino, que também foi diretora de filmes). Ward Bond (ator fordiano por excelência também está presente), assim como Ed Begley. Filme fascinante que não se esquece de maneira assim tão fácil.

Johnny Guitar (1953) é um western sui generis e, para muitos, o melhor filme de Nicholas Ray. O mais insólito e, talvez, o mais característico dos filmes deste diretor, constitui, para certa parte dos exegetas de Ray, uma continuação ideal deNo silêncio da noite: a história de um homem violento que deseja deixar de sê-lo e de uma mulher moralmente mais forte do que ele. Este contexto, dentro de uma fábula de evidente intenção antimaccarthista, permitiu ao autor desenvolver alguns de seus temas prediletos: a obsessão da violência, a inquietude da adolescência, a onipresença da morte, sem esquecer precisos matizes autobiográficos. Através de uma construção dramática inusitada - um plano-sequência inicial de 40 minutos de duração em um cenário único, a sala de jogos, expõe e enfrenta os personagens principais, Ray buscou um certo clima de exasperação lírica em todos os recursos de sua mise-en-scène, na estilização dos gestos e movimentos dos atores, no preciosismo dos diálogos, no insólito da cor (cujos defeitos técnicos foram utilizados habilmente com fins expressivos) e do cenário. Servido por uma admirável corte de intérpretes (entre os quais Sterling Hayden e Joan Crawford). E, finalmente, popularizado por um tema musical de grande êxito, Johnny Guittar foi um western feérico por excelência, que teve o mérito especial de inventar seu próprio gênero.

O lirismo do homem ferido se espraia em todos os filmes de Nicholas Ray, às vezes com mais intensidade, outras vezes com menos. Em Horizonte de glórias (Flying leathernecks, 1951), o cineasta abandona o cinema noir e o western para localizar a sua ação num campo de batalha. É a guerra o espaço onde os conflitos explodem. É bem de ver que Ray, ainda que trabalhando no cinema de gêneros, transcendendo-o para, nele, apor a sua marca, o seu pensamento, a sua visão de mundo, a sua filosofia de vida. O palco é o conflito do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. John Wayne é um major que assume o comando de um esquadrão de caças e encontra enormes resistências de seus comandados, entre eles Robert Ryan.

Antes de Johnny Guitar, Nicholas Ray incursionou num western em 1952 que não tem a notoriedade deste, mas é admirável: Paixão de bravo (The lusty men). Robert Mitchum (um ator de rara presença e personalidade cênica) fica machucado num rodeio e resolve voltar para a sua cidade natal. Arranja trabalho num rancho e se torna amigo de seu patrão, mas não estava no programa que se apaixonasse por Susan Hayward. Estabelece-se, então, o conflito e Ray injeta, nele, o seu constante lirismo do homem ferido. Também no elenco um ator coadjuvante, mas de extraordinário desenvolvimento interpretativo: Arthur Kennedy.

A filmografia de Nicholas Ray ainda revela muitas surpresas.  Em 1955, realiza o antológico Juventude transviada (Rebel without a cause), o primeiro longa de James Dean, que viria, depois, fazer ainda dois filmes (Vidas amargas, de Elia Kazan, e Assim caminha a humanidade, de George Stevens, antes de sua morte prematura num acidente automobilístico.

Jean-Luc Godard, num dos seus escritos no Cahiers du Cinema chegou a afirmar numa crítica a um filme desse cineasta: "O cinema é Nicholas Ray!" E o próprio disse que "o cinema é a melodia do olhar." Nicholas Ray é um dos mais importantes realizadores do cinema americano de todos os tempos. A revisão de seus filmes surge, portanto, como programa obrigatório para todos os cinéfilos que se prezam. 

Em 1955, Nicholas Ray realiza um de seus filmes mais admirados e que causou sensação entre os jovens dos anos 50, principalmente pelo aparecimento do ator emblemático James Dean, que, com sua morte prematura, viria a se tornar um mito ainda hoje celebrado. O filme, Juventude transviada (Rebel without a cause), reflete a angústia de toda uma geração de jovens, os rebeldes sem causa do título original, e seu argumento gira em torno de Jim Stark (Dean), um jovem que é obrigado a se transferir para outra cidade por ter sido expulso da universidade onde estudava. Atraído por uma jovem vizinha, Judy (Natalie Wood), entra na universidade local, mas não tarda em demonstrar, com os colegas mais rebeldes, seu comportamento inconformista. Provocado, Jim, apesar dos conselhos do pai, homem bonachão e dominado pela esposa, dispõe-se a um duelo de honra e, com seu rival, dois carros em alta velocidade precisam frear diante de um abismo. Durante o duelo, seu antagonista, Buzz (Corey Allen) acaba por cair no abismo e, em consequência, vindo a morrer. Os pais de Jim tentam impedi-lo que se apresente à polícia e ele se refugia com Judy em uma vila abandonada descoberta pelo jovem Plato (Sal Mineo). Há, na sequência em que os jovens estão na vila, um triângulo amoroso sui generis travado apenas pela troca de olhares que se configura numa expressão maior do cinema de Ray. 

Nicholas Ray concebe a ideia desse filme através da leitura de uma série de recortes de jornais sobre adolescentes inconformistas e, também, influenciado pelo mal-estar social muito em voga naquela época. Juventude transviada é considerado o mais completo e explícito sobre os problemas da adolescência entre as obras dedicadas ao assunto. Sua tonalidade peculiar se deve, principalmente, à excepcional identificação entre Jim Stark e seu intérprete, James Dean, arisco, de uma sensibilidade à flor da pele, e desamparado, "ambos desgarrados  pelo conflito entre o desejo de se entregar e o temor da entrega", como declara o próprio Nicholas Ray.

Jim Stark é o protótipo do adolescente solitário e difícil cujo drama nasce de uma inocência fundamental, levada até às últimas consequências, e que resulta na impossibilidade de aceitar os compromissos impostos por certa civilização, por uma determinada forma de viver. O êxito alcançado por Vidas amargas (East of Eden), de Elia Kazan, baseado em parte do romance de John Steinbeck, com a rica e complexa caracterização desse personagem, converte James Dean em símbolo de toda uma geração, originando um culto quase idolátrico que ainda perdura. Construído segundo uma linha dramática de uma sensibilidade de tragédia clássica e apoiado numa apresentação simples e direta de seus caracteres, Rebel without a cause se desenrola em um clima febril, delirante, específico dos filmes de Ray dessa etapa, que se resolve em várias sequências culminantes, momentos fortíssimos dentro da sua estrutura narrativa: a lição do planetário, que dá uma das chaves para a compreensão da obra; a chicken run, absurda prova de valor que se consuma como uma cerimônia pagã; a penosa e violentíssima explicação de Jim a seus pais; a admirável cena de amor na vila e o desolador desenlace. O emprego pela primeira vez do Cinemascope permite a Ray estimulantes experiências de composição, tendentes a dar uma ênfase lírica a certos gestos dos intérpretes. A sinceridade e honradez  extremas de seu enfoque fazem com queJuventude transviada não haja perdido, com o tempo, a sua atualidade, ainda que Ray aborde um delicado problema social em termos mais poéticos do que analíticos.

Alguns filmes que não tive a oportunidade de ver estão fora dessa trajetória de Ray (por exemplo: Fora das grades, entre outros). E também não há um propósito de esgotar a ficha filmográfica de Nicholas Ray. Mas, depois de Rebel without cause, o filme que mais se destaca é Delírio de loucura (Bigger than life, 1956), com James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Christopher Olsen. Mason (sempre um ator impecável, fleumático) faz um professor que descobre sofrer de uma rara doença e aceita se tratar com uma droga ainda em experiência científica. Há uma recuperação e regressão na doença, mas o problema maior é que ele se vicia nela e seu comportamento familiar se torna insuportável com reações imprevisíveis. Ray também aqui adere ao Cinemascope, tela larga, cujo primeiro filme nesse processo anamórfico data de três anos antes: O manto sagrado (The rope, 1953). Bigger than life é uma obra de grande impacto no qual Ray desenvolve o violento enfrentamento dos impulsos espontâneos do indivíduo e das estruturas coletivas da vida norte-americana.

O filme a seguir é Quem foi Jesse James? (The true story of Jesse James, 1957), com Robert Wagner, Jeffrey Hunter, Hope Lange, Agnes Moorehead, John Carradine. É a história de Jesse James e sua trajetória como um dos mais temidos, ao lado do irmão, bandidos do oeste. Há, no filme, uma aguda análise do processo de conversão de um personagem pacífico e não contaminado que se transforma, de repente, condicionado pelo meio social, em um herói violento. Ray propõe, com claridade meridiana, sua concepção da violência revolucionária como única forma válida de se opor à violência impune da sociedade constituída.

Nesse mesmo ano de 1957, Amargo triunfo (Bitter victory), com Richard Burton, Curd Jürgens, Ruth Roman, Christopher Lee. Oficial recebe condecoração por bravura, mas a honraria se converte em insulto, porque o capitão que a indicou tem um affair com a esposa do oficial condecorado. Jornada tétrica (Wind across the everglades, 1958), com Burl Ives, Christopher Plummer, Peter Falk, tem sua ação localizada no século XIC. Nunca vi este filme, mas as críticas são entusiásticas. 

A bela do bas-fond (Party girl, 1958), com Robert Taylor, Lee J. Cobb, Cyd Charisse (as pernas mais bonitas de toda a história do cinema), John Ireland, Corey Allen, tem o galã Taylor como um advogado manco (um homem ferido) que é ligado a um chefe mafioso, mas ao se apaixonar por uma bailarina (Charisse) tenta sair do esquema de corrupção. O que não é nada fácil.

O filme que mais aprecio de Nicholas Ray, entre muitos outros, evidentemente, éSangue sobre a neve (The savage innocents, 1960). Adaptado do romance Top of the world, de Hans Ruesch, pelo próprio autor ao lado do italiano Franco Solinas, a ação se passa no gélido Ártico e mostra a vida de um esquimó (Anthony Quinn) com sua mulher (Yoko Tani). Há alguns momentos que fazem lembrar a obra-prima de Robert Flaherty Nanuk, O esquimó (Nanook of the North, 1922), filmado, este, in loco, ainda no período da estética da arte muda. The savage innocents tem um registro documental do dia-a-dia do personagem: seu modo de habitar, sua necessidade de caçar para trazer o alimento no fim do dia. E que se constitui, na verdade, num autêntico discurso sobre o pensamento selvagem, a dialética da Natureza e a corrupção da civilização em uma das mais claras e transparentes expressões das concepções morais do autor, tanto de um ponto de vista emocional e dramático, quanto no exercício estrito da mise-en-scène cinematográfica. Ray não conseguiu, para este filme, recursos nos Estados Unidos. A produção é uma parceria entre a França, Itália e Reino Unido. Peter O'Toole tem uma ponta.

No regresso a Hollywood, sem trabalho, o produtor Samuel Bronston o convidou para dirigir um épico histórico tão ao feitio da época: O rei dos reis (King of kings, 1961), quase três horas de projeção. Apesar de a crítica, na época, ter fechado os olhos para o filme, e, hoje, revisto, tem alguns defensores entusiásticos. Trata-se da história de Jesus Cristo do nascimento até a ressurreição. Quem o interpreta é Jeffrey Hunter (o acompanhante de Etahn Edwards em Rastros de ódio/The seachers, de John Ford). Há close ups magníficos de seus olhos azuis. Novamente utilizando com sabedoria o Cinemascope, para alguns críticos que viram grandeza em King of kings, Ray amplia, aqui, os limites de seu mundo e depura as suas constantes expressivas.

Gosto muito de outra superprodução de Bronston dirigida por Ray: 55 dias em Pequim (55 days at Peking, 1963), canto de cisne de Nicholas Ray, com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven, Flora Robson, John Ireland, Harry Andrews, e o próprio Nicholas Ray no papel do embaixador. Estrangeiros são constrangidos e cercados durante a revolta dos Boxers, A única saída para eles é ser liderado por um valente e obstinado membro da Marinha norte-americana e pelo embaixador britânico. O filme, na época, foi malhadíssimo pela crítica.

Eis, portanto, a trajetória de um grande diretor de cinema. Nada existe hoje que se lhe possa comparar.